Consultor Jurídico

O que é ‘fobia metodológica’ e ‘carência fundamental de fundamentos’

18 de julho de 2024, 8h00

Por Lenio Luiz Streck

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1. Pode-se eleger os critérios ou os critérios são os do intérprete-aplicador?

Uma das funções principais daquilo que se chama metodologia (há vários “modelos”), no direito, é o de possibilitar controle racional de decisões judiciais (sentenças, acórdãos). Como diz o premiado professor alemão Bernd Rüthers, isso só se torna factível se as decisões percorrem algum caminho lógico, igualmente racional, seguindo as regras do sistema.

Sem essa racionalidade metodológica, e o socorro vem de W. Hassemer, haverá um desvio de objetivos, toda vez que, desde o ponto de vista metodológico, o julgador for livre na eleição das regras interpretativas. Isso seria algo como “cada caso tem um ‘método’ próprio”, escolhido livremente pelo decisor. Isto é, a crítica de Rüthers e Hassemer vão no sentido de que, se os “critérios” adquirem importância e sentido somente a partir da subjetividade do aplicador da lei, valerá a máxima de que o peso dos diferentes critérios depende das exigências daquele caso. Enfim, um critério ad hoc. Maleável.

O que isto quer dizer? Nada menos do que uma arbitrariedade metodológica, conforme denúncia de Rüthers [1], porque o que vale não são os critérios, mas a vontade de quem decide: cada caso possibilita, desse modo arbitrário, a que se valore de forma distinta a importância dos próprios critérios, dependendo do que o intérprete pensa.

Rüthers vai chamar a isso de “fobia metodológica”, caracterizando aquilo que Meyer-Hayoz chama de “carência fundamental de fundamentos” (grundsätzliche Grundsatzlosigkeit).

Pois bem. Digo isso para falar dos dramas do cotidiano das práticas jurídicas. Por qual razão um julgado de um tribunal superior é considerado precedente e, logo depois, já não o é, e mais tarde volta a ser? Por qual razão um precedente só é obrigatório se é da categoria dos “precedentes qualificado”? E por qual razão só é qualificado aquele precedente que se transforma em uma “regra geral e abstrata” — chamada de tese ou enunciado advindo de repetitivos? Daí a pergunta: um julgado somente se torna obrigatório depois de receber uma carga de regra geral?

Deve ser observado, ainda, que para os tribunais de piso, na prática, ao que se vê, nenhum precedente obriga (as razões estão explicadas na coluna Por que os precedentes não são obedecidos?), bastando ver as queixas cotidianas dos ministros dos tribunais superiores; vide julgamento recente do HC 913.210/SP em que o ministro Jesuíno Rissato advertiu o TJ-SP acerca do descumprimento reiterado de precedentes vinculantes do STJ, em especial a não observância do Tema 1.139 que estabelece a vedação de uso de inquéritos penais em tramitação para reconhecimento do tráfico privilegiado.

Aliás, em termos metodológicos, surge a pergunta: por qual razão se fez a dicotomia “precedente qualificado-precedente persuasivo”, sendo que os persuasivos só valem de vez em quando, a critério do próprio tribunal? Por vezes um recurso é desestimado com base em precedentes persuasivos, mas que sequer são identificados desse modo. Diz-se apenas algo como “na esteira dos precedentes…”.

2. De como a falta de uma rigidez metodológica provoca um estado de insegurança jurídica – chamado também de “jurisprudência lotérica”

Poderia citar várias incongruências nesse terreno. Não esqueçamos que aqui o espaço é reduzido. Mas existe um lugar em que esses vícios aparecem mais facilmente. Com efeito, no âmbito da aplicação, os embargos de declaração são o patinho feio do sistema. Há já uma espécie de Síndrome dos Embargos Rejeitados à Unanimidade. Trata-se de um “já-decidido”. A regra é: “nada há a esclarecer”. “Nada foi omitido”. Ou, “a decisão foi de acordo com a consciência”. Algo como “advogados, não amolem”. Na prática, essa fobia metodológica flerta com a prova do demônio: fica impossível demonstrar que houve omissão ou contradição. Faz-se, desse modo, na cotidianidade das práticas jurídicas, tabula rasa dos artigos 371, 489 e 926 do CPC (o artigo 489 do CPC está espelhado no artigo 315 do CPP).

Vamos exemplificar? Se a parte invoca a relação umbilical entre os incisos I a VI dos artigo 489 (CPC) e 315 (CPP), pode receber como resposta a clássica resposta “o recorrente quer rediscutir a prova” (mesmo que a prova nem tenha sido discutida ou o tenha sido pela metade). Veja-se o que estabelece o artigo 1.022:  Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para esclarecer obscuridade, suprir omissão e corrigir erro material, sendo que se considera omissa a decisão que II – incorra em qualquer das condutas descritas no artigo 489, § 1º.

Spacca

O que quero dizer e lembrar é que o CPC estabeleceu uma omissão ex lege, mas que é facilmente – e cotidianamente – desconsiderada. Essa omissão é decorrente de qualquer violação de um destes incisos do 489 (315):

§1º. Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente [obs: aqui entra a distinção qualificado-persuasivo] invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Se esses incisos fossem obedecidos, mais da metade dos problemas estaria resolvida. Um exemplo: já de pronto o inciso II está violado cada vez que a decisão invoca coisas como “verdade real”, “livre convencimento”, “poder discricionário”, “clamor social” – todos termos vagos e que sofrem de anemia significativa. E o que dizer do inciso VI, que inverte o ônus argumentativo? Só que a “cultura dos precedentes” conseguiu dar o drible no dispositivo, ao desclassificar precedentes à categoria de “persuasivos”. Isso tudo para início de conversa.

Ora, os embargos são muito mais importantes do que se pensa. No segundo grau de jurisdição (atenção: só existem dois graus), há situações que se esgotam nessa instância, por ausência de violação federal ou porque o tribunal cometeu várias omissões, criando-se a prova diabólica: o tribunal não examinou a prova e a parte não consegue dizer ao tribunal que ele se omitiu – e se insistir em novos embargos, leva uma multa. Nesses casos, exige-se um alta performance do causídico para levar ao STJ (outra maratona) para demonstrar a violação do dispositivo que trata do direito a manejar os embargos. É quase uma ordália pós-moderna: como provar que o tribunal se omitiu no exame da prova se é proibido discutir a prova no STJ?

Por exemplo, se a discussão no processo é sobre um conceito jurídico do qual dependerá a análise do mérito e o tribunal, em sede de apelação, entender erroneamente o sentido desse conceito? Pense-se na hipótese em que se discuta o conceito no qual esteja incluído o próprio mérito, como, por exemplo, se uma empresa tem ou não certa capacidade aferida a partir de quatro meses nos últimos dois anos e o edital não especifique se os meses são consecutivos ou não; se uma parte sustenta que os quatro meses não são ininterruptos e o tribunal não examina essa tese porque está convencido da tese contrária, há ou não omissão sanável por ED? Como resolver? Quais as chances de a parte ir ao STJ?

3. Por qual razão se despreza tanto os ED?

Observe-se que há “precedente” (lamentavelmente “só persuasivo” — sic) que diz que “Deixando a Corte local se se manifestar sobre questão relevante suscitada nos ED, violados estão os artigos 1022 e 489”. Correto. É isso. Porém, na prática…, existem “precedentes” (igualmente apenas persuasivos) que dizem que não se pode confundir ausência de motivação com fundamentação contrária aos interesses da parte… Isso quer dizer tudo e muito pouco.

E o que dizer de um “precedente” (também “apenas” persuasivo) que diz que a jurisprudência do STJ firmou o entendimento  de que as medidas atípicas de satisfação do credito  não podem exceder os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade… Ora, se examinarmos o inciso II do parágrafo 1º do artigo 489 do CPC (espelhado no 315 do CPP) veremos que o próprio precedente do STJ o viola, porque “proporcionalidade” e “razoabilidade” querem dizer tudo e nada, porque necessitariam de uma densificação. Em que sentido estão utilizados esses conceitos? Lembremos que o CPC diz que não estará fundamentada a decisão que empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso.

4. O que é preciso que uma decisão contenha para ser precedente? Quando posso utilizá-lo nos termos do artigo 489 do CPC e 315 do CPP?

É isso que quero dizer quando busco instar a comunidade jurídica para a institucionalização de uma criteriologia pela qual tenhamos condições de racionalização das decisões e não tenhamos o império de decisões ad hoc. Esse é o papel da doutrina. E não o de simplesmente fazer glosas do que os tribunais decidem – esporte preferido nas redes sociais de uma determinada camada de operadores e de uma certa doutrina.

Não esqueçamos que o “sistema” ainda está sem resposta a questionamentos como

(1) “se o STJ estabelece uma distinção entre precedentes qualificados e persuasivos, por qual razão ele mesmo utiliza os precedentes não qualificados como se fossem qualificados e rechaça recursos lançando mão de precedentes não qualificados contra outros precedentes não qualificados?”

(2) “Qual é o critério que o STJ utiliza para escolher qual é o precedente não qualificado (persuasivo) que deve ser usado para derrotar o precedente igualmente não qualificado utilizado pela parte”?

(3) “E por que precedentes qualificados podem ser derrotados pela Sumula 7?”

(4) “Como se identifica uma ratio decidendi?”

(5) “Qual é a força normativa de um precedente (qualificado ou persuasivo) diante do argumento do livre convencimento, termo indeterminado que pode ser invocado para qualquer coisa”?

Enfim, é disso que se trata quando lanço mão do velho Rüthers, também ele preocupado com o crescimento da criação judicial do direito, cujo uso chamou de “fobia metodológica”, fazendo alusão à terrível consequência, traduzida pela expressão “carência fundamental de fundamentos”.

Tem razão o ministro Luis Salomão quando diz que se você não trabalhar na faculdade o overrulling e temas que eram específicos do Direito da common law, o profissional está incompleto”. Porque, por vezes, é impossível fazer distinguishing se nem mesmo se consegue sucesso em ver apreciados embargos de declaração que tem a pretensão de enfrentar termos indeterminados, contra os quais não há ratio decidendi que resista.

Negligenciamos a adequada metodologia. Reduzimos a metodologia a “métodos” de intepretação (coisa do século 19) ou, pior, a “métodos” de pesquisa (como se o direito fosse uma questão de “método” indutivo, dedutivo ou quejandos). Pior ainda: reduzimos a metodologia a aprender regras criterialistas da ABNT. Quando, na verdade, metodologia é (ou deveria ser) muito mais do que isso. Como disse ao início: possibilitar controle racional de decisões judiciais.

Enfim, numa palavra, é preciso que os tribunais e o Judiciário em geral respeitem aquilo que a doutrina tem apresentado. O que se vê é uma adesão a pressupostos teóricos muitas vezes equivocados, destituídos de pressupostos epistemológicos, dando-se assim razão a Ferrajoli, quando diz que após o Iluminismo ocorreu um divórcio substancial entre o paradigma epistemológico dominante e a tecnologia processual e a ciência processual. E foi isso que aconteceu. Talvez por fobia metodológica dos juristas.

Isso apenas para início de conversa.

Post Scriptum: E o que fazer com a Emenda Constitucional 125?

Falei do problema do patinho feio do sistema, os embargos de declaração. Para além disso, temos hoje o problema da Súmula 7, filtro que, aplicado sem uma criteriologia, acaba sendo um dispositivo lotérico. Por exemplo, o tribunal rejeita um REsp com base na Súmula 7, dizendo que o recorrente desejava reavaliar as provas; só que, para isso, o próprio tribunal reexamina as provas. O que dizer dos casos em que o réu é absolvido por insuficiência de provas e o STJ o condena, dizendo que existem provas. Porém, para dizer isso, não teve que, exatamente, examinar a matéria de fato? Como separar fato e direito, perguntaria Castanheira Neves?

Mas isso é objeto para outras colunas, na medida em que em breve teremos a Emenda Constitucional nº 125, que será analisada neste espaço. A EC 125 carece de regulamentação. Todavia, os prognósticos que se apresentam são preocupantes. Não obstante a legislação expressamente prever que questões de matéria penal possuem relevância presumida, ao encaminhar projeto de lei para regulamentação do “filtro”, o texto formulado buscar equiparar a “relevância” à sistemática da repercussão geral no STF, ou seja: julgamentos de teses dissociadas do caso concreto. Portanto, caso o filtro da relevância seja implementado dessa forma, as perguntas aqui formuladas permanecerão sem resposta, afinal há muito venho dizendo que teses não são precedentes. Mais, sem um mecanismo de controle (reclamação), como impedir que os tribunais regionais descumpram os precedentes-vinculantes-relevantes? São mais questões que se apresentam e precisam ser adequadamente debatidas, mas isso, como disse, é assunto para uma próxima coluna…

Mientrastanto, sugiro a leitura do meu texto Relevância para que(m)? Em busca de uma efetividade perdida, que está no livro Relevância no RESP – Pontos e Contrapontos, da ed. Revista dos Tribunais. Além do meu artigo, há Georges Abboud, Gilberto Bruschi, Mona Couto, Gustavo Osna, José Miguel Medida, L. G. Marinoni, L. R. Wambier, Rennan Thammay, Rogeria Dotti e Tereza Arruda Alvim.

Esta coluna é dedicada aos advogados que, cotidianamente, fazem uma corrida de obstáculos para levar um recurso até o STJ (e STF). E, darwinianamente, apenas um ínfimo percentual consegue.

 


[1] Rechtstheorie Begriff, Geltung und Adwendung des Recht (München, Verlga, 1999, passim).