Por atuação em desastres ambientais no Brasil, banca britânica é acusada de violar Estatuto da Advocacia
24 de julho de 2024, 13h55
A atuação da banca britânica Pogust Goodhead em ações envolvendo desastres ambientais no Brasil tem levantado suspeitas sobre possíveis violações ao Estatuto da Advocacia, como a captação de clientela com base em promessas de causa ganha, além de contratações irregulares de serviços jurídicos por parte de municípios.

Tom Goodhead, CEO da Pogust Goodhead, diz que mineradoras tentam impedir condenação de empresas na Inglaterra
O escritório atua fora do Brasil em ação coletiva movida contra a mineradora anglo-australiana BHP e a Vale, controladoras da Samarco, pedindo indenizações por prejuízos causados pelo desastre ambiental de Mariana (MG).
Trata-se de um dos maiores casos de litígio da Justiça britânica: a Pogust Goodhead representa cerca de 700 mil clientes brasileiros — entre pessoas físicas, 46 municípios e organizações religiosas, autarquias e empresas — e pede cerca de R$ 230 bilhões à BHP.
A ação coletiva corre em Londres desde 2018, e o julgamento deve ter início ainda neste ano, a despeito de processos semelhantes estarem sob análise do Judiciário brasileiro.
Uma ação no Supremo Tribunal Federal questiona a participação de municípios no processo estrangeiro. Nela, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), que representa o setor, afirma que a Constituição define como competência exclusiva do Senado autorizar operações financeiras no exterior, o que inclui litígios internacionais.
O instituto diz ainda que o caso envolve fatos ocorridos no Brasil e regidos pela legislação brasileira, e que a participação em disputas no exterior viola a soberania nacional.
A banca, por seu lado, tenta impedir o andamento da ação no Supremo. Ela argumenta que o Ibram busca prejudicar os direitos dos atingidos e dos municípios de buscar justiça fora do Brasil contra as mineradoras, e diz que o STF não deve analisar o caso.
Em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, Tom Goodhead, CEO da Pogust, afirma que as mineradoras brasileiras é que tentam prejudicar a ação que corre na Inglaterra. “Tentam criar impasse entre os tribunais brasileiro e inglês e distorcem noções de soberania em favor de interesses corporativos estrangeiros — neste caso, de uma gigante australiana.”
Captação
Os processos contra multinacionais não tratam só de episódios ocorridos no Brasil e se transformaram em um modo de levantar dinheiro.
Em 2023, a banca recebeu um empréstimo de cerca de R$ 2,7 bilhões de um fundo de investimento dos Estados Unidos. Em apresentação a investidores, o fundo informou que o empréstimo teria juros de 17,75%, segurados pela disputa ambiental no Brasil e por ações na Alemanha envolvendo montadoras que fraudaram dados de emissão de CO2 de veículos.
A atuação da banca britânica é motivo de uma representação de cinco escritórios de advocacia brasileiros perante a OAB. Assinaram o pedido Machado Meyer, Mattos Filho, BMA, Sérgio Bermudes e ALNPP.
Os escritórios sustentam que o Pogust e seus parceiros teriam obtido financiamento para aumentar os valores das causas. Também levantam suspeitas sobre a captação ativa de clientes. O processo ético-disciplinar que corre na OAB está sob sigilo.
O advogado Werner Grau, sócio do Pinheiro Neto Advogados, considera a atuação do Pogust antiética e em desacordo com o Estatuto da Advocacia.
“Esse escritório vive de levantar dinheiro de fundos de investimento, fazendo a aposta de ganhar muito dinheiro com as ações, que são movidas em várias jurisdições. Ele tem ações na Alemanha, Holanda e a aposta dele é: eu movo a ação e o réu, para não enfrentar o processo inteiro, faz o acordo.”
Um exemplo é o acordo firmado pela banca em 2022 com a Volkswagen, que garantiu 193 milhões de libras a motoristas do Reino Unido. O caso envolve a adulteração de dados sobre emissões de CO2 em veículos com motores a diesel, fraude admitida pela montadora alemã em 2015.
Quando não há acordo, diz Grau, tudo fica nebuloso. Não é possível, por exemplo, mensurar corretamente o dano sofrido por cada parte e distinguir quem é vítima e se há pessoas tentando tirar proveito de desastres.
Ainda segundo o advogado, é preciso discutir os limites éticos da atuação das bancas estrangeiras em casos de vítimas de crimes ambientais. “O critério não pode ser o argumento de que no Brasil o andamento de uma ação pode demorar e que a indenização será pequena. Há toda uma série de medidas sendo tomadas no país.”
“Quando uma banca vem ao Brasil e faz a promessa de que em outro país você ganhará mais, o que está sendo dito é que o Direito, como fenômeno social, tem impacto financeiro maior em outro país. E você também está prometendo resultados. Na minha leitura, estamos falando de algo que é um escárnio: dizer que temos um Judiciário que não resolve. Tem cheiro de colonialismo”, prossegue Grau.
Prejuízo a escritórios
Ainda assim, o advogado diz não acreditar que esse modelo de advocacia causará grande impacto nos escritórios brasileiros. “O efeito não será grande, primeiro porque essas bancas não vão encontrar financiamento para todos os casos; segundo porque no médio prazo o bom senso tende a cortar esse tipo de atuação.”
Gláucia Savin, especialista em Direito Ambiental, também levanta dúvidas sobre o modelo. Segundo ela, a “advocacia globalizada” pode oferecer vantagens em termos de recursos e expertise, mas deve lidar com desafios éticos e de concorrência.
“A atuação em jurisdições estrangeiras pode ser apropriada em certos casos, mas deve sempre ser conduzida com uma ênfase na ética e na justiça genuína para as vítimas. A competição deve ser conduzida de maneira ética, garantindo que todas as partes envolvidas, especialmente as vítimas de desastres, recebam a representação justa e adequada.”
Quanto à captação de clientes, Gláucia diz que pode haver prejuízo aos escritórios que atuam em conformidade com o Estatuto da Advocacia. “A captação agressiva de clientes e a busca por vantagens econômicas, em detrimento da justiça genuína, podem prejudicar a imagem da advocacia e a confiança pública no sistema jurídico.”
Atuação dos municípios
Paulo de Bessa Antunes, professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), questiona as promessas de valores elevados em jurisdição estrangeira.
Segundo ele, a ação que corre em Londres é regida pelo Direito material brasileiro e pelo processual estrangeiro. Com isso, uma eventual condenação terá de considerar os valores das indenizações já pagas no Brasil. E Antunes afirma que o escritório não pode se intrometer na ação que corre no Supremo.
“O que está se argumentando é que as indenizações são baixas e que a Justiça brasileira é lenta. Ora, se a ação vai ser regida com base no Direito brasileiro, terá de considerar as indenizações que são pagas no Brasil.”
O professor questiona a legalidade da participação dos municípios brasileiros na ação. Segundo ele, as prefeituras devem ser representadas pela União, e sua atuação no exterior como litigantes é vedada pela norma brasileira.
“Só a União poderia litigar no exterior. Além disso, há uma lista de escritórios pré-selecionados, determinados pelo Itamaraty. Os municípios não podem contratar um escritório qualquer. Dentro dessa relação de escritórios, você escolhe um, em uma espécie de licitação, caso contrário você está fraudando a licitação.”
Ainda segundo ele, como a tragédia ocorreu no Brasil e tem vítimas brasileiras, o caso deveria ser tratado aqui. E, além disso, municípios que já firmaram acordos no Brasil estão litigando também no exterior.
“Essas ações já existem no Brasil. A Justiça brasileira tem dado provimentos que determinam o pagamento de indenizações parciais e de antecipação. Dizer, no exterior, que no Brasil se paga menos não é argumento jurídico. Além disso, há alguns provimentos e pagamentos aos municípios atingidos.”
Ele cita, por fim, a Lei 8,897/1994, segundo a qual a contratação de advogados ou outros especialistas “visando à defesa, judicial e extrajudicial, de interesse da União, no exterior” deve ser autorizada pelo advogado-geral da União.
Werner Grau concorda com a ilegalidade das contratações pelos municípios. Segundo ele, o contrato prevê o pagamento à banca em caso de sucesso. “Mas o que o município recebe é verba pública. Como ele abre mão de 30% de receita pública em uma contratação em que não se fez licitação para a contratação de serviço jurídico?”.
Sem proibição
Vanessa Alvarez, doutoranda em Direito Internacional na Universidade Paris 1 Panthéon — Sorbonne, discorda dos colegas. Ela considera que não há impedimento para que os municípios atuem na ação coletiva que corre no Reino Unido.
Ela cita como exemplo o acordo feito entre a Invest SP e o Invest Shangai para ampliar as relações comerciais entre São Paulo e a China. “A autorização do Senado nesses casos ocorre quando a União garante uma operação financeira entre outros entes e estados ou organizações internacionais, ou seja, a União atua como garantidora.”
Segundo ela, o argumento do Ibram no Supremo, de que haveria necessidade de autorização do Senado também para a atuação de municípios no exterior, não se sustenta por não se tratar de operação financeira.
“As hipóteses abarcadas pelo artigo 52 abrangem acordos, empréstimos financeiros, questões diplomáticas, mas não prevê expressamente que o Senado deva autorizar ações interpostas por vítimas brasileiras contra empresas estrangeiras. Isso seria ir além do texto.”
A advogada cita o artigo 23, incisos VI e VII, da Constituição, que trata da competência comum de União, estados, Distrito Federal e municípios na proteção do meio ambiente.
“O argumento do Ibram não deve prevalecer, na medida em que o próprio Ibram, supostamente sob a demanda da BHP, já parece estar fazendo essa interferência na soberania do Brasil.”
“Ora, como o Ibram pretende defender a soberania nacional sob a influência direta da BHP, a principal causadora da maior tragédia ambiental do Brasil? A meu ver é o Ibram que parece violar a soberania nacional ao representar os interesses estrangeiros da BHP dentro do território brasileiro”, conclui ela.
Outro lado
À ConJur, o Pogust Goodhead negou a acusação de captação de clientes e disse que as vítimas contrataram o escritório seguindo todas as “regras legais aplicáveis” no Brasil.
“O Pogust Goodhead tem centenas de milhares de clientes e não houve processo homogêneo para todos eles. Em termos gerais, as vítimas brasileiras, com o apoio de seus advogados brasileiros – que conheciam com detalhes os danos sofridos — contrataram o escritório inglês para postular a indenização no exterior. Essas contratações sempre obedeceram às regras legais aplicáveis.”
A banca também afirmou que não tenta impedir o andamento da ADPF que tramita no Supremo Tribunal Federal. Ao contrário, disse, a BHP, por meio do Ibram, é quem estaria tentando barrar o avanço dos processos estrangeiros.
“Resta provado que a BHP planejou e financiou a ação do Ibram no STF, com o objetivo de impedir que os municípios brasileiros continuassem suas reivindicações de indenização na Inglaterra. Após ter inicialmente negado envolvimento no assunto, a mineradora voltou atras e admitiu ter concordado em pagar R$ 6 milhões para custear este processo”, disse.
Sobre a apuração de valores pagos às vítimas, caso vença o processo na Inglaterra, o escritório disse que o os danos foram calculados “usando parâmetros decorrentes da jurisprudência brasileira” e por meio de entrevistas feitas com as vítimas.
“Os danos materiais foram calculados com base em dados e informações coletados em entrevistas e questionários preenchidos pelos afetados, incluindo relatórios técnicos e socioeconômicos confiáveis.”
“Tudo isso foi combinado com uma análise minuciosa das matrizes existentes e a avaliação objetiva de especialistas para garantir a adequação metodológica e a robustez do processo de quantificação dos valores de indenização para as vítimas”, conclui a banca.
Já o Ibram afirmou que, ao questionar a participação dos municípios na ação que corre na Inglaterra, não está se manifestando “contra a busca da justiça no Brasil e nem contra os legítimos pedidos de reparação por danos causados, mas se põe em defesa da soberania brasileira.”
“A iniciativa da ADPF, aprovada pelo Conselho Diretor, o Ibram argumenta em favor dos preceitos constitucionais de transparência e de controles nas ações judiciais, algo que se perde em processos que tramitam em jurisdições fora do Brasil”, diz.
Leia a íntegra da nota do Ibram:
“O Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) esclarece que sua atuação institucional é sempre pautada pela defesa dos interesses de todas as empresas com atividades minerais no Brasil. Como uma entidade que representa o setor, o Ibram prosseguirá com a ADPF 1178 acolhida no STF, aguardando a análise da Corte Suprema e confiante no Judiciário brasileiro.
Os termos ajustados pela BHP sobre a ADPF, em ação que segue na justiça inglesa, não interferem no andamento da análise feita pela Justiça brasileira cuja credibilidade e isenção são reconhecidas.
A iniciativa da ADPF, aprovada pelo Conselho Diretor, o Ibram argumenta em favor dos preceitos constitucionais de transparência e de controles nas ações judiciais, algo que se perde em processos que tramitam em jurisdições fora do Brasil.
Ao questionar a atuação de municípios litigarem no exterior, o Ibram não se coloca contra busca da justiça no Brasil e nem contra os legítimos pedidos de reparação por danos causados, mas se põe em defesa da soberania brasileira.”
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