STF, marketplaces e artigo 19 do Marco Civil da Internet
19 de julho de 2024, 6h32
Na atual sociedade da informação, com a plataformização da internet e a migração da vida cotidiana para o mundo digital [1], a definição esculpida no Marco Civil da Internet de 2014 de provedores de aplicação atingiu tamanho nível de abrangência que praticamente passou a englobar, em um só conceito, diversos (e distintos entre si) serviços existentes, como redes sociais, buscadores, mensageria instantânea, nuvem, games, hospedagem, comércio eletrônico, marketplace entre outros. Essa indiferenciação conceitual vem aos poucos causando profundos problemas e questionamentos como no tema aqui levantado do julgamento do artigo 19 do MCI pelo Supremo Tribunal Federal.

O artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI) é um ponto central da discussão sobre responsabilidade dos provedores de aplicações, especialmente por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros. Atualmente, o STF possui dois casos paradigmáticos — os Recursos Extraordinários (REs) 1.037.396 e 1.057.258, que discutem assuntos de grande repercussão geral, identificados como Temas 533 e 987.
O Tema 533, sob relatoria do ministro Fux, considera o dever das empresas hospedeiras de internet em monitorar e retirar conteúdo considerado ofensivo sem intervenção judicial. Por outro lado, o Tema 987, relatado pelo ministro Toffoli, discute a constitucionalidade da exigência de uma ordem judicial prévia e específica para a exclusão de conteúdo, essencial para a responsabilização civil dos provedores por atos ilícitos cometidos por terceiros.
De maneira resumida, ambos abordam a responsabilidade dos provedores por conteúdo gerado pelos usuários e a possibilidade de remoção daqueles ofensivos a direitos de personalidade, que incitem ódio ou difundam notícias falsas com base em denúncias ou notificações extrajudiciais.
Uma questão central para o debate, porém, não tem recebido a devida atenção: a urgente necessidade de diferenciação conceitual de provedores de aplicação de internet. O Marco Civil da Internet (MCI), em seu artigo 5º, traz a definição de “conexão à internet” (inciso V) [2] e “aplicações de internet” (inciso VII) [3] — distinção que qualifica “provedores de conexão” (comumente representados pelas empresas de telecomunicações) e “provedores de aplicações” (representando, de forma ampla, os modelos de negócios digitais).
Ocorre que, especialmente no segundo caso, ao utilizar de um termo único para se referir a diferentes setores econômicos da vida digital com características completamente distintas, o MCI acaba por tratá-los de forma isonômica, o que implica desafios significativos na aplicação prática de suas normas.
Do modo como foi construída, baseada em instrumentos regulatórios do início deste século, a legislação brasileira nasceu anacrônica em relação a determinados aspectos, dentre os quais o reconhecimento das particularidades dos diferentes modelos de negócios da sociedade digital. Em outras palavras, o Marco Civil da Internet, ao colocar “em um mesmo saco” diferentes intermediários [4], como as citadas redes sociais, ferramentas de busca e marketplaces, cria diversos obstáculos à correta identificação de direitos dos usuários e respectivos deveres das plataformas no ambiente digital.
Redes sociais, provedores de buscas, streamings e marketplaces, por exemplo, são plataformas digitais que, apesar de compartilharem o papel de intermediários na web (e, portanto, serem classificadas genericamente como “provedores de aplicação”, nos termos do MCI), possuem objetivos e funções distintos que refletem as necessidades diversas de seus usuários. Redes sociais, por exemplo, são construídas em torno da ideia de compartilhamento de informações e interação social, permitindo aos usuários compartilhar uma variedade de conteúdos, incluindo textos, fotos, vídeos e mensagens pessoais.
O objetivo dessas plataformas é fomentar a comunicação e o relacionamento entre indivíduos e grupos, criando um espaço para expressão pessoal, troca de ideias e engajamento social – em um “mercado de ideias” [5]. Para essa finalidade, em tese, as transações econômicas envolvendo mercadorias não são o foco principal, embora a publicidade e o marketing digital desempenhem um papel significativo na monetização desses ambientes via interação e a atenção dos usuários.
Marketplaces, por sua vez, têm uma funcionalidade bem distinta: são projetados para facilitar transações econômicas entre compradores e vendedores. Portanto, não estruturam e não são curadores do mercado de ideias [6], mas centralizam o processo de compra e venda de bens e serviços, simplificando etapas como o processamento de pagamentos e, em alguns casos, a logística.
O design dessas plataformas visa criar ambiente conveniente e eficiente para transações comerciais, permitindo que vendedores alcancem público amplo e compradores encontrem produtos de diversos fornecedores em um único local, de modo que a experiência do usuário é essencialmente econômico-transacional, focada em aspectos como a seleção de produtos, a avaliação de preços e a conclusão de compras [7].
Responsabilização
Nesse sentido, inclusive, o Marco Civil da Internet acerta ao prever em seus princípios a “responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades” (artigo 3º, inciso VI).
É perceptível, portanto, como diferentes tipos de plataformas introduzem diferentes riscos e ameaças aos direitos dos usuários no ambiente digital. Nos marketplaces, os principais riscos incluem fraudes e questões ligadas à pirataria. Por outro lado, as redes sociais enfrentam desafios significativos relacionados à moderação de conteúdo, como a disseminação de desinformação, discursos de ódio e conteúdo extremista.
A relevância da diferenciação conceitual é tamanha que a União Europeia já o fazia desde a Diretiva de Comércio Eletrônico de 2000 [8], que reflete um momento de início de popularização da internet. Os artigos 12 e 14, que tratam da delimitação de responsabilidade dos intermediários, estabelecem regras de acordo com o tipo de serviço exercido, classificando-os em “simples transporte”, “armazenagem temporária” (caching) e “armazenagem em servidor” (hosting).
Com o passar do tempo, e acima de tudo com o maior grau de diferenciação e especialização da economia digital, o legislador europeu buscou estabelecer um quadro mais detalhado no recém promulgado Digital Services Act. De maneira resumida, o novo regulamento, além das categorias já previstas na Diretiva do Comércio Eletrônico, define regras específicas às plataformas online (art. 3º, i) e aos motores de busca online (artigo 3º, j). Desse modo, as disposições passam a ser modeladas a partir dessa diferenciação conceitual, reconhecendo e abordando as peculiaridades e impactos de cada modelo de negócios e evitando obrigações desproporcionais e descabidas.
Se partirmos do exemplo regulatório europeu, portanto, podemos dizer que sempre houve uma preocupação em não tratar a economia digital de forma monolítica, mas sim de modo a distinguir os modelos de negócios e atribuir-lhes diferentes regimes.
Também o sistema jurídico britânico faz a distinção de forma clara. De acordo com o Manual Digital Services Tax de 2020, que regula a tributação de serviços digitais, marketplaces são definidos como: “serviços online que fornecem um mercado online para bens, serviços e outras propriedades, conectando usuários que procuram algo com outros usuários que estão dispostos a fornecê-lo”. Já as redes sociais são conceituadas como modelos de negócios que têm o engajamento dos usuários como aspecto central da sua geração de valor. Ou seja, as redes sociais devem ter como objetivo principal — ou um dos objetivos principais — a promoção da interação entre os usuários (incluindo a interação entre os usuários e o conteúdo gerado pelo usuário), assim como devem disponibilizar o conteúdo gerado pelos usuários para outros usuários.
Em resposta a este nítido quadro de diferenciação, o DSA estabeleceu regras específicas para os marketplaces, a fim de que essas plataformas combatam o comércio produtos falsificados e garantam que os direitos dos consumidores sejam protegidos em transações online, o que inclui requisitos para a verificação de vendedores e a transparência na origem dos produtos vendidos. Já para enfrentar os desafios colocados pelas redes sociais, o regulamento propôs obrigações que se concentram principalmente na transparência e na responsabilidade pelo conteúdo que ali circula.
Dado o papel de tais empresas na formação da opinião pública e na disseminação de informações, o DSA enfatiza a importância de mecanismos robustos de moderação de conteúdo e a obrigação de combater a disseminação de desinformação e conteúdo ilegal. Sobre isso, é fundamental se observar que o regulamento ainda delimitou as categorias de plataformas online e de motores de busca online de muito grande dimensão, os quais, por apresentarem alcance e riscos próprios, demandam atenção e supervisão especiais.
Debates nesse sentido, inclusive, já foram travados no contexto brasileiro. Antes da entrada em vigor do MCI, a jurisprudência brasileira se valia de classificação consolidada pela Ministra Nancy Andrighi no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que identificava a existência de cinco espécies de provedores (intermediários): (i) os de infraestrutura ou backbone, detentores da rede com capacidade de processar grandes quantidades de informação; (ii) os de acesso, que adquirem estrutura dos de backbone para revender ao consumidor; (iii) os de hospedagem, que armazenam dados de terceiros; (iv) os de informação, que produzem informações divulgadas online, e (v) os de conteúdo, que disponibilizam na rede as informações criadas ou desenvolvidas por provedores de informação [9].
O Superior Tribunal de Justiça já compreendia a distinção entre os intermediários online e com base nela aplicava conjunto específico de direitos e obrigações. Por exemplo: a Corte determinou a inexistência de dever de averiguação da origem de todos os produtos que são colocados à venda por terceiros, mas intermediados por provedores online, uma vez que tal agir estaria além da atividade intrínseca ao serviço de intermediação, o que não lhes retiraria o dever de disponibilizar instrumentos para que o consumidor possa interromper a negociação, caso desconfie da higidez do produto [10].
Se hoje as discussões sobre a aplicação e a própria constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet dizem respeito à responsabilidade dos provedores de aplicação de internet, um importante passo a ser dado é, antes de tudo, definir quais provedores devem de fato ser regulados, ou melhor, objeto da decisão em questão. Ou seja, regular o princípio da responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades e em que medida cada provedor deve ser objeto de determinadas obrigações, acima de tudo com base nos riscos concretos e estrutura do próprio modelo de negócio.
O risco que se corre hoje com o julgamento do artigo 19 no STF é o de que o Tribunal mire na justa proteção da integridade da informação do mercado de ideias sob curadoria das redes sociais, mas acabe impactando negativamente em indivíduos que utilizam plataformas de comércio eletrônico — quer como espaços de empreendedorismo, quer como alternativa para compras e transações cotidianas —, justamente em razão da indiferenciação conceitual sobre “provedores de aplicações”.
Um dos desafios para a corte no julgamento das ações sobre o MCI reside, assim, em interpretar e aplicar a Lei de forma que reconheça as especificidades e os modelos de negócios emergentes no ambiente digital, responsabilizando os agentes de acordo com suas atividades. Se considerar experiências internacionais como a do DSA, o STF tem ainda a oportunidade de sinalizar ao legislador nacional um horizonte conceitual que promova uma diferenciação mais precisa entre os diversos tipos de provedores de aplicação.
Afinal, a atuação do Poder Judiciário pode e deve servir de baliza para ações do Congresso [11], estimulando a criação de horizontes legislativos que reflitam as complexidades e as evoluções do ambiente digital, beneficiando a sociedade de maneira geral e promovendo um debate legislativo mais informado e eficaz.
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[1] Sobre o tema ver Ricardo Campos, Metamorfoses do Direito Global. Sobre a Interação entre Direito, Tempo e Tecnologia. Editora Contracorrente, Sao Paulo 2022, p. 255 e ss.
[2] V – conexão à internet: a habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP.
[3] VII – aplicações de internet: o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet.
[4] Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os intermediários online podem ser definidos como aqueles que: “aproximam ou facilitam transações entre terceiros na internet. Eles proveem acesso, hospedam, transmitem e indexam conteúdos, produtos e serviços de terceiros na internet ou proveem serviços baseados na internet para terceiros.” PERSET, Karine. The economic and social role of internet intermediaries. Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, 2010, p. 09.
[5] Sobre o tema do conceito “market place of ideias” ver: Shiffrin, Steven H. The First Amendment, Democracy, and Romance. Princeton: Princeton University Press, 1990. Ingber, Stanley. “The Marketplace of Ideas: A Legitimatizing Myth.” Duke Law Journal (1984): 1 – 91.
[6] Sobre o conceito de curadoria da esfera pública, ver VESTING, Thomas; CAMPOS, Ricardo. Curadoria de conteúdo: regulação de mídias para o século XXI. In: CAMPOS, R. O futuro da regulação de plataformas digitais. Digital Services Act (DSA), Digital Markets Act (DMA) e seus impactos no Brasil*. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 37 – 66.
[7] Os marketplaces possuem ainda forte impacto social positivo em prol de milhares de pequenas e médias empresas que não pode ser menosprezado. Na América Latina, por exemplo, para quase 2.000.000,00 famílias um intermediário como o Mercado Livre representa a sua principal fonte de renda. Relatório de Impacto Ambiental 2023. Disponível em https://meli-sustentabilidad-bucket.s3.amazonaws.com/MELI_2023_POR_26e9d74b05.pdf. Acesso em: 28 jun. 2024.
[8] Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 08.06.2000.
[9] REsp 1193764/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/12/2010, DJe 08/08/2011.
[10] REsp. nº 1.383.354/SP, Terceira Turma, Min. Nancy Andrihi, j. 27.08.2013
[11] Variados são os exemplos de atuação do STF reconhecendo omissão legislativa, com consequente determinação de elaboração legislativa sanadora. Um exemplo notório foi a aplicação ao funcionalismo público das normas de direito de greve do setor privado até que o Congresso editasse legislação específica. Em tempos recentes o STF reconheceu omissão legislativa na regulamentação do direito à licença-paternidade, conferindo prazo de 18 meses para o Congresso Nacional editar a legislação pertinente, sob pena de nova manifestação da Corte definindo o prazo da licença. Da mesma forma, descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal, fixando o mesmo prazo de 18 meses para que o Congresso defina a quantidade máxima da substância que um usuário poderá portar sem que haja tipificação penal.
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