Opinião

Rol da ANS e negativa de cobertura pelas operadoras de planos de saúde

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  • é formado em Direito pela USP (Universidade de São Paulo) com programa de intercâmbio acadêmico na Universidade de Zürich — Master of Law UZH International and Comparative Law (LLM) especialista na área de Direito Societário especificamente em Consultivo Societário M&A e Arbitragem e advogado na área de contencioso societário em São Paulo.

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14 de julho de 2024, 6h33

A Lei nº 9.656/98 dispõe sobre a regulamentação geral dos planos e seguros privados de assistência à saúde. Além de definir conceitos básicos e normas gerais da atividade das operadoras de planos de saúde, estabelece que qualquer produto, serviço e contrato que apresente, além da garantia de cobertura financeira de riscos de assistência médica, hospitalar e odontológica, outras características que o diferencie de atividade exclusivamente financeira, está subordinado às normas e à fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, a quem compete a regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde.

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Dentre suas incumbências, cabe à ANS estabelecer a amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar. Trata-se do chamado rol da ANS, atualmente definido pela Resolução Normativa nº 465/2021, que lista a cobertura assistencial obrigatória a ser garantida pelos planos de saúde contratados a partir de 2 de janeiro de 1999 e por aqueles adaptados à Lei nº 9.656/98. [1]

Em que pese originalmente criado para evitar que os contratantes-consumidores ficassem à mercê dos contratos unilaterais e de adesão das operadoras ao listar os procedimentos mínimos a serem oferecidos por elas, o rol pode, ele mesmo, acabar por agravar a vulnerabilidade do consumidor.

Isso porque, em razão da constante evolução das ciências e tecnologias, novos procedimentos, técnicas e aparelhos são constantemente desenvolvidos, de sorte que tratamentos outrora reconhecidos como a melhor solução para uma moléstia podem se tornar rapidamente obsoletos. Tome-se o exemplo o uso de rádio: após sua descoberta em 1898 por Marie e Pierre Curie, passou a ser utilizado para tratamento de hemorroidas; [2] contudo, o avanço da ciência permitiu verificar que o risco de desenvolvimento de câncer era maior do que a taxa de sucesso do tratamento, motivo pelo qual seu uso foi abolido.

O referido rol não acompanha a velocidade do avanço das ciências, já que a ANS possui procedimentos internos rígidos e complexos que balizam tanto a aprovação do uso de novas tecnologias na área da saúde quanto o reconhecimento dessas inovações como necessárias a ponto de constarem na lista obrigatória. Em virtude de corriqueiras negativas de cobertura calcadas na não previsão de tratamentos no rol, há elevada judicialização por parte dos consumidores.

Distintas posições foram adotadas pelos tribunais pátrios quanto à natureza do rol da ANS, isto é, se seria taxativo ou exemplificativo. Diante do impasse, em 8 de junho de 2022 a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), analisando o EREsp nº 1.886.929/SP, entendeu que sua natureza seria taxativa, não estando as operadoras de saúde obrigadas a cobrir tratamentos nele não previstos. Contudo, foi ressaltado que, em situações pontuais, os planos devem custear procedimentos não previstos na lista, tais como terapias com recomendação médica, sem substituto terapêutico no rol, e que tenham comprovação de órgãos técnicos e aprovação de instituições que regulam o setor. [3] Assim, restou firmado entendimento no sentido de que a natureza do rol é taxativa mitigada.

Referência para planos privados

Spacca

Em 21 de setembro de 2022, porém, sobreveio a Lei nº 14.151, que inseriu significativas alterações na Lei dos Planos de Saúde. O rol, agora, constitui referência básica para os planos privados de assistência à saúde (artigo 10, §12). Além disso, em caso de prescrição, por médico assistente, de tratamentos ou procedimentos nele não previstos, a cobertura é autorizada se comprovada sua eficácia à luz das ciências da saúde e baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou houver recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde ou de pelo menos um órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que, neste caso, sejam aprovadas também para seus nacionais (artigo/ 10, §13).

Desde então, as cortes nacionais passaram a reconhecer que o rol teria natureza exemplificativa, devendo priorizar-se a prescrição dada pelo médico assistente ao seu paciente. Por exemplo, no julgamento do REsp n.º 2.037.616, a 2ª Seção do STJ pontuou que, “com a edição da Lei nº 14.454/2022, o rol da ANS passou por sensíveis modificações em seu formato, suplantando a eventual oposição rol taxativo/rol exemplificativo”. [4]

Com o intuito de estabelecer os limites temporais da alteração legislativa em virtude da interpretação jurisprudencial advinda em 2022, o STJ, no julgamento do REsp nº 2.037.616/SP, firmou entendimento no sentido de que a interpretação de que o rol seria exemplificativo somente se aplica ao casos em que as negativa de cobertura ocorreu após a vigência da Lei nº 14.151, devendo a posição firmada anteriormente pelo STJ (rol taxativo mitigado) prevalecer nos demais casos. [5]

Diante de tais decisões, preenchidos os requisitos estabelecidos pelo § 13º do artigo 10 da lei 9.565/98, as operadoras não podem negar cobertura aos seus contratantes sob o argumento de que não há previsão no rol da ANS. Caso assim proceda, não apenas estará a operadora sujeita ao ressarcimento de valores eventualmente despendidos pelos consumidores (dano material) como também ao pagamento de indenização de cunho extrapatrimonial, [6] muitas vezes tido como in re ipsa, o que dispensa demonstração de sua efetiva ocorrência e extensão porquanto presumido, isto é, deriva da prova da conduta lesiva [7].

Nesse sentido, mesmo antes da conclusão da celeuma quanto à natureza do rol da ANS, o Tribunal de Justiça de São Paulo já assim decidia, citando-se, a título ilustrativo, a Apelação Cível n.º 1001312- 30.2018.8.26.0562 [8] e, mais recentemente, a Apelação Cível n.º 1039571-07.2023.8.26.0114. [9]

Ademais, duas súmulas foram editadas pelo tribunal supramencionado sobre a questão, a Súmula nº 96, segundo a qual não prevalece negativa de cobertura quando houver “expressa indicação médica de exames associados a enfermidade coberta pelo contrato”, e a Súmula nº 102, a qual pontua que, quando houver expressa indicação médica, “é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS”.

A partir de tais considerações, pode-se concluir que a evolução legislativa e jurisprudencial acerca da natureza do rol da ANS resultou na maior proteção dos consumidores ao assegurar-lhes o direito a tratamentos, procedimentos, técnicas e exames independentemente de estarem insertos na lista elaborada pela autarquia.

Outrossim, a negativa de cobertura calcada na ausência de previsão no rol enseja reparação por danos materiais e extrapatrimoniais eventualmente sofridos, cabendo ao consumidor lesado tão somente demonstrar a simples recusa dos procedimentos solicitados e o preenchimento dos pressupostos legais para a sua cobertura. A medida, assim, combate o descompasso entre a evolução do Direito e as novas ciências e tecnologias aplicadas na área da saúde, possibilitando efetiva promoção do direito à saúde.

 


[1] MINISTÉRIO DA SAÚDE. O Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde. Disponível em: https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-da-sociedade/atualizacao-do-rol-de-procedimentos. Acesso em 10 jul. 2024.

[2] Cf.: https://meiobit.com/437114/9-dos-mais-bizarros-tratamentos-medicos-do-passado/. Acesso em 02.07.2024.

[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EREsp n. 1.886.929/SP. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, j. 08.06.2022, DJe. 03.08.2022.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 2.037.616/SP. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília, j. 24.04.2024, DJe. de 08.05.2024.

[5] Veja-se trecho da decisão: “A superveniência do novo diploma legal (Lei nº 14.454/2022) foi capaz de fornecer nova solução legislativa, antes inexistente, provocando alteração substancial do complexo normativo. Ainda que se quisesse cogitar, erroneamente, que a modificação legislativa havida foi no sentido de trazer uma ‘interpretação autêntica’, ressalta-se que o sentido colimado não vigora desde a data do ato interpretado, mas apenas opera efeitos ex nunc, já que a nova regra modificadora ostenta caráter inovador. Em âmbito cível, conforme o Princípio da Irretroatividade, a lei nova não alcança fatos passados, ou seja, aqueles anteriores à sua vigência. Seus efeitos somente podem atingir fatos presentes e futuros, salvo previsão expressa em outro sentido e observados o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido. Embora a lei nova não possa, em regra, retroagir, é possível a sua aplicação imediata, ainda mais em contratos de trato sucessivo. Assim, nos tratamentos de caráter continuado, deverão ser observadas, a partir da sua vigência, as inovações trazidas pela Lei nº 14.454/2022, diante da aplicabilidade imediata da lei nova. Aplicação também do Enunciado nº 109 das Jornadas de Direito da Saúde, ocorridas sob a coordenação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Mantém-se a jurisprudência da Segunda Seção do STJ, que uniformizou a interpretação da legislação da época, devendo incidir aos casos regidos pelas normas que vigoravam quando da ocorrência dos fatos, podendo a nova lei incidir, a partir de sua vigência, aos fatos daí sucedidos” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 2.037.616/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília, j. 24.04.2024, DJe. de 08.05.2024).

[6] Nesse sentido: “APELAÇÃO. DIREITO CIVIL. AUSÊNCIA DE COBERTURA CONTRATUAL. ABUSIVIDADE DE DISPOSIÇÕES RESTRITIVAS. PROCEDIMENTO FORA DO ROL DA ANS. IRRELEVÂNCIA. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. […] 8. Ante a recusa indevida do plano de saúde em cobrir o procedimento solicitado pelo médico, mostra-se cabível a condenação da operadora em dano moral. 9. Diante dos fatos e da jurisprudência, entendo que o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) é tido como razoável e proporcional ao caso. 10. Recurso conhecido e improvido […]” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp n. 2.514.112. Relator Ministro Marco Buzzi. Brasília, j. 28.05.2024, DJe de 29.05.2024).

[7] Nesse sentido, confira: SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 399, E-book  e GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 4: responsabilidade civil. 7ª ed. São Paulo : Saraiva, 2012, p. 611, E-book.

[8] PLANO DE SAÚDE. Negativa de cobertura de exame de ressonância magnética de ossos temporais com difusão, sob o fundamento de ausência de previsão no rol da ANS. Inadmissibilidade. Súmulas nº. 96 e 102, TJSP. Consumidora não pode ser privada de usufruir dos avanços da medicina, sob pena de violação à finalidade do contrato de assistência à saúde e ao próprio objeto contratual. Abusividade da recusa. ABALO MORAL. Dano in re ipsa, em razão de tal medida agravar a situação, tanto física, quanto psicológica da beneficiária. Quantum de R$ 7.000,00 que se mostra hábil a reparar os danos suportados pelo apelada, sem lhe importar enriquecimento sem causa, funcionando, ainda, como inibidor de novas condutas pela ré. Sentença mantida. Apelo improvido. (BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível nº 1001312- 30.2018.8.26.0562. Rel. Des. Fábio Podestá, São Paulo, j. 30/05/2018).

[9] Veja-se a ementa: “APELAÇÃO – Plano de saúde – Negativa de cobertura de cirurgia de mamoplastia – Autora diagnosticada com dores crônicas na coluna cérvico-torácica – Reflexos na saúde da paciente que afastam a natureza meramente estética do procedimento – Inexistência de tratamento alternativo – Ausência de previsão expressa no rol da ANS que, no caso, não afasta a obrigação de custeio pela operadora – Danos morais in re ipsa reconhecidos – Indenização arbitrada em R$ 10.000,00 – Recurso da autora provido e da ré desprovido” (BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível nº 1039571-07.2023.8.26.0114. Rel. Desa. Mônica Rodrigues Dias de Carvalho. Campinas, j. 26.06.2024).

Autores

  • é formado em Direito pela USP (Universidade de São Paulo), com programa de intercâmbio acadêmico na Universidade de Zürich — Master of Law UZH International and Comparative Law (LLM), especialista na área de Direito Societário, especificamente em Consultivo Societário, M&A e Arbitragem, e advogado na área de contencioso societário em São Paulo.

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