Consultor Jurídico

O consequencialismo visto a partir de decisões judiciais

14 de julho de 2024, 8h00

Por Vladimir Passos de Freitas

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Consequência é um substantivo feminino e, nas palavras do Dicionário Online, significa “aquilo que resulta ou é produzido por causa de; efeito, resultado: seu sucesso foi consequência de muito trabalho” [1]. Na nossa vida, do início ao fim somos alertados pelas consequências de fazer ou não fazer algo. Tudo gera resultados e por isso somos ensinados a preocupar-nos com os reflexos de nossos atos ou de nossa omissão.

A nossa rotina levou os pensadores a criarem uma filosofia sobre o tema. Por tal razão, Matheus Maia Schmaelter dá-lhe a seguinte definição:

“O consequencialismo é uma doutrina do âmbito da filosofia moral e da ética que afirma que o valor moral de um ato é determinado exclusivamente por suas consequências. Sua visão é que não se deve preocupar com as ações e seus valores no passado, tendo em vista que nada se pode fazer a respeito do que já passou, mas que deve-se, antes, buscar olhar para frente, para o futuro, tomando como motivação a escolha de ações que maximizem suas boas consequências e que reduzam ao máximo suas más consequências” [ii].

Âmbito jurídico

Na área do Direito, contudo, o consequencialismo é visto com reservas, por vezes até repudiado. Cria-se, assim, um abismo entre o que a vida nos ensina como consequências e seu afastamento das ciências jurídicas. No entanto, ainda que em passos lentos, o consequencialismo começa a entrar no Direito. Neste particular, a Lei 13.655, de 2018, impôs deveres às autoridades administrativas e judiciais, como adiante se verá. Muito embora uma simples leitura evidencie a oportunidade do texto legal, porque contém nada mais do que regras práticas para as autoridades judiciárias ou administrativas levarem em consideração as consequências de suas determinações, alguns vislumbram risco na tomada de tal posição.

Em breve síntese, temem que elas acabem se tornando tão práticas e utilitaristas que possam levar à conclusão de que os fins justifiquem os meios. Isso acabaria impedindo que, ao decidir, o julgador utilize recursos metajurídicos, ou seja, na falta de solução justa nos dispositivos legais ou constitucionais possa valer-se de outros valores.

Teoria e prática

Os posicionamentos contrários ao consequencialismo costumam ter por base fundamentos filosóficos que, na maioria das vezes, encontram-se muito distantes da realidade forense. Por tal razão, nunca enfrentam temas cruciais que, realmente, ferem a dignidade das pessoas. Esquecem que é nas agruras daqueles que buscam soluções para os seus problemas junto ao Poder Judiciário que se percebe a imprescindibilidade da análise das consequências, os resultados que advirão de uma decisão movida por bons propósitos, mas alheia à realidade.

Spacca

Por exemplo, a adoção do sistema eletrônico em todas as instituições partícipes do sistema de Justiça agiliza o andamento das demandas, mas pode ser causa impeditiva de acesso à Justiça se a pessoa for pobre ou idosa, sem condições de ingressar nas plataformas montadas por técnicos alheios a tal tipo de dificuldade. Entre as instituições que lidam com os vulneráveis, uma se destaca: a Defensoria Pública. Nela, mais do que nas outras, é necessário ter um programa digital com facilidade de acesso absoluta. Todavia, não é raro que pessoas carentes, que são as que mais precisam desse órgão essencial, muitas vezes não consigam manejar o cipoal de passos que levam ao atendimento.

Por vezes, uma posição aparenta ser digna de todos os elogios. Mais tarde, contudo, seus resultados mostram-se negativos. Exemplo disso é a concessão de “habeas corpus” de forma indiscriminada, sem avaliar-se as consequências. David Metzker, em artigo na revista eletrônica Consultor Jurídico neste mês, comentou o excessivo número de HCs impetrados junto ao Superior Tribunal de Justiça, média de 42 por dia para cada gabinete, “com ministros diariamente alertando advogados e operadores do direito em geral sobre a necessidade de rever o uso excessivo deste instrumento, especialmente no que se refere ao habeas corpus substitutivo de recurso” [3]. Ora, o excesso nada mais é do que a consequência da abertura que o STJ deu ao HC e esperar, agora, que os advogados se sensibilizem com apelos de controle é de um otimismo fora da realidade.

Zona nebulosa

No âmbito do Direito Ambiental, inúmeras decisões levam a uma opção complexa, pois os bens protegidos constitucionalmente são conflitantes. Assim, por exemplo, a Súmula 623 do STJ dispõe que a responsabilidade pelo dano ambiental acompanha o imóvel, respondendo, por ela, o novo proprietário. Correta tal conclusão, porque consequencialista ao preocupar-se com a proteção do meio ambiente. Se assim não fosse, bastaria ao autor do dano desfazer-se de seus bens e alienar o seu imóvel rural para que a reparação jamais viesse a ocorrer. Diversa, contudo, é a situação em que o Judiciário decide pelo fechamento de uma indústria sem dar oportunidade a um acordo que permita a custosa substituição de bens causadores de poluição (v.g. colocação de filtros) em prazo razoável, disto resultando perda de empregos.

Há situações em que o juiz atua em uma zona nebulosa, com os dois lados plenos de justificativas para as suas posições. A área da saúde é entre todas a mais complexa. Protege-se o sistema, indeferindo a compra de um remédio de custo elevado, ou protege-se o doente, que dele precisa para sobreviver. Impõe-se à Polícia Militar trabalhar com câmeras corporais para evitar abusos ou dispensa-se esse aparelho, a fim de que os policiais não cruzem os braços, deixando os criminosos livres em sua ação e a sociedade desprotegida. Entende-se que o direito constitucional à moradia impede o despejo do locatário por falta de pagamento ou, em posição oposta, rejeita-se este entendimento porque reduzirá a oferta de imóveis para locação, resultando, ao fim, em dificuldade de obtenção de moradia. Permite-se a pesca de camarões na época de defeso pelas populações tradicionais ou proíbe-se a prática secular para evitar a extinção da espécie.

Avaliação dos efeitos

Para que as consequências fossem levadas em conta, o legislador determinou que as decisões administrativas ou judiciais promovam a avaliação dos efeitos práticos delas decorrentes. A Lei 13.655, de 25 de abril de 2018, que deu nova redação à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), assim dispôs:

“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.                    

Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.                      

Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.”

No entanto, isso não vem ocorrendo em nenhuma das áreas do Direito. Vejamos três exemplos de acórdãos de tribunais de segunda instância, todos posteriores à vigência da Lei 13.655. Registre-se que os comentários não constituem crítica às decisões de mérito, mas sim amostras do afastamento da lei mencionada.

O Tribunal Superior do Trabalho, em decisão da 8ª Turma, em 19/12/2022, julgando agravo de instrumento e recurso de revista envolvendo conflito entre o aplicativo Uber e motorista, concluiu pela existência de vínculo empregatício entre ambos, com profunda análise de fundamentos de ordem fática e jurídicos, inclusive menção à jurisprudência de outros países. No entanto, o r. acórdão da Corte Superior não avaliou as consequências de sua conclusão, ou seja, a existência de milhares de brasileiros e agora também de venezuelanos, que, à falta de empregos formais, sustentam a si próprios e por vezes às suas famílias com esse tipo de rendimento (artigo 20 da Lei 13.655/2018) [4].

O Tribunal de Justiça do Pará, em decisão do Plenário de  28/9/2023, julgou mandado de segurança impetrado para sustentar a possibilidade de cumular-se os cargos de auxiliar judiciário e professor da rede estadual de ensino. A ordem foi denegada com base no contido no artigo 37, inciso XVI, da Carta Magna. Todavia, nenhum comentário foi feito sobre as consequências de permitir-se a cumulação, ou seja, redução da oferta de empregos em um país em que milhões de pessoas se preparam e esperam ansiosamente ocupar um cargo público. As consequências práticas da tese vencida não foram lembradas (artigo 20 da Lei 13.655/2018) [5].

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, em 20/2/2019, deu provimento a recurso de apelação contra sentença que extinguiu a ação de busca e apreensão, convertida em feito executório, sem julgamento de mérito, reconhecendo, no caso, adequada a adoção do princípio da instrumentalidade do processo e o da primazia no julgamento de mérito [6]. Em que pese o total acerto da decisão colegiada, ela não fez qualquer referência ao artigo 20 da Lei 13.655/2018 e às consequências práticas da decisão, ou seja, evitar que o apelante fosse obrigado a formular novo pedido, com despesas, perda de tempo e contribuição para o congestionamento do Judiciário.

Tentação

Para José Renato Nalini, as consequências da sentença que desconsidere seus efeitos práticos no mundo real podem ser terríveis, lembrando que o artigo 25 do Código de Ética da Magistratura é explícito ao dizer que, ao proferir suas decisões, o magistrado deve ser cauteloso, atento às consequências que ela pode provocar [7].

Por óbvio que o julgador tem que ter a atenção voltada para os fatos que se colocam ao redor da discussão central e valer-se dos princípios. No entanto, deve evitar a tentação de supor que recebeu a missão divina de decidir sozinho o que é o melhor para o Brasil em um conflito que lhe é submetido pelas partes. Justificar tal tipo de decisão é fácil, pois a Constituição tem princípios para todas as necessidades e, quando não os tiver, poder-se-á invocar um princípio implícito. Mas há, no caso, flagrante desvio de atribuições.

Conclusão

Em suma, o consequencialismo, objeto de reflexão em nossas vidas, do nascimento à morte, não pode ser afastado nas decisões administrativas e judiciais, sob pena de criar-se um mundo à parte para o Direito.

As decisões judiciais não devem ignorar os dispositivos da Lei 13.655/2018 e se o fizerem estarão sujeitas a embargos de declaração e, eventualmente, à anulação. Ao STJ, a quem cabe a defesa da lei (Constituição, artigo 105, III), cumpre não apenas cumpri-la em suas decisões como exigi-la nos acórdãos omissos. E aos magistrados brasileiros cabe lembrar-se do juramento de  cumprir a Constituição e as leis do nosso país feito no dia da posse.

 


[1]  DICIO. Dicionário online de português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/consequencia/. Acesso em 4 jul. 2024.

[2]  InfoEscola. Consequencialismo. Disponível em: https://www.infoescola.com/filosofia/consequencialismo/. Acesso em 4 jul. 2024.

[3]  METZKER, David. Excesso de habeas corpus no STJ: um problema crônico. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 6 jul. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jul-06/excesso-de-habeas-corpus-no-stj-um-problema-cronico/. Acesso 11 jul. 2024.

[4] TST, PROCESSO Nº TST-RRAg-100853-94.2019.5.01.0067, 8ª. Turma, em 19/12/2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/decisao-uber-tst.pdf. Acesso em 13 jul. 2024

[5] TJPA, MS Cível 0810707-27.2023.8.14.0000, Tribunal Pleno em 28 set. 2023.  Disponível em: https://www.tjpa.jus.br//CMSPortal/VisualizarArquivo?idArquivo=1452615, Acesso em 13 jul. 2024.

[6] TJDFT, Ap. 0707666-12.2018.8.07.0001, 2ª. Turma Cível. Disponível em: file:///C:/Users/All%20in%20One%20LG/Downloads/1154762%20(1).pdf. Acesso em 13 jul. 2024.

[7] NALINI, José Renato. Consequencialismo: urgente, nefasto ou modismo. In:  Consequencialismo no Poder Judiciário. Org. Gandra, Nalini e Chalita. Indaiatuba: Ed. Foco, 2019,  p. 39.