Serviços de inteligência financeira e compliance antilavagem de dinheiro estão em uma zona cinzenta do aparato regulatório do sistema financeiro. Relatórios do tipo “conheça seu cliente” (Know Your Client — KYC), preparados por robôs sobre bases de dados cada vez maiores são feitos sem critério nem controle. O resultado é um número crescente de casos de exclusão financeira e bloqueio de serviços sem respeito a princípios jurídicos fundamentais.
Perseguição política e econômica são alguns dos resultados mais evidentes do descontrole do sistema de compliance antilavagem. Instituições financeiras se viram como podem em um ambiente normativo confuso. O resultado são estratégias de fuga do risco e veto automático a clientes com base em indícios mínimos, sem checagem nem contraditório.
Uma denúncia infundada ou uma notícia plantada em um blog obscuro podem ser a diferença entre ter ou não ter acesso a direitos patrimoniais básicos, como abrir uma conta no banco, fazer uma transferência ou obter crédito. No mundo selvagem do compliance financeiro, qualquer indício equivale a uma prova.
O fenômeno é chamado “overcompliance” (sobreconformidade) ou “de-risking” (redução de risco). Trata-se de uma das principais preocupações do sistema regulatório financeiro global. Entre suas causas está um sistema normativo confuso e um setor financeiro acuado pela cacofonia regulatória. O resultado é a exclusão preventiva e por atacado de grandes massas de clientes “indesejados”.
Custo regulatório
A fintech irlandersa Fenerco estima que desde 2007 autoridades regulatórias ao redor do mundo aplicaram multas antilavagem somando US$ 56 bilhões. Bancos tradicionais como HSBC, Deutsche Bank e UBS já foram alvo de multas superiores à marca do bilhão de dólares. A plataforma de criptomoedas Binance estabeleceu um novo recorde este ano com multas que já ultrapassam os US$ 10 bilhões.
Casos como esses sinalizam ao mercado que descumprir regras antilavagem pode sair caro, e as multas são a ponta do iceberg. Crises de imagem e reputação associadas a escândalos antilavagem podem custar às instituições financeiras um prejuízo muito maior em termos de marca, valor de mercado, clientes e negócios.
Tolerância zero
Instituições financeiras vivem em um estado de constante ansiedade quanto ao cumprimento de obrigações antilavagem. A legislação nacional é vaga e as diretrizes internacionais não ajudam. A normatização antilavagem diz em termos gerais que “operações suspeitas”, seja lá o que isso quer dizer, devem ser comunicadas, monitoradas e em alguns casos interrompidas pelos prestadores de serviços. Na prática tudo isso é complicado, produz burocracia e cria mais risco regulatório.
No Brasil o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) recebe mais de 7 milhões de comunicações de operações suspeitas ao ano. Esses números ocultam outras tantas operações suspeitas que sequer ocorreram. É mais fácil para a instituição dispensar preventivamente o cliente alegando falta de interesse comercial e poupar tempo, dinheiro e a dor de cabeça de monitorar e controlar atividades suspeitas.
São comuns relatos de pessoas que tiveram a conta encerrada e negócios recusados sem maiores explicações. Mais tarde fica claro que a recusa foi resultado de medidas preventivas de compliance antilavagem, baseadas em informações superficiais e imprecisas de relatórios de KYC. Até parentes e sócios de pessoas consideradas suspeitas saem prejudicadas.
O preço de o Estado terceirizar o cumprimento da legislação antilavagem à autofiscalização pelo mercado é não ter mais controle sobre o processo. Para o mercado é mais fácil adotar práticas oportunistas de “tolerância zero” e cortar relações comerciais por antecipação. Princípios jurídicos fundamentais viram pó e agentes econômicos e sociais são privados de direitos básicos.
Efeitos imprevistos
Há anos órgãos reguladores antilavagem quebram a cabeça para resolver o problema que eles mesmos criaram. A principal entidade do ramo é o Grupo de Ação Financeira (Gafi), organização internacional criada por um comitê de países do G7 no início dos anos 1990, hoje com mais de 200 países.
Os “Padrões Gafi” são um conjunto de 40 recomendações antilavagem, constantemente revistas e ampliadas. As normas preveem entre outras regras o monitoramento e comunicação de operações suspeitas e a criação de “Unidades de Inteligência Financeira” para supervisionar o processo.
É praticamente impossível ignorar as regras do Gafi. Em 2012, a entidade calculava que apenas 36% dos países adotavam “satisfatoriamente” suas recomendações. Em 2022 esse número subiu para 76% dos países. Quem falha em implementar as regras cai em listas “cinza” e “negra” e acaba excluído do sistema financeiro internacional.
Em 2021 o Gafi publicou o relatório “Balanço das consequências não-intencionais dos padrões do Gafi”. O texto é uma admissão de culpa de que o modelo não funciona e precisa de reformas. A ideia é que a implementação de diretrizes antilavagem por países-membros e instituições financeiras produzem exclusão financeira e o desrespeito a direitos fundamentais dos Estados nacionais.
O problema apontado pelo Gafi é que seus “standards” produzem conflito com princípios jurídicos fundamentais como a presunção de inocência e devido processo legal. Outra das “consequências não-intencionais” destacada pelo Gafi é comprometer o próprio sistema de prevenção à lavagem de dinheiro.
Ao usar regras antilavagem para excluir clientes do mercado formal, o sistema financeiro empurra agentes de interesse para a ilegalidade. Negócios informais e mercados paralelos substituem operações reguladas, tornam os recursos suspeitos irrastreáveis e inviabilizam sua investigação e localização.
Reformas
Nenhuma solução satisfatória foi apresentada até o momento. O vazio regulatório persistente cria oportunidades para empresas especializadas em “inteligência” financeira e KYC, que fazem montanhas de dinheiro distribuindo dados sem nenhum critério ou supervisão.
Uma das maiores empresas do ramo no mundo, a World Check, foi adquirida pela Bolsa de Valores de Londres (London Stock Exchange Group) por US$ 27 bilhões em 2019. Atualmente quase todos as grandes grupos de consultoria empresarial e produtores de softwares corporativos fornecem algum serviço nessa área.
São produzidos anualmente milhões de relatórios de compliance sem que clientes tenham a menor ideia do que se trata. O resultado são “red flags” (“bandeiras vermelhas”) nas mesas de operações de instituições financeiras impedindo negócios de ocorrer sem que ninguém saiba realmente o que está acontecendo.
Uma regulação específica para os serviços de informações de compliance antilavagem é urgente. Grandes grupos de inteligência financeira fazem lucro fácil usando bases de dados frágeis sem critérios mínimos nem responsabilidade, atingindo princípios fundamentais de presunção de inocência, ampla defesa e devido processo legal e fragilizando o próprio funcionamento do sistema antilavagem.
Por outro lado, clientes têm o direito de saber como suas informações são usadas e contestar dados incompletos ou inverídicos. O resultado do processo “oculto” é serem condenados sem julgamento, defesa ou processo à “morte civil”. Excluídos do sistema financeiro, clientes são privado do acesso a serviços e atividades econômicas elementares.
As instituições financeiras precisam de parâmetros para dar vazão à avalanche de dados fornecidos por atividades de “inteligência” antilavagem. Negar o acesso a serviços financeiros deve ser a última hipótese. Trata-se de uma atividade essencial, regulada pelo direito financeiro e do consumo. Não pode simplesmente negar serviços sem critérios nem prestar contas a ninguém.
Por fim, as autoridades antilavagem precisam saber o que está acontecendo debaixo do seu nariz. Ou aprovamos uma reforma da legislação administrativa antilavagem ou o Poder Judiciário deverá intervir. O que não dá mais é para deixar valer a lei da selva quando está em jogo a sobrevivência de pessoas reais.