Se a liberdade é pressuposta, toda e qualquer hipótese de restrição/limitação deve estar descrita previamente em lei, com a atribuição de competência e do procedimento necessário à observância do devido processo legal.
O tema é interminável e foi retomado por Fabiano Samartin Fernandes em face da atividade profissional exercida com competência, já que provido de conhecimentos, habilidades, experiências e atitude para com o devido processo legal [formal e material]. Nos últimos tempos temos interagido na Comunidade e Academia Criminal Player, motivo pelo qual fiquei muito contente com a leitura do livro “A liberdade é a regra: o tempo na prisão institucionalizada para um inocente preso” [Emais, 2024 aqui].
A reflexão parte do pressuposto do exercício de deveres e direitos: liberdade. Embora a definição, titularidade e âmbito de incidência de entidades abstratas seja objeto de controvérsias infinitas, no ambiente democrático, ainda que com alguma variação, a liberdade é a regra.
Em face da constante e dinâmica relação entre segurança e garantias, o abandono do estado inicial de inocência somente ocorre com o trânsito em julgado, preservando a condição de arguido não condenado e, portanto, com o direito de ser considerado e tratado como presumivelmente inocente. Entretanto, diante da prevalência da mentalidade inquisitória, tão bem delineada por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Leonardo de Paula, dentre outros, persevera a decretação de prisões cautelares desprovidas de análise acurada do preenchimento concreto dos pressupostos, requisitos e condições.
Aliás, se o sistema prisional continua sob o estado de coisas inconstitucional, conforme declarado pelo STF na ADPF 347, então, com maior vigor, deve-se exigir a robusta motivação e fundamentação quanto à decretação e manutenção de prisões sem condenação definitiva.
Ponto de vista garantista
Nesse contexto é que o livro de Fabiano promove a releitura desde o ponto de vista democrático e garantista, indicando a existência de externalidades negativas ao conjunto familiar, às relações de emprego, além da estigmatização em face da prisão cautelar, principalmente em cidades menores e quando o caso é coberto pela mídia.
Por isso, o ato de prisão cautelar gera efeitos processuais diretos e, ao mesmo tempo, efeitos indiretos/colaterais, muitas vezes desconsiderados como variáveis da decisão. De qualquer sorte, a luta pela construção de um processo democrático é renovada com o trabalho de Fabiano que se inscreve na incessante luta pelo processo penal justo, no qual a prisão cautelar é a exceção, desde que preenchidos os pressupostos, requisitos e condições expressamente previstos em lei, conforme já escrevemos [com Aury Lopes Jr.] em diversas colunas antecedentes.
A obra cobre boa parte dos temas necessários à verificação das conclusões que o autor formula ao final. O mais desafiador é que os paradoxos são reiterados pela doutrina há muito tempo, contando com certa leniência do Poder Judiciário quanto às constantes violações aos direitos individuais relatados no decorrer do livro.
Com suporte nas críticas apresentadas, reitera-se a discussão sobre os cuidados e salvaguardas ao tratamento da prisão cautelar, necessariamente de não-condenados.
O problema maior é o que diante da dispersão de critérios, parâmetros e valores atribuídos aos pressupostos, requisitos e condições da prisão cautelar, torna-se complexa a atividade de verificação quanto à presença concreta de suporte fático, em geral, substituídas por frases de efeito, jargões os mais diversos, julgamentos morais e entulho doutrinário/jurisprudencial que, ao fim e ao cabo, conferem aparente motivação/fundamentação.
Entretanto, surge cada vez mais a necessidade de estabelecermos parâmetros verificáveis, sob pena de se manter o paraíso da exceção do caso concreto. Eis o desafio.