A decisão judicial não é uma singularidade! Sou um daqueles fascinados pelo espaço, pela cosmologia. E o big bang é, sem dúvida, o modelo mais aceito pelos físicos acerca da origem do universo. No início havia uma singularidade em que tudo nela concentrava-se e, em um instante, ocorreu a grande expansão originando os tipos de matéria, o espaço, o tempo e a gravidade. Mas, para físicos e especialmente para teólogos a pergunta de um bilhão de dólares é: o que havia antes? (Deus, a causa não causada?).
Com essa questão cosmológica pretendo traçar um paralelo ao modelo do realismo jurídico norte- americano que foi incorporado empiricamente no Brasil. Evidentemente, o realismo jurídico não se sustenta como uma teoria do direito. Mas, é um modelo empírico adotado por juízes e tribunais em que transforma o Direito (retirando sua cientificidade) em instrumento (meio) para adoção de finalidades, tornando-o uma modalidade de teoria do poder.
Conceito
Brian H. Bix afirma que: “‘Realismo jurídico’ é o rótulo que foi dado a um grupo de teóricos norte-americanos nas primeiras décadas do século 20, que desafiavam as ideias dominantes da época, na academia e na comunidade jurídica, sobre a argumentação e a interpretação judicial e a aplicação da lei” [1].
A ideia fundamental do realismo jurídico é a instrumentalidade do Direito como um meio para atingir os resultados socialmente relevantes (na visão do julgador). Nessa perspectiva, há uma afronta à visão formalista do Direito e ao que ficou denominada de “teoria mecânica do direito”, a qual baseia-se na formalidade e no silogismo entre o fato apresentado e o Direito posto a ser aplicado.
Para os realistas, tal modelo não é suficiente na busca por um ideal de justiça, ou seja, não basta para a solução do caso o magistrado buscar no ordenamento jurídico normas postas, sendo necessário, com o uso de sua experiência (e até mesmo o conhecimento privado do juiz), trazer elementos, ainda que não jurídicos, para “azeitar” e solucionar o caso concreto. Portanto, há uma separação entre teoria do Direito e prática do Direito (aqui entendido como técnica). Essa separação deu ênfase ao realismo jurídico na decisão judicial.
Movimento antidemocrático
Assim como já escrevi aqui nesta ConJur, no artigo denominado O critério da decisão jurídica é uma questão de democracia, o realismo jurídico é um movimento antidemocrático, pois não faz uso de uma criteriologia que respeita, nem mesmo, a separação entre os Poderes do Estado. Desrespeita a teoria das fontes do Direito. Em países em que a legislação é formulada por meio de processo legislativo democraticamente verificável, a lei segue como fonte primária do Direito. Aliás, é a lei que reconhece a jurisprudência como fonte do Direito e não a decisão judicial que reconhece a lei.
A Constituição apresenta-se politicamente, historicamente e juridicamente com sua importância superior e atribui a máxima importância à lei. Porém, os realistas não só relativizam as fontes, como também as próprias decisões judiciais depois de proferidas. Nem mesmo os tribunais uniformizam sua jurisprudência; aplicam precedentes quando entendem por bem, senão apenas afirmam tratarem-se de precedentes persuasivos.
O realismo jurídico distorce a visão do magistrado, o qual vê o Direito de soslaio. Passa a integrar o magistrado em função nitidamente política, enquanto o Poder Judiciário é Poder político do Estado, mas que não está autorizado a fazer política. Deveras, ao Poder Judiciário cabe o controle concentrado e difuso de constitucionalidade, sendo esta sua função política restrita e, no mais, deve aplicar a lei, pois tanto o Poder quanto seus membros estão submetidos à lei nos termos do artigo 5º da Constituição Federal.
Palpites, intuições e visões
Contudo, de forma sorrateira e com a aquiescência dos mais de um milhão de advogados e a omissão da maior parte da doutrina e das academias jurídicas (muitas vezes enceguecidas pelo debate político/ideológico), o realismo jurídico toma espaço no Poder Judiciário brasileiro. Com isso, ganham relevo os fatos juridicizados com base na percepção pessoal ou política do julgador (política judicial), que passam a dar azo às “decisões judiciais” embasadas em palpites, intuições e visões de mundo do magistrado, muitas vezes sem sequer fazer uso de fundamentação jurídica, isto é, passando a ser decisões de autoridade (e não de direito).
Para os realistas mais radicais, não há Direito antes da decisão judicial. É a decisão judicial que cria o Direito. Ora, se não houvesse Direito antes da decisão judicial, então o que daria causa a existir o próprio juiz que lavrará a decisão? Porventura o concurso público não é regulado pelo Direito? Porventura a nomeação e posse do magistrado não são regulados pelo Direito? E houve alguma decisão judicial para isso? E mais, as pessoas quando firmam contrato e cumprem suas cláusulas sinalagmáticas não exercem direitos e deveres? Quando acordamos e ligamos a luz elétrica em nossas residências não acionamos uma relação consumerista com uma concessionária de serviço público ao qual há um contrato? Quando a Administração contrata um privado por meio de licitação e este não cumpre as obrigações sendo punido administrativamente não houve também a aplicação do Direito? Reduzir a existência do Direito ou condicionar sua formulação a decisão judicial é algo absurdo! Apenas criaria incertezas…
No mesmo nível está a afirmação de que o Direito é o que os tribunais dizem o que ele é. Ainda que adotada a teoria de Niklas Luhmann [2] acerca da centralidade do tribunal no sistema do Direito é, a meu ver, necessário realizar uma distinção, qual seja: sistema do Direito é uma coisa e ordenamento jurídico é outra.
Quando Luhmann fala do sistema do direito refere-se a um dos sistemas sociais, tais quais: sistema da economia, sistema da religião, sistema educacional, dentre outros. E cada um desses sistemas possui um código próprio de atuação e diferenciação, bem como organizações próprias. No caso do Direito o código é o lícito/ilícito ou constitucional/inconstitucional, sendo suas organizações bem conhecidas: tribunais, ministério público, advogados, defensorias, procuradorias etc.
O fato de o tribunal estar no centro e os demais na periferia não significa validar o realismo jurídico, ao contrário, Luhmann não se preocupa com o “como se decide” a questão jurídica, mas preocupa-se com “quem decide” a questão jurídica. Daí a centralidade dos tribunais no sistema social do Direito. Destarte, o “como decide” é uma questão da teoria do Direito e “quem decide” é uma questão da sociologia do Direito.
Essa é uma noção importante, pois se o tribunal está no centro do sistema jurídico, o parlamento está no centro do sistema político, sendo este a fonte primária do Direito. Uma vez produzida a lei (fonte formal e primacial do Direito) não pode o magistrado com sua visão realista querer atualizá-la ou derrogá-la com base em sua experiência. Para os realistas, o magistrado pode exercer um controle sobre a lei vigente com base na razão material de sua existência, o que para os formalistas é uma atuação política que cabe exclusivamente ao parlamento. Salvo, se por uma questão de mutação constitucional a lei tornar-se inconstitucional.
Positivismo fático
Ora, mesmo Oliver Wendell Holmes (1841-1935), tido por um dos principais realistas, não defendia uma atuação judicial ilimitada. O que, assim como no modelo do Big Bang, houve por parte dos realistas uma expansão quase sem limites. Mas assim como no modelo do Big Bang pergunta-se sobre o antes.
No caso do Direito, é uma pergunta fácil de ser respondida. Antes da decisão judicial, queiram ou não os realistas, há Direito! Não há um não Direito… Pois até mesmo para que haja a decisão jurídica há um processo (judicial) precedente que é regulado pelo próprio Direito. O juiz em sua atuação está limitado por regras de atribuições e competências que são regras jurídicas. E mesmo para tornar-se juiz há um Direito precedente.
Esse realismo jurídico não passa de um positivismo fático, o qual possui como elementos fundamentais o livre convencimento do juiz e a livre apreciação da prova. Esses elementos são retoricamente utilizados para contrariar o sistema de provas tarifadas, mas são instrumentos diários de discricionariedade judicial forte que leva ao autoritarismo judicial nos foros em geral.
O livre convencimento do magistrado, em última análise, transforma cada juiz em uma singularidade, enquanto os magistrados fazem parte de um sistema do Direito (democrático). Hobbes, em seu Leviatã, já cuidava do “decisionismo”, e mesmo Carl Schmitt [3], ao criticar Kelsen, não deixa escapar o fato de que ideias personalíssimas possuem raízes históricas na monarquia absolutista (aqui insiro a decisão de acordo com a consciência).
A decisão judicial não pode ser ato de vontade, mas deve ser ato de conhecimento. Até porque a verdade científica não é uma questão de vontade ou de convenção (critério numérico), mas de conhecimento!
Lenio Streck afirma que: “Portanto, a decisão judicial – no âmbito do realismo jurídico – passa a pôr o Direito; é o juiz quem constrói um Direito novo, põe um fato social (daí o positivismo fático, alcunha criada por Luis Alberto Warat). Dessa forma, a vida do Direito é ‘experiência’ (um Direito empiricamente praticado, seguido, aplicado)” [4].
No modelo do realismo jurídico, também compreendido como positivismo fático, há uma relativização das normas jurídicas. Há um problema na intersubjetividade da linguagem do Direito, ao passo que pretende-se resolver a questão jurídica por meio da singularidade da autoridade judiciária, retirando, desta forma, a autonomia do Direito.
Com essa relativização dos institutos e conceitos jurídicos e liquefação semântica dos signos, passa o tribunal a ser a singularidade do sistema jurídico, e não mais apenas o seu centro. E se cada magistrado ou tribunal é uma singularidade, não há coerência no Direito, não há integridade. Visão esta que é desconstruída pela teoria da integridade de Ronald Dworkin e pela teoria da crítica hermenêutica do direito (CHD) de Lenio Streck. Assim como o modelo do Big Bang desbancou outros modelos cosmológicos.
Em reforço à minha argumentação, invoco o físico brasileiro Marcelo Gleiser, mundialmente reconhecido e professor titular de filosofia natural, física e astronomia da Dartmouth College (EUA), que afirma: “O Big Bang não era o único modelo na praça. Outros modelos cosmológicos, descrições matemáticas do Universo baseadas nas leis da física, haviam sido propostos. Um deles, chamado modelo do estado padrão, argumentava que o cosmo tinha uma idade infinita, isto é, que era eterno e que não mudava com a passagem do tempo. Porém, de todos eles, apenas o Big Bang era capaz de explicar de forma natural a existência da radiação descoberta por Penzias e Wilson” [5].
Desvio de finalidade
A decisão judicial (prefiro dizer decisão jurídica) não é um acidente. Quero dizer, não é um acaso, uma aleatoriedade do magistrado de plantão. Senão, bastaria lançar uma moeda ao alto! Há o princípio da segurança jurídica, assim como existem os princípios filosóficos da causalidade e da imputação. É necessário o mínimo de previsibilidade. Portanto, o ordenamento jurídico possui uma consciência própria no que tange às suas normas e essa consciência é expressada na intersubjetividade da linguagem dos juristas e não na linguagem privada do juiz. Não há singularidade no Direito! No Direito não existem deuses, nem a “partícula de Deus”. No Direito só existem normas aplicadas por pessoas humanas feitas da matéria mais comum que há no cosmos, isto é, carbono.
Desta forma, o modelo do realismo jurídico não apresenta critérios objetivos e democráticos e o jurisdicionado deve confiar na experiência do juiz, no seu conhecimento privado, na sua visão de mundo (e ideologias), em sua noção de justiça. Contudo, não é o que esperamos em um Estado Democrático de Direito e o que prescreve a Constituição da República de 1988.
Há a necessidade da academia, advogados e juristas realizarem a divulgação científica pertinente para demonstrar que a aplicação do modelo do realismo jurídico no Brasil é um ato atentatório à vida democrática, sendo um desvio de finalidade do Poder Judiciário.
Na física pergunta-se a razão da existência ao invés do nada. Se antes do Big Bang nada existia e na antiga filosofia grega já se afirmava que do nada, nada se cria. Há um paradoxo, que no Direito facilita logicamente afirmar que a decisão jurídica/judicial não surge do nada, entretanto, esta origem jurídica imanente não é, e não pode ser, a consciência do juiz. A consciência do ser humano é um local privado, sendo que um Direito democrático só pode emanar de um lugar público, qual seja: a intersubjetividade interpretativa do ordenamento jurídico posto. O Direito não é uma relação de força direta, não é uma vassalagem.
[1] BIX, Brian H. Teoria do direito: fundamentos e contextos. Tradutor: Gilberto Morbach. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 231.
[2] LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. Tradução: Paulo Krieger. Tradução das citações em latim: Alexandre Agnolon. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
[3] SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução: Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996. p. 104-105.
[4] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário senso incomum: mapeando as perplexidades do Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2023. p. 187.
[5] GLEISER, Marcelo. Criação imperfeita: cosmo, vida e o código oculto da natureza. 11 ed. Rio de Janeiro: Record, 2019. p. 73.