Documentos preparatórios e a cultura do sigilo na administração pública
18 de julho de 2024, 11h17
Bem antes da entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação (LAI), a Constituição de 1988 já previa o princípio da publicidade como um dos alicerces ético-jurídicos da administração pública. Faltava a tal princípio, contudo, a concretude e densidade próprias das regras jurídicas. Daí a necessidade de se criar uma lei que a um só tempo garantisse realmente o acesso à informação, com mecanismos para um controle popular efetivo, mas que também permitisse sancionar agentes públicos que insistissem em esvaziar o alcance da norma.
Assim surgiu, há mais de dez anos, a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação, ou apenas LAI, que inaugurou um novo momento de otimismo na busca de uma gestão pública mais eficiente, proba e transparente. De fato, quando entrou em vigor, a LAI sinalizou que a cultura do segredo que sempre existiu na administração pública brasileira e que tanto sufoca o interesse público estaria com os dias contados no Brasil. Os avanços causados pela LAI, é preciso reconhecer, foram muitos. O processo de digitalização da administração pública aliado às ideias de transparência ativa e passiva desencadearam ganhos de gestão, de eficiência e sobretudo de transparência nas políticas públicas. Portanto, não há dúvidas de que a LAI é instrumento fundamental para o controle popular da administração pública e, consequentemente, para a modernização da máquina pública.
Valor ético
Na verdade, a própria digitalização dos serviços públicos já traz consigo uma ideia maior de transparência, já que a comunicação em rede propicia aos administrados um maior interesse nas políticas de governo e também fornece variados instrumentos de controle da atividade administrativa. E o controle popular da administração pública, ressalte-se, é uma das mais legítimas formas de exercício da cidadania, bem como caminho sem volta para se alcançar uma administração pública inclusiva e eficiente.
A participação da população no processo de decisão estatal é uma exigência dos dias atuais, pois propicia uma conexão direta entre o administrado e a administração. A transparência pública, para além de ser um princípio jurídico, reveste-se também de valor ético, sendo por isso uma das vigas mais fortes da estrutura republicana moderna.
Esvaziamento da LAI
Dito isso, embora o artigo 3º, I, da LAI preveja a “observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção”, o que se tem visto ao longo da última década é que a cultura do sigilo, embora golpeada mortalmente pela LAI, parece negar-se a morrer.
De fato, há no seio da administração pública órgãos com maior transparência e outros com uma renitente afeição ao segredo. Em outras palavras, há diferentes níveis de transparência no setor público, fato que deve olhado com lupa e diagnosticado pelos órgãos de controle. Nessa perspectiva, há órgãos públicos que não se cansam de buscar alternativas para esvaziar a Lei de Acesso à Informação. Esses órgãos mais segredistas ainda parecem estar acorrentados à administração pública do passado, personalista e inacessível, que existia como um fim em si mesma e não um mero instrumento de concretização do interesse da coletividade. Nesses órgãos, ainda hoje, a análise de pedidos de acesso à informação passa preliminarmente por um exame de conveniência pessoal ou corporativa, o que é claramente ilegal.
A verdade pura e simples é que o ser humano não gosta de ser fiscalizado. Com o agente público não é diferente. Uma minoria de agentes públicos nunca gostou, não gosta e jamais gostará da LAI, designadamente porque tal norma permite jogar luz à atuação administrativa. E a luz, quando descortina a penumbra, normalmente traz revelações, algumas das quais desconfortáveis aos agentes públicos. Por outro lado, o bom agente público não deve temer nem odiar a LAI, mas prestigiá-la, pela simples razão de que uma atuação administrativa aberta e transparente fortalece as próprias instituições públicas e, por certo, também os agentes que as representam.
Previsão de sigilo
Embora a regra geral na administração Pública seja a transparência e a publicidade de seus atos, a Constituição de 1988 e também a LAI asseguram, de forma excepcional, a possibilidade de sigilo “quando o interesse público o exigir” [1]. Em resumo, normalmente é a transparência pública que atende aos anseios da coletividade por uma administração pública eficiente e republicana, daí a LAI ter consagrado a publicidade como um princípio de grande relevância jurídico-social. No entanto, há casos em que o interesse público é atendido não pela publicidade, mas, ao contrário, pelo sigilo.

Mauro Sérgio dos Santos, professor e doutor em Direito Público
A LAI admite o sigilo nas seguintes hipóteses: a) sigilo de Estado (nos restritos limites do rol taxativo descrito no art. 23 da LAI); b) sigilo imposto por lei específica (ex: sigilos bancário, fiscal, de operações e serviços no mercado de capitais, comercial, profissional, industrial e segredo de justiça, conforme o artigo 22 da LAI); e c) informação pessoal que viole a intimidade, a vida privada, a honra e imagem das pessoas (artigo 4º, IV e art. 6º III, da LAI).
Documentos preparatórios
Para além dos casos de sigilo previstos na Lei de Acesso à Informação, deve-se dizer que alguns órgãos com déficit de transparência têm empregado tempo e energia na busca de interpretações da LAI que permitam inverter o espírito do legislador, que, vale repetir, consagrou a publicidade como regra e o sigilo como exceção. Um dos maiores exemplos a esse respeito é o esforço interpretativo relativamente aos chamados “documentos preparatórios”.
Dispõe o § 3º do art. 7º da Lei de Acesso à Informação que os documentos preparatórios somente deverão ser tornados públicos com a expedição do ato administrativo principal. Vejamos:
“§ 3º O direito de acesso aos documentos ou às informações neles contidas utilizados como fundamento da tomada de decisão e do ato administrativo será assegurado com a edição do ato decisório respectivo.”
Já o Decreto nº 7.724, de 16 de maio de 2012, que regulamenta a Lei de Acesso à Informação, traz a seguinte definição de documento preparatório:
“Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:
(…)
XII – documento preparatório – documento formal utilizado como fundamento da tomada de decisão ou de ato administrativo, a exemplo de pareceres e notas técnicas.”
Documentos preparatórios, portanto, são estudos, notas técnicas, pareceres, minutas e outras manifestações que possuem o objetivo de subsidiar a tomada de decisão da autoridade competente. Não são atos administrativos em si, mas apenas manifestações que dão suporte à autoridade administrativa para decidir se e quando expedirá o ato.
Os documentos preparatórios, como dito, não são autênticos atos administrativos, porquanto não criam, modificam ou extinguem uma relação jurídica, mas apenas expedientes que servem como base de sustentação para a expedição do ato propriamente dito. É certo que em alguns casos a distinção entre documento preparatório e ato administrativo é bastante tênue, gerando dúvidas aos agentes públicos que atuam com essa matéria.
Em princípio, não há nada que impeça a divulgação de documentos preparatórios, dada a regra geral da ampla transparência. No entanto, há documentos preparatórios que, se divulgados precocemente, possuem aptidão para acarretar prejuízos à própria Administração ou à coletividade. Daí a razão de o § 3º do artigo 7º da LAI estabelecer que o direito de acesso aos documentos preparatórios será assegurado com a edição do ato decisório respectivo. Não se trata, pois, de nova hipótese de sigilo, mas apenas a possibilidade de divulgação de documentos preparatórios ser postergada pela Administração, nos casos em que, motivadamente, houver a comprovação de que sua publicidade antecipada poderá gerar danos ao interesse público.
Realmente há casos em que a disponibilização prévia de uma informação em determinado processo administrativo cuja decisão ainda não foi proferida pode frustrar a própria finalidade do processo. Além disso, a divulgação prematura de documentos preparatórios pode criar expectativas que muitas vezes não se transformam em realidade, gerando inconformismo e transtornos à sociedade. Em casos assim, se e quando devidamente justificados pela autoridade, é possível enquadrar tais informações como documentos preparatórios, postergando sua divulgação para momento subsequente à edição do ato decisório.
Observe-se, contudo, que é claramente ilegal e abusivo negar acesso ao processo administrativo simplesmente alegando a existência de documentos preparatórios. Não obstante, na hipótese de requisição de acesso a um documento preparatório, caso a autoridade competente, no uso de seu poder discricionário, justifique fundamentadamente que o acesso antecipado poderá redundar em danos à Administração Pública ou à sociedade, por certo que será possível postergar o acesso ao referido documento para momento posterior ao da edição do respectivo ato administrativo.
Além do mais, o adiamento da divulgação do documento preparatório não significa, nem de longe, a postergação do acesso ao processo administrativo propriamente dito. O processo administrativo, como se sabe, é em regra de natureza pública, somente se admitindo o sigilo nas hipóteses legais já mencionadas. Assim, caso exista um documento preparatório cuja publicização antecipada possa de fato colocar em risco o interesse público, caberá à autoridade competente explicitar nos autos essa condição e determinar que o acesso a tal documento somente seja permitido, nos termos do § 3º do art. 7º da LAI, após a expedição do respectivo ato decisório. Para além disso, também deverá ser reconhecido o direito de acesso aos demais atos que integram o processo, desde que não estejam acobertados legalmente pelo manto do sigilo.
Vejamos o entendimento da Ouvidoria Geral da União sobre os documentos preparatórios:
“ENTENDIMENTO OGU SOBRE ACESSO À INFORMAÇÃO Nº 05/2018
Assunto: Documento Preparatório
Entendimento: O fato de determinado documento possuir natureza preparatória nos termos do art. 7º, § 3º, da Lei nº 12.527/2011, não impede a sua divulgação. Deve haver restrição temporária de acesso apenas quando comprovado que a sua divulgação extemporânea poderia frustrar a finalidade do próprio ato ou decisão que o documento fundamentará. A negativa de acesso fundamentada na natureza preparatória do documento deve observar alguns critérios:
1) Finalidade do processo: quando a disponibilização de uma informação em um processo cuja decisão ainda não foi adotada possa frustrar a sua própria finalidade, é recomendável que esta informação somente seja disponibilizada quando da conclusão do procedimento;
2) Expectativas dos administrados: a restrição de acesso pode ser considerada também medida de cautela, necessária para zelar pela segurança jurídica e pela confiança dos administrados. É o caso de informações acerca de processos em andamento, que possam levar a expectativas que podem não vir a ser atendidas, por parte dos interessados no referido processo.”
Conclusão
Como se vê, as situações que justificam o enquadramento de documentos preparatórios exigem a devida motivação da autoridade administrativa e se fundam no princípio da segurança jurídica e na tutela do interesse público. Desse modo, não é possível à autoridade o enquadramento automático ou genérico de documentos com a chancela de “preparatórios”, com o objetivo de conferir sigilo ao processo como um todo, por ser medida claramente ilegal, desproporcional e contrária ao bem comum.
[1] SANTOS, Mauro Sérgio dos. Curso de Direito Administrativo. 4ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 34.
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