Processo Familiar

Sobre as críticas ao anteprojeto de reforma do Código Civil

Autor

  • é doutor em Direito Civil pela USP mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco professor de Direito Civil na Escolas da Magistratura e da Advocacia diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFam membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) ex-assessor na Câmara dos Deputados da relatoria-geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro autor e co-autor de livros e artigos jurídicos.

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21 de julho de 2024, 8h00

Tão logo a Comissão de Juristas encarregada, pelo Senado, de elaborar um anteprojeto de lei para reforma do Código Civil entregou ao presidente Rodrigo Pacheco o resultado do seu trabalho, para a análise do Poder Legislativo, surgiram críticas ao texto, emanadas de pessoas e instituições que, propositadamente, se omitiram de participar dos trabalhos da comissão, quando convidadas ou instadas a fazê-lo.

Já tive a oportunidade de escrever anteriormente [1] que essas manifestações constituem verdadeira constante histórica em todos os processos de codificação. Quando se promulgou o Código francês, acusaram-no de refratário ao progresso homens tão ilustres quanto Benjamin Constant, Chenier, Guinguené e outros. Criticaram-no porque não continha nada de verdadeiramente novo, nenhuma criação legislativa que imprimisse à sociedade francesa um caráter próprio e duradouro, não sendo mais, diziam, do que uma tradução do direito romano e dos costumes, reduzida a artigos numerados e operada a partir das Institutas de Justiniano ou das obras de Domat e Pothier [2].

Interessante ressaltar que durante a tramitação do projeto de lei que deu origem ao atual CC/2002, e que a maioria dos críticos de hoje prefere manter intacto, já se atacava a redação então projetada por sua desatualização [3]. Para o querido e saudoso professor Junqueira de Azevedo, o projeto era ultrapassado e autoritário e seria “preferível manter o atual Código Civil com todas as leis posteriores do que colocar, no seu lugar, um projeto que já nasce ultrapassado[4]. Editorial de O Estado de S. Paulo da época registrava as “divergências quanto ao ‘avanço’ ou à ‘timidez’ do projeto do novo Código Civil. Para uns, o projeto rompe princípios jurídicos há muito arraigados na sociedade brasileira, buscando inovações nem sempre consentâneas com nossos melhores costumes. Para outros, o projeto está longe de satisfazer às necessidades de modernização normativa exigidas pelas relações – interpessoais, familiares, negociais e de todo gênero – da vida contemporânea. (…) Algumas críticas se prendem à circunstância de o projeto não incorporar certas inovações que já são objeto de outros projetos de lei em tramitação no congresso”.

Em 1999, durante a 17ª Conferência Nacional da OAB, foi aprovada uma moção sugerindo “a rejeição do Projeto de Código Civil ora em tramitação no Congresso nacional, por entender desnecessária a codificação de leis de Direito Civil[5].

Sempre assim

Eis que passados mais de quatro lustros de vigência de um Código que se dizia “nascido velho”, e que na maioria de suas disposições se manteve praticamente intocado, mal foi concluído o texto elaborado pela Comissão de Juristas, repetem-se as críticas “desconstrutivas” ao movimento reformista, já verificadas nos processos de codificação anteriores (1916 e 2002). As objeções de agora coincidem com a entrega do anteprojeto. Aliás, sempre foi assim.  Os ataques coincidiam com a movimentação dos projetos. A cada votação eles se repetiam e se renovavam. Quando o anteprojeto vier a ser finalmente protocolado no Senado, voltaremos a enfrentar essa mesma onda de contestações.

Spacca

A primeira e mais repetida das críticas, e igualmente uma das mais injustas, refere-se à velocidade com que foi elaborado o texto pela comissão, como se a reforma do Código Civil já estivesse pronta e acabada. E, não obstante estarmos diante de um mero anteprojeto, não custa lembrar que foram seis meses de intensos trabalhos, permeados por quatro audiências públicas, realizadas nas cidades de Brasília, São Paulo, Porto Alegre e Salvador, além de outros eventos temáticos. À guisa de exemplo, apenas no âmbito específico da Subcomissão de Direito das Sucessões, da qual fui relator, foram realizadas outras quatro reuniões abertas, com participação presencial e virtual de representantes da comunidade jurídica, sendo duas na sede do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp); uma na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e a última na Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp).

Velho estratagema

Tenho visto alguns textos escritos por professores e acadêmicos, que analisam superficialmente as proposições constantes do anteprojeto, pinçando os pontos de discordância para veicular manifestação nitidamente política, de oposição ao movimento de reforma e de ataque ao trabalho desenvolvido pela Comissão nomeada pelo Senado pois, na maioria das vezes, nada é proposto em relação aos dispositivos criticados, senão a mera supressão, ou mesmo a não apresentação ou arquivamento do anteprojeto como um todo. Em algumas dessas publicações, são apresentadas conclusões  no sentido de “tentar impedir que a atual proposta de mudança do Código Civil siga avante[6].

Fala-se, por exemplo, em “insegurança jurídica” no que toca às propostas sugeridas para incorporar a expressão “ou norma de ordem pública”, no inciso VI do artigo 166 e para incluir a “função social” como causa de nulidade contratual, no artigo 421-A, o que estaria na contramão da doutrina e da jurisprudência consolidadas. Esquecem os críticos de mencionar que a violação a norma de ordem pública, como causa de invalidade, já se encontra prevista atualmente no CC/2002, no parágrafo único do artigo 2.035 [7], sem que nunca se tenha dito que aquela redação gerava insegurança, nem se tenha jamais proposto a sua revogação.

Vale, aqui, reproduzir afirmação do professor Miguel Reale, quando, no passado, respondeu a crítica semelhante: “Velho estratagema esse o da invocação da ‘incerteza jurídica’ para se impedir a realização concreta do direito!  Pois bem, se há algo que prevalece nos horizontes da Ciência Jurídica contemporânea, e é bem que o saibam certos pregadores de ‘modernidade’, é o reconhecimento de que, sem a participação criadora do juiz, não se realiza direito de cunho efetivamente social” [8].

Lacração

O que chama a atenção nessas manifestações, infelizmente, não é o acerto ou desacerto das críticas, mas a ausência total e absoluta de qualquer contraproposta ou sugestão de aprimoramento, senão a amputação dos dispositivos.

No Direito de Família, contesta-se o divórcio unilateral; a inclusão automática do nome do pai no registro de nascimento, nos casos de recusa ao exame de DNA, pelo artigo 1.609-A, ou a regulamentação do registro da união estável no Livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais, entre outros temas. Ora, a regulação jurídica da família, no Código atual, talvez constitua um dos poucos temas em que a necessidade de atualização legislativa é praticamente consensual. No lugar de se aguardar a tramitação legislativa, com o início dos debates parlamentares, oportunidade em que emendas podem ser apresentadas, inclusive para retirada ou acréscimo de artigos, pretende-se, de forma pouco democrática, interditar o debate ab ovo.

No Direito das Sucessões, até mesmo nos temas em relação aos quais se reconhece a necessidade de mudança legislativa, como ocorre com a sucessão do cônjuge, nada se propõe, limitando-se a atacar a solução proposta pela comissão sem apontar qualquer outra alternativa que resolva o grave problema  que decorre do direito de concorrência sucessória (artigo 1.829, I e II) de cônjuges e companheiros com descendentes e ascendentes, principalmente quando o casamento ou a união estável estivessem submetidos ao regime de separação convencional de bens, alvo de grande rejeição da população em geral. Ninguém aceita mais que a escolha do casal pelo regime de incomunicabilidade de bens não se estenda para após a morte. A situação torna-se ainda mais dramática nas famílias recompostas, em que o novo cônjuge, normalmente mais jovem ou com menos tempo de casamento, pode concorrer com os filhos unilaterais do falecido, sobre o patrimônio construído no relacionamento anterior ou adquirido por sucessão.

O ponto em comum a todas essas discordâncias, a par de desmerecer e desqualificar o trabalho da Comissão de Juristas, foi o de combater a própria ideia da reforma, tentando, quiçá, obstar a propositura do projeto, coibindo qualquer discussão na origem, para manter o Código Civil de 2002 tal como está, com todas as suas assincronias, defasagens e incompletudes, denunciadas desde a sua aprovação.

De modo geral, as críticas são sempre bem-vindas, especialmente quando imantadas no escopo de contribuir para o aprimoramento do trabalho. Imaginar uma proposição legislativa imune a censuras exigiria que a obra legislativa fosse dotada da perfeição de que carecem todas as obras humanas. Implicaria imaginar um legislador mundividente, de talentos ilimitados, a ponto de redigir um texto tão perfeito e tão completo que, apesar das mudanças dos tempos e dos costumes, sempre haveria de conter previsão e solução para todos os casos.

No entanto, a formulação da crítica exclusivamente destrutiva, sem qualquer intuito de aprimoramento, denota apenas espírito emulativo e de verdadeira “lacração”, tão comum nos dias atuais. É uma pena que no interior das academias ainda prevaleça essa espécie de conduta que pouco ou nada contribui para o debate acadêmico saudável e respeitoso.

 


[1] Cf. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação, recodificação do direito civil brasileiro. 1. ed. São

Paulo: Saraiva, 2011, p. 404.

[2] Cf. MANRESA Y NAVARRO, José Maria. Comentários al Código Civil Español. Madrid:Imprenta de la revista de legislación, 1907, p. XIII-XIV.

[3] A partir da primeira publicação do texto do anteprojeto, em 1972, diversos setores da comunidade jurídica foram chamados a se manifestar. Convidado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, Caio Mário da Silva Pereira  foi o autor das críticas mais contundentes, provocando  a indignada reação de Miguel Reale .Caio Mário da Silva Pereira e Miguel Reale travaram eloqüente embate, acadêmico (e pessoal), comparável, em menor escala, às famosas réplica e tréplica de Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro ou mesmo à histórica oposição entre Savigny e Thibau.

[4] Jornal Tribuna do Direito, março de 1998, p. 18.

[5] Jornal O Estado de São Paulo, de 09/01/2001.

[6] https://www.migalhas.com.br/quentes/411165/nova-edicao-da-revista-do-iasp-aborda-o-novo-codigo-civil

[7] Art. 2.035 (…) Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

[8] REALE, Miguel. Em defesa do anteprojeto do código civil. Brasília: Câmara dos Deputados. Coordenação de Arquivo. Centro de Doc. e Inf., s/d.

Autores

  • é doutor em Direito Civil (USP). mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP), membro da Comissão Especial do Senado para Reforma do Código Civil (relator da Subcomissão de Sucessões), professor e advogado.

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