Opinião

'Machado de Assis e a administração pública': uma apresentação

Autor

  • é sócio do Espíndola & Valgas Advogados Associados mestre em Direito pela UFPR (Universidade Federal do Paraná) doutor em Direito Estado e Sociedade pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) professor do Cesusc (Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina) presidente da Comissão de Moralidade Pública do Conselho Seccional de Santa Catarina da OAB 1º vice-presidente do Ibda (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo) e membro vitalício da Acalej (Academia Catarinense de Letras Jurídicas) cadeira nº 26 — patrono José Ferreira Bastos.

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16 de julho de 2024, 11h23

A apresentação

O texto ora compartilhado aos leitores da ConJur tem por base a apresentação do livro recém-lançado de Fábio Lins de Lessa Carvalho, intitulado: Machado de Assis e a Administração Pública: o serviço público na vida e na crônica machadiana (Fórum/2024). Aos apreciadores de Machado, recomendo vivamente a íntegra do texto. Porém, se o leitor desejar seguir uma leitura mais sucinta por aqui mesmo, busquei trazer aspectos relevantes da vida de Machado e sua relação com o serviço público.

Joaquim Maria Machado de Assis é o maior e o mais estudado de todos os escritores brasileiros. O reconhecimento da grandiosidade de Machado deve-se a magnitude de sua obra nos mais diversos gêneros literários. Teve muito de inspiração — sem a qual não aflora o gênio —, mas muito de transpiração. Sempre trabalhou à beira da estafa e pôde fazer experiências que o prepararam para atingir possibilidades literárias dantes inauditas.

Uma contextualização

Do seu nascimento no Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839; dos primeiros anos no Morro do Livramento até tornar-se o mais aclamado autor brasileiro; foi um longo percurso. Se hoje a condição de negro ainda impõe sérios obstáculos, ao tempo do Brasil Imperial marcado pela chaga da escravidão, superar os obstáculos raciais para vir a ser aclamado nos maiores círculos intelectuais do Brasil do século 19, é um feito difícil de conceber. Machado é um milagre!

Naqueles tempos o Rio era um viveiro de pestilências. Sua irmã Maria morreu aos 4 anos de sarampo. A capital do Brasil era conhecida por suas doenças; viver era demais perigoso e durava-se pouco. Sua mãe Maria Leopoldina morreu tísica aos 49 anos. A amada esposa Carolina de câncer no intestino em 1904. Machado morreu com uma úlcera cancerosa na boca e sua certidão de óbito de 29 de setembro de 1908 indica “arteriosclerose generalizada”. Era gago e sofria com severas crises epiléticas, além de uma inflamação crônica nos olhos que dificultavam o ler e o escrever na medida do desejável. A média de vida dos brasileiros era de 34 anos e a dos escravizados de 25 [1].

A tuberculose; as bexigas da varíola; o sarampo; a cólera e toda sorte de doenças que em grande parte ficaram no passado, atormentavam a mundividência e a realidade dos habitantes do Rio de Janeiro do século 19 e povoam as crônicas, contos e romances machadianos. Essa percepção que nosso mundo pode desmoronar a qualquer instante; que os amigos e entes queridos podem desaparecer num átimo; dava um senso de urgência e dramaticidade que dificilmente hoje conseguimos compreender. É como estar permanentemente “à beira do eterno aposento[2].

Muitos escritores reagiam de diferentes maneiras a esse estado de coisas e à fragilidade da vida. Não à toa alguns dos românticos respondiam ao “mal do século” fazendo com que tal desencanto culminasse no anelo da morte. Machado rompeu com essa abordagem literária mais lúgubre, expressando de outro modo a ilogicidade e perplexidade da existência, na linha da filosofia schopenhaueriana.

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O pessimismo de Machado e a crueza da sua narrativa apenas encontram refrigério no seu fino humor. O humorismo e a tragicomédia da vida humana foram o método eleito para desforrar-se e fazer troça da realidade. E por que não: trazer um pouco mais de leveza à vida.

Sua obra também fascina porque decorre da mente de um homem de hábitos espartanos e moderados. Ao revés, seus textos não têm freios ou pejos morais. As traições, os assassínios, a sensualidade, as perversões, a inveja, a cupidez, a canalhice, a grandeza e especialmente a pequenez humana afloram por todos seus poros e pena de escritor. Matreiramente, fico a pensar se uma certa retidão de vida acaba por possibilitar abrir as asas para os desejos mais ocultos; a viver na imaginação o que não é vivido no cotidiano, porque se o fosse, talvez não houvesse a necessidade catártica de condensar essa humanidade na literatura.

Machado elevou a língua portuguesa a novos planos. Colocou a literatura brasileira no rol dos míticos escritores da literatura universal. Sempre que temos boas traduções e adequada divulgação da obra machadiana no exterior o resultado é um best seller. A tradução realizada por Flora Thomson-DeVeaux do clássico Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicada em 2020 pela Penguin Classics nos Estados Unidos, esgotou-se rapidamente e tornou-se um sucesso editorial.

É verdade que a falta de boas traduções no exterior e de uma percepção real ou imaginária do que seja o Brasil pelos estrangeiros ainda são entraves para um reconhecimento mundial de Machado dentre os grandes da literatura. Foi um mago em fazer da singularidade a universalidade. Mas nunca esqueçamos que as bruxarias de Machado ainda estão em curso. Independentemente de nacionalismos, uma coisa é certa: somos todos privilegiados por podermos desfrutar de Machado na plenitude de nossa língua!

Machado e o serviço público: o novidadeiro olhar de Fábio

Nesse espírito de trazer novas luzes sobre a obra machadiana, Fábio Lins de Lessa Carvalho mais uma vez inova e nos traz um enfoque ainda pouco explorado: o serviço público na vida e na crônica machadiana.

A escolha das crônicas para delas extrair uma maior compreensão da administração pública brasileira não poderia ter sido mais feliz. As crônicas são a parte da obra machadiana que mais carecem de estudos. Um dos grandes contributos do livro está em trabalhar essas crônicas sob um viés específico, não apenas sob o ângulo literário — o que já é um feito e tanto —, mas para lançar luzes na administração pública do século 19, visando compreender nossa realidade através do olhar de nosso grande escritor.

Um dos relevantes aspectos da obra de Fábio foi realizar as importantes ligações da tradição de escritores como servidores públicos, não apenas no Brasil, mas no mundo. Não são poucos. No caso brasileiro, há muitos escritores que também foram servidores públicos e estão dentre os maiores expoentes de nossa literatura. Lima Barreto, Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto, Vinícius de Morais, Graciliano Ramos, Lygia Fagundes Telles, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Euclides da Cunha, José de Alencar e Lilia Guerra são exemplos de escritores que ingressaram no serviço público. Autor que se destacou recentemente, Itamar Vieira Júnior, autor de Torto Arado, também é servidor público, atuando como geógrafo do Incra, atividade que lhe trouxe um olhar fundamental para sua obra.

Fábio também situa o leitor para compreender a administração pública brasileira no Segundo Reinado e na Primeira República, contextualizando factualmente e normativamente a vida de Machado naquele ambiente. Fornece elementos biográficos que nos auxiliam a entender a personalidade machadiana que não gostava de bajulações, ainda que cônscio de sua importância. O trabalho sério de crítico literário rendeu a Machado algumas inimizades, a exemplo do polemista Silvio Romero que o atacou grosseira e infundadamente após as críticas feitas por Machado ao livro Cantos do fim do século, onde sem atacar a pessoa, mas a obra, denunciava-o a falta de estilo.

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Na trajetória do serviço público Fábio acompanha a vida de Machado de Assis desde seu primeiro emprego, quando atuou como tipógrafo revisor de provas na Imprensa Nacional em 1855, com apenas 15 anos de idade. Com 20 anos já publicava suas crônicas nos jornais fluminenses. Ao falecer em 1908 ainda ocupava o cargo de diretor-geral de contabilidade do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas. O livro estuda e descreve sua carreira no serviço público brasileiro como: 1) tipógrafo; 2) ajudante do diretor do Diário Oficial; 3) no Conservatório Dramático Brasileiro; 4) na Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e no Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, quer como amauense (copista), primeiro oficial, chefe de seção, oficial de gabinete do ministro, diretor da Diretoria do Comércio, diretor da Diretoria Geral de Viação, secretário do ministro, diretor-geral da Secretaria da Indústria e diretor geral de contabilidade.

Por certo, tamanha ascensão funcional não se daria se Machado não tivesse competência para tanto. Por isso o livro de Fábio se debruça sobre a avaliação do desempenho de Machado no serviço público, sua capacidade, dedicação, zelo, iniciativa e vivacidade. O serviço público para Machado de Assis não era “bico”. Para chegar aonde chegou, ascendeu intelectualmente como escritor, mas também como funcionário público, carreira que lhe dava não apenas um ótimo vencimento, mas lhe possibilitava estar em igualdade com a elite do seu tempo.

Outro relevante aspecto da obra Machado de Assis e a administração pública, foi analisar as mais de 600 crônicas que nos apresentam um farto contexto daquela sociedade e daquele tempo. O texto teve o cuidado de selecionar as crônicas que melhor retratassem a administração pública brasileira. Trata-se de excelente material para se avaliar a qualidade e as carências da realidade da capital do Brasil, onde tudo estava sendo construído e o serviço público ocupava uma posição central na vida de todos.

Um arremate

Caríssimo leitor, o livro de Fábio nos descortina mais um horizonte para vasta obra de Joaquim Maria Machado de Assis. Que privilégio o Brasil ter produzido nas condições mais improváveis nosso escritor maior. Os “olhos de ressaca” da obra machadiana nos tragam para dentro do mar de um sem-número de possibilidades para compreender a complexidade da alma humana.

Euclides da Cunha conta-nos que nos estertores de Machado, um dia antes de sua morte, recebeu em seu leito a figura de um jovem desconhecido de 18 anos. Depois, soube-se, era Astrogildo Pereira [3]. Ao ouvir hesitações entre receber ou não receber o rapaz, Machado pediu para que o conduzissem até sua cama. O jovem tomou sua mão e beijou-a afetuosamente diante do mais absoluto silêncio dos presentes.

E nos relata Euclides da Cunha: “Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra” [4].

Ao fazer a apresentação do livro de Fábio Lins, tenho a sensação de um mergulho em nossa brasilidade no que ela tem de melhor. A mão de Machado está-nos estendida. Se não para a beijarmos – coisa que ele próprio acharia excessiva –, mas para caminharmos de mãos dadas com este grande brasileiro, o primeiro embaixador de nossa literatura para o mundo.

Nélida Piñon sempre afirmou: “se Machado de Assis existiu, o Brasil é possível (…) Não há motivos e nem fundamentos deterministas que impeçam a nação de cumprir os desígnios de sua grandeza[5] Inspirado nessa feliz síntese, a obra de Fábio nos exorta a lembrar que se Machado de Assis existiu, também é possível uma administração pública de qualidade a todos os brasileiros.

 


[1] AGUIAR, Luiz Antônio. Almanaque Machado de Assis. 3ª ed. São Paulo: Editora Record, 2008, p. 30.

[2] Carta a Joaquim Nabuco de 1904. Disponível em: https://fundar.org.br/wp-content/uploads/2021/06/correnpondencias-entre-machado-de-assis-e-joaquim-nabuco.pdf Acesso em 28 de abril de 2024.

[3] Esse não foi seu único momento épico. Quando adulto, Astrogildo Pereira teve relevante destaque como jornalista, escritor, crítico literário e militante comunista, sendo um dos fundadores e principais dirigentes do Partido Comunista Brasileiro – PCB. Dentre suas obras, publicou o livro: Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos (1959).

[4] Academia Brasileira de Letras – ABL. Guardados da memória. Disponível em: https://www.academia.org.br/abl/media/RB%2056-GUARDADOS%20DA%20MEMORIA.pdf Acesso em 28 de abril de 2024.

[5] PIÑON, Nélida. Discurso de abertura na exposição Machado Vive. Disponível em: https://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm%3Fsid%3D290/Discurso%20de%20abertura%20da%20exposi%C3%A7%C3%A3o%20Machado%20Vive%21 Acesso em 28 de abril de 2024.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Administrativo pela Universidade Regional de Blumenau, mestre em Direito pela UFPR, doutor em Direito, Estado e Sociedade pela UFSC, professor de Direito Administrativo do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina, presidente da Comissão de Moralidade Pública do Conselho Seccional de Santa Catarina (OAB-SC), 1º vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA), membro vitalício da Academia Catarinense de Letras Jurídicas (cadeira nº 26, Patrono José Ferreira Bastos) e autor de livros e artigos em revistas especializadas.

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