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Estamos preparados para o futuro da patrimonialização de direitos?

22 de julho de 2024, 17h19

Por Karine Tomaz Veiga, Diogo Luiz Cordeiro Rodrigues

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O Direito Financeiro, em sua dimensão objetiva, corresponde ao conjunto das normas que orientam a atividade financeira do Estado (AFE), que compreende, em linhas gerais, a obtenção, a gestão e a aplicação de recursos com vistas ao atendimento das necessidades públicas previstas no ordenamento jurídico.

É comum que a doutrina do Direito Financeiro, ao analisar os ingressos ou entradas, atenha-se ao estudo das receitas públicas sob a óptica do orçamento público, ignorando, assim, parte substancial da riqueza pública de que o Estado dispõe para atender às demandas sociais, especialmente bens imóveis e ativos intangíveis, que escapam ao sistema orçamentário, mas integram a AFE [1].

Tal circunstância é agravada pela ênfase na ideia contemporânea de Estado Fiscal, que salienta a tributação como ferramenta preferível de arrecadação de receitas e relega à exploração do patrimônio público um papel secundário e até mesmo exótico.

Na verdade, o termo “recurso” a que alude a definição de AFE deve receber sentido amplo, de modo a incluir todo ativo controlado pela entidade como resultado de evento passado e que tenha o potencial de gerar serviços públicos ou benefícios econômicos (isto é, entradas de caixa ou a reduções das saídas de caixa) [2].

Nesse contexto, para citarmos um exemplo singelo, o Estado pode celebrar contrato para aquisição de viaturas policiais e, em virtude desse evento, passa a dispor de ativo do qual resulta a prestação um serviço (a segurança pública). Em outra hipótese, o Estado pode negociar com um agente privado o direito à exploração econômica da denominação  (“naming rights”) de um bem público de natureza corpórea (como um estádio esportivo), auferindo, com isso, entradas de caixa a partir de um ativo intangível [3]. Em ambos os casos, já é possível constatar um ativo antes (ou até mesmo a despeito) da geração de um fluxo de receita, mas o orçamento público, sozinho, é incapaz de apreender e quantificar essa dimensão da riqueza pública.

Complementaridade

Como se pode perceber, estamos aqui no campo das normas que regem e organizam o patrimônio público e a contabilidade pública patrimonial, que também integram o Direito Financeiro [4]. Trata-se de uma perspectiva complementar à do Direito Administrativo, na medida em que se preocupa não tanto com as formas juridicamente lícitas de exploração dos bens públicos, mas sim com o registro, a quantificação, a avaliação e o controle dos ativos públicos, tendo em vista a accountability democrática sobre o uso que deles se faz, somando-se, portanto, ao controle orçamentário.

Há um claro ganho didático nessa escolha, na medida em que, ao fazê-lo, ampliamos o horizonte dos financeiristas, contemplando no quadro das finanças públicas outros recursos que não aqueles estritamente classificados como receitas orçamentárias (isto é, ingressos financeiros, tributários ou não, previstos na lei orçamentária anual e reconhecidos somente quando de sua arrecadação, nos termos do art. 35, inciso I, da Lei nº 4.320/1964).

Vale ressaltar que, sem uma perspectiva patrimonial, nem sequer é possível compreender adequadamente alguns institutos previstos na própria Lei nº 4.320/1964, como o superávit financeiro, que não constitui receita pública propriamente dita (porque decorrente de receita arrecadada em exercício anterior [5]) e tampouco se confunde com mero saldo financeiro positivo, já que é necessariamente apurado em Balanço Patrimonial, como um ativo [6].

Sem falar que ainda pode ser gerado a partir do cancelamento de Restos a Pagar que libera recursos anteriormente comprometidos e reconhecidos no Balanço Financeiro, mas que agora estariam disponíveis para a abertura de créditos adicionais no ano seguinte [7]. E sobre como controlar o saldo de cada uma dessas fontes de recursos, ainda é um desafio até mesmo para os Tribunais de Contas, basta que vejamos os apontamentos recorrentes em sede de apreciação anual das contas de governo. Não raro, destacam disponibilidades de caixa incompatíveis com os valores inscritos em Restos a Pagar.

Dívida ativa

Spacca

Outro conceito que também não pode ser compreendido somente com alusões à ideia de receita pública é o de dívida ativa, formada por créditos de natureza tributária ou não tributária exigíveis pelo transcurso do prazo para pagamento (artigo 39 da Lei nº 4.320/1964). Ora, a dívida ativa consiste em um ativo patrimonial por si só, independentemente do futuro e eventual recebimento do crédito correspondente (que será, então, registrado como receita na contabilidade orçamentária) [8].

Tanto é assim que a nova Lei Complementar nº 208/2024 incluiu na Lei nº 4.320/1964 o artigo 39-A para dispor sobre a tão aguardada (embora polêmica) possibilidade de cessão onerosa dos direitos originados de créditos tributários e não tributários, inclusive quando inscritos em dívida ativa, a pessoas jurídicas de direito privado ou a fundos de investimento regulamentados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em caráter definitivo (artigo 39-A, § 1º, IV). Nestas condições, a antecipação de recebíveis, às custas de um deságio custeado pelo Erário, torna possível criar caixa disponível que, independentemente das circunstâncias, ainda dependerá de autorização orçamentária para ser executado.

Noutro sentido, a partir de lei específica que autorize a cessão, deve-se preservar a natureza do crédito que gerou o direito cedido, “mantidas as garantias e os privilégios desse crédito”, conforme dispõe o inciso I do artigo 39-A. Isto quer dizer, se determinada dívida ativa for arrecadada e gerar obrigações consequentes, todos os registros e lançamentos deverão ser capazes de permitir o rastreio das contas de entrada e de saída.

Sobre esse tema, relevante observar que a arrecadação mediante securitização de direitos está prevista para ser reconhecida enquanto receita de capital, sendo destinado no mínimo 50% dos valores levantados para os regimes de previdência social, geral ou próprio e o restante para investimentos, conforme dispõem o artigo 44 da Lei Complementar n°101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e o artigo 39-A da Lei nº 4.320/1964, incluído pela Lei Complementar nº 208/2024.

Apesar disso, em termos práticos, caso a arrecadação corresponda à dívida ativa de natureza tributária, originariamente em razão de imposto não pago pelo contribuinte, no momento da sua arrecadação, deve-se proceder com as respectivas destinações àqueles codetentores desse direito no exercício financeiro em que o contribuinte efetuar o pagamento.

Ou seja, compete ao Poder Legislativo municipal parcela das receitas tributárias, ampliando-se a base de cálculo a que se refere o artigo 29-A da Constituição [9], e às respectivas unidades gestoras responsáveis pelas funções de governo da educação e da saúde, os percentuais de 25% ou de 15% ou 12% (a depender do ente público) dos valores recebidos, que a partir do reconhecimento desses ativos poderão provisionar a abertura de dotação para a execução de novas despesas (artigo 39-A, § 2º). Ficam assegurados também, em tese, os repasses correspondentes às transferências intergovernamentais obrigatórias (artigo 39-A, § 3º) [10].

Falta de atenção

Aliás, não ignoramos que a própria Lei de Responsabilidade Fiscal reserva um capítulo próprio para a gestão patrimonial (cf. artigos 43 a 47) e que a Lei nº 4.320/1964 dedica diversos dispositivos à contabilidade patrimonial (cf. artigos 95 a 100). Também já são notórios os avanços da contabilidade geral (ou patrimonial) a partir do processo de convergência aos International Public Sector Accounting Standards (Ipsas), devidamente adaptados para a realidade brasileira pelo Conselho Federal de Contabilidade e pela Secretaria do Tesouro Nacional [11]. O que falta, no entanto, é um olhar mais atento da comunidade jurídica (notadamente a que milita no Direito Financeiro) para essa realidade, seja para fins didáticos, seja para fins pragmáticos.

Não é possível ignorar o avanço civilizatório produzido pelo conceito de Estado Fiscal, ancorado na tributação, e pelo desenvolvimento do orçamento como instrumento de controle e de planejamento governamental, inclusive no campo das receitas (tributárias ou não, como aquelas oriundas da exploração do patrimônio público). No entanto, pensamos que uma perspectiva decididamente patrimonial do Direito Financeiro, que enfatize os próprios ativos e seus valores, merece atenção renovada do mundo jurídico e dos gestores públicos, especialmente por força dos avanços da contabilidade geral não orçamentária e do manancial de oportunidades (e também da pletora de riscos) que a riqueza pública oferece para além do emprego direto da competência tributária.

 

 


[1] A riqueza pública proveniente de bens imóveis é particularmente salientada por DETTER, Dag e Fölster, Stefan. A Riqueza Pública das Nações. Tradução: Claudia Gerpe Duarte. São Paulo: Cultrix, 2016, 259 p.

[2] BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP). Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional, 10ª ed., 2023, p. 157/158.

[3] A respeito desse assunto, cf. RODRIGUES, DIOGO LUIZ CORDEIRO; SAIKI, GABRIELLA; PICCINI, ÓTHON CASTREQUINI. A exploração econômica do direito à denominação de bens públicos e os contratos de naming rights no Brasil e na França. Revista Carioca de Direito, v. 3, n. 2, p. 45-60, 2022.

[4] Em Portugal, a perspectiva patrimonial do Direito Financeiro é ressaltada sem maiores polêmicas. Confira-se, por exemplo, a lição de CATARINO, João Ricardo. Finanças públicas e direito financeiro. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 22.

[5] BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP). Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional, 10ª ed., 2023, p. 519.

[6] Segundo o MCASP, “o objetivo principal do Balanço Financeiro é…evidenciar todas as movimentações financeiras de entradas e saídas que impactam o caixa e equivalentes de caixa em um exercício financeiro, possibilitando assim, a apuração do resultado financeiro do exercício. Isso não deve ser confundido com a apuração do Superávit ou Déficit Financeiro, visto que, tal informação é evidenciada pelo Balanço Patrimonial”. Cf. BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP). Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional, 10ª ed., 2023, p. 523.

[7] A esse respeito, a Consulta realizada ao Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (Processo 1114733– Consulta. Relator Conselheiro em exercício Adonias Monteiro. Deliberado em 17/8/2022) esclareceu que “o superávit financeiro gerado pelo cancelamento dos restos a pagar poderá ser utilizado como fonte para a abertura de créditos adicionais apenas no exercício seguinte”.

[8] BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP). Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional, 10ª ed., 2023, p. 69/70.

[9] Constituição. Art. 29-A. O total da despesa do Poder Legislativo Municipal, incluídos os subsídios dos Vereadores e excluídos os gastos com inativos, não poderá ultrapassar os seguintes percentuais, relativos ao somatório da receita tributária e das transferências previstas no § 5 o do art. 153 e nos arts. 158 e 159, efetivamente realizado no exercício anterior:  (redação dada pela Emenda Constitucional nº 109, de 2021)

[10] Vozes autorizadas, no entanto, são céticas a respeito da legitimidade das alterações implementadas pela Lei Complementar nº 208/2024. Nessa linha, cf. PINTO, Élida Graziane.  Riscos na securitização de direitos creditórios prevista pela LC 208/2024. Conjur (on-line), 09/07/24. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2024-jul-09/riscos-na-securitizacao-de-direitos-creditorios-prevista-pela-lc-208-2024/> (acesso em 16/07/24)

[11] Sobre o tema, cf. RODRIGUES, Diogo Luiz Cordeiro. Direito e contabilidade pública no Brasil: o advento dos Padrões Internacionais de Contabilidade do Setor Público (IPSAS). 2022. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.