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ANPP: proporcionalidade como princípio limitador da discricionaridade do MP

22 de julho de 2024, 11h20

Por Fernando Capez

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O Acordo de Não Persecução Penal é um negócio jurídico processual celebrado entre o Ministério Público e o investigado, assistido por um advogado ou defensor público, com o objetivo de evitar o início da ação penal. Trata-se de instrumento de política criminal, no qual o órgão da acusação, submetido a rígidos critérios legais, avalia a necessidade de sua celebração [1].

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Os requisitos estão previstos no artigo 28-A do CPP: (a) não ser caso de arquivamento; (b) confissão formal e circunstanciada dos fatos, sem alegação de tese defensiva; (c) crime sem violência dolosa contra a pessoa ou grave ameaça; (d) pena mínima cominada inferior a 4 (quatro) anos; (e) aceitação das condições oferecidas; (f) que o Ministério Público considere o acordo necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

É precisamente nesse último requisito que se encontra a controvérsia: pode o MP se recusar a negociar com o investigado que preenche todos os requisitos objetivos previstos em lei? De acordo com o entendimento de ambas as turmas do STF, “o Acordo de Não Persecução Penal não constitui direito subjetivo do acusado[2].

De fato, essa é a primeira impressão deixada pela oração subordinada adverbial condicional localizada no final da cabeça do artigo 28-A do CPP: “(…) desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime[3].

A questão, no entanto, não se esgota aí

Não significa que o Ministério Público está autorizado a ignorar os requisitos objetivos previstos em lei, a fim de excluir certos crimes da incidência do benefício. A discricionariedade deve ser empregada em cada caso concreto e mesmo assim, caso o juízo de conveniência e oportunidade afronte algum princípio constitucional, a recusa pode ser objeto de controle jurisdicional, nos termos do artigo 5º, XXXV, da CF (princípio da indeclinabilidade da prestação jurisdicional).

Não existe, portanto, liberdade absoluta para estabelecer critérios abstratos e apriorísticos para a recusa em negociar com quem se encontre sob o alcance da norma despenalizadora do ANPP. Todo agente público, desde o mais alto nível ao mais baixo patamar hierárquico está indeclinavelmente vinculado ao princípio da legalidade administrativa, segundo o qual, só pode fazer estritamente o que a lei o autoriza.

Nesse sentido, a lição de Renato Ferraz: “O administrador público não tem vontade. Não tem desejo. Ele é um mero executor do ato. mero executor da lei, vale dizer, sua conduta tem que ser pautada na legalidade constitucional”. [4]

Lenio Streck, na mesma linha, observa com a habitual precisão que: “Se no ato administrativo discricionário é certo que o administrador está livre de uma aderência absoluta à lei, nem por isso seu poder de escolha pode desconsiderar o conteúdo principiológico da Constituição”. [5]

A tênue linha divisória que separa o ato discricionário do arbitrário é ainda mais sensível quando inserida no âmbito criminal, no qual a recusa deve estar subordinada aos princípios constitucionais derivados da dignidade humana.

Como já tivemos a oportunidade de escrever em nosso Curso de Direito Penal, “os princípios constitucionais e as garantias individuais devem atuar como balizas para a correta interpretação e a justa aplicação das normas penais[6]. Evidentemente, isso também ocorre em relação às normas processuais, na medida em que o devido processo legal está para Processo Penal, como a dignidade humana se encontra para o Direito Penal.

Esse foi o modelo dogmático trazido pela CF de 1988, alicerçado no Estado Democrático de Direito. Desse modo, o exercício de uma prerrogativa processual por parte do Parquet deve ser autorizado pela lei e pelos princípios constitucionais que a informam. Sem isso, o suposto direito da acusação se transforma em ato arbitrário, deslocando o centro gravitacional da persecução penal para fora do âmbito de juridicidade.

No caso do ANPP, a discricionariedade está condicionada ao princípio da proporcionalidade. Não pode o Ministério Público adotar critérios próprios e subjetivos para excluir do Acordo determinadas infrações penais, enquanto oferta essa possibilidade para crimes de maior intensidade de lesão ao bem jurídico. Os parâmetros de gravidade para o ANPP já estão fixados pelo CPP e basicamente se arrimam em um tripé: ausência de violência, pena mínima leve e aceitação do erro pelo infrator.

Fora isso, a avaliação “discricionária” começa a assumir ares de arbitrariedade.  Por essa razão, é decisiva a incidência do princípio da proporcionalidade a fim de balizar os critérios adotados pelo titular da persecução penal, atuando como bússola interpretativa. Tem-se admitido, por exemplo, o ANPP para com violência real, como o homicídio culposo na condução de veículo automotor, enquanto se nega o mesmo direito a infrações cometidas por palavras ou opiniões.

Importante destacar que não se está a dizer que ofensas, inclusive as de conteúdo discriminatório, não devam receber a devida retribuição penal. São crimes e como tal devem ser tratados. No entanto, dentre as diversas consequências legais que decorrem da realização desses delitos, está a possibilidade de submissão ao ANPP.

O mesmo ocorre com o homicídio culposo, no qual a ação delituosa ceifou vidas humanas. Não há justificativa, com base no princípio da proporcionalidade para tratamento preferencial a um crime de morte em relação a outro sem violência, com base no vago argumento do risco vago e residual de que a opinião possa influenciar alguma ação violenta futura.

Finalidade despenalizadora

O ANPP tem finalidade despenalizadora e visa a evitar a excessiva judicialização para crimes que, ao final, não serão punidos com pena privativa de liberdade. Negar-se ao investigado o cumprimento de penas restritivas de direito mediante um Acordo, para obrigá-lo a suportar todo o longo desenrolar do processo, para receber as mesmas penas oferecidas no acordo, é fazer mal uso da relação processual, desvirtuando sua finalidade para transformá-la em pena autônoma.

É o processo como pena, já que o modelo estigmatizante e traumático do modelo brasileiro promove o etiquetamento social dos acusados, o chamado labelling approach. Por outro lado, o ANPP para delitos de palavras, mesmo ultrajantes, pode produzir efeitos restauradores e impulsionar o ofensor para atuar como catalizador da pacificação social.

A postura revanchista de negar o Acordo a quem preenche os requisitos objetivos previstos em lei, enquanto se estende a negociação a outros crimes de lesão efetiva, viola o princípio da proporcionalidade e é causa de nulidade absoluta. “Nesse caso, a formalidade violada não está estabelecida simplesmente em lei, havendo ofensa direta ao Texto Constitucional, mais precisamente aos princípios constitucionais do devido processo legal[7].

A esse respeito, chama a atenção importante julgado do Superior Tribunal de Justiça: “O acordo de não persecução penal foi instituído com o propósito de resguardar tanto o agente do delito, quanto o aparelho estatal, das desvantagens inerentes à instauração do processo-crime em casos desnecessários à sua devida reprovação e prevenção do delito. Por constituir um poder-dever do Parquet, o não oferecimento tempestivo do ANPP desacompanhado de motivação idônea constitui nulidade absoluta[8].

Recusar de antemão o oferecimento do Acordo em relação a investigados que preencham os requisitos legais, não se equipara a discricionariedade, mas descumprimento da lei, provocando nulidade absoluta, a qual pode ser declarada ex officio pelo Poder Judiciário. Mesmo sob a influência do funcionalismo teleológico de Roxin, o Direito deve manter seu compromisso com a dogmática e a ciência jurídica, evitando tratamento desproporcional a infrações de diferentes níveis de lesão, motivado por  premissas ideológicas ou promocionais, de conformação midiática.

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[1] CAPEZ. Fernando. Curso de Processo Penal. SP: Saraiva. 31ª ed, 2024, p. 89

[2] STF, Embargos de Declaração no HC 234.145-MG, relator Min. Cristiano Zanin, 1ª Turma, j. 26.fev.2024, v.u.

STF, Ag. Reg. no HC n. 241.715-PR, relator Min. Edson Fachin, 2ª Turma, j. 01.jul.2024, v.u.

[4] FERRAZ, Renato, Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana). Ed. Clube dos Autores, 1ª ed. 2014, p. 54.

[5] STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica. Ed. Casa do Direito, 2017, p. 09

[6] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Geral. SP: Saraiva, 28ª ed. 2024, p. 7

[7] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. SP: Saraiva. 31ª ed. 2024, p. 444.

[8] STJ, 6ª Turma, rel. Min. Laurita Vaz, AgRg no HC n 762.049/PR, DJe de 17 de março de 2023. ((Informativo 769 – STJ)