Amplo acesso à justica x judicialização predatória: o tiro saiu pela culatra?
24 de julho de 2024, 18h34
O direito ao amplo acesso à Justiça se tornou uma efetiva garantia constitucional com a norma do artigo 5º, XXXV, da Constituição da República de 1988 (CF) [1] (ver Juizados de Pequenas Causas [2] e Juizados Especiais [3]). A concretização de uma justiça para todos, embasada nos ideais da chamada Constituição Cidadã, que proporcionaria igualdade perante a lei e uma série de outras garantias [4], estava, por meio das iniciativas acima destacadas, sendo cumprida. Mas alguma coisa tirou o amplo acesso à Justiça desses rumos previstos.
Nas primeiras décadas após sua implantação, tanto os Juizados de Pequenas Causas quanto os Juizados Especiais receberam causas que se encontravam listadas em suas respectivas competências, processos judiciais, até então, legítimos.
O que veio depois, em meados de 2010, assolou e assoberbou o Poder Judiciário. A chamada judicialização predatória ditou — negativamente — um novo momento em nossa história jurídica. Tal conceituação, advinda da Recomendação 127/2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sinalizou necessidades e rumos a serem adotados.
No texto, o CNJ fez considerações sobre os direitos e garantias fundamentais da CF, sobre a necessidade de coibir a judicialização predatória até ulterior definição da questão pelo Poder Legislativo, sobre notícia trazida ao conhecimento do Observatório dos Direitos Humanos, e sobre o fato de que o acesso à Justiça não pode ser utilizado indiscriminadamente de modo a dificultar o pleno exercício da liberdade de expressão.
Espécies
Na prática, são três formas desse tipo de demanda: 1) as demandas com o intuito de prejudicar terceiro; 2) as pseudolides; e 3) as lides repercutindo o abuso do direito de demandar, sendo que nestas duas últimas, observa-se uma distribuição em massa de teses fabricadas sem substrato fático e por vezes, legal, e, principalmente, o desprezo pela causa de pedir principal, valorando-se mais uma eventual indenização por danos morais que a resolução, em si, da questão levada ao Poder Judiciário.
A preocupação que gera a análise sobre a validade desse tipo de demanda e se ela estaria inserida dentro do amplo acesso à justiça, se revela mais precisamente quanto às pseudolides e às lides imbuídas do abuso do direito de demandar.
Quanto às pseudolides, a impressão é que elas não se caracterizariam como lesão ou ameaça a direito, indo, portanto, na contramão da norma constitucional, já que notícias divulgadas dão conta que inúmeras ações são distribuídas sem conhecimento dos próprios autores, ou seja, sem interesse processual e sem que os pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo estejam presentes, ferindo as regras dos artigos 2 [5], 17 [6] e 485, IV [7], do Código de Processo Civil (CPC). Para essas, espera-se um rigor mais efetivo do Poder Judiciário, já que as posturas, quando identificadas, podem configurar crimes que merecem apuração severa e adequada punição.

Já quanto às lides imbuídas do abuso do direito de demandar, que são aquelas que vão de encontro à regra do artigo 187 do Código Civil [8] (CC), acredita-se que o Poder Judiciário deve analisar a efetiva possibilidade de retorno à situação anterior posta na ação, objetivando-se a pacificação do conflito e se isso for possível, deve-se excluir da análise a aplicabilidade de qualquer outro tipo de condenação e de consectários legais em desfavor da vítima do abuso do direito de demandar, em especial os relacionados à danos extrapatrimoniais.
Ainda, em sendo caracterizado que a intenção da ação se tratou de um abuso de direito (que poderia ter sido resolvido de forma administrativa, por exemplo), apenas com o intuito de receber indenização, abrir-se-ia à possibilidade de ação de regresso pelo fornecedor contra o autor, por perdas e danos. Adotando-se medidas como essas, a consequência lógica seria uma redução substancial do volume de distribuição de novas demandas.
Válvula de segurança
O que se espera é que o Poder Legislativo, consoante sinalizado pelo CNJ, defina a questão e entregue uma válvula de segurança para que o juiz da causa possa resolver os conflitos de direito, possibilitando, a um só tempo, o amplo acesso a Justiça – mas com regras definidas sobre o que seria lesão ou ameaça a direito – e sem que a decisão possa contribuir com o acréscimo exacerbado de novas demandas, que têm avolumado o Poder Judiciário, dando, ao final, eficácia horizontal aos valores constitucionais. Iniciativas de tal ordem poderiam evitar que a intenção do decantado amplo acesso à Justiça não deságue em águas reversas, prejudicando não somente os jurisdicionados de causas legítimas, mas, principalmente, toda a sociedade consumerista, que acaba por ser penalizada pelos reflexos dos impactos decorrentes das condenações dos fornecedores de produtos e serviços em processos judiciais.
[1] Art. 5º, XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
[2] Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: X – criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas.
[3] Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.
[4] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
[5] Art. 2º O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei.
[6] Art. 17. Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade.
[7] Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando: IV – verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo;
[8] Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!