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Da necessária bilateralidade da corrupção passiva em receber ou aceitar

14 de julho de 2024, 7h07

Por Jimmy Deyglisson

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O delito de corrupção passiva é assim descrito no artigo 317 do Código Penal: “Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem (…)”. Como se vê, as condutas típicas são “solicitar”, “receber” ou “aceitar”.

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O crime de corrupção ativa, de sua vez, consta do artigo 333 da lei objetiva, nos seguintes termos: “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício(…)”. Nota-se que os núcleos verbais são “oferecer” ou “prometer”.

Tendo isso em conta, é manifesto o adágio popular segundo o qual “onde há um corrupto, ali também há um corruptor”. E, embora não se possa dar ares de generalidade a esta afirmação, o conhecido ditado tem sim seu fundo de verdade, respaldado pela lógica da dinâmica dos comportamentos e pela melhor doutrina.

É claro que se entende possível a corrupção ativa sem a passiva, e vice-versa, em algumas modalidades, com o que se está de acordo. Todavia, em dois casos específicos é indispensável a bilateralidade, que é prática da corrupção passiva em conjunto à corrupção ativa, quais sejam, na modalidade de recebimento e aceitação da vantagem ou promessa de vantagem indevida.

Conforme ensina Bitencourt [1], na bilateralidade “não há a modalidade passiva sem a ativa (embora o inverso não seja verdadeiro), quais sejam nas hipóteses de receber e aceitar, que, necessariamente, pressupõem a oferta ou a promessa de alguém”.

Para que não pareça tese isolada, a lição de Hungria [2] é no mesmo sentido, quando afirma:

“Perante nosso Código atual, a corrupção nem sempre é crime bilateral, isto é, nem sempre pressupõe (em qualquer de suas modalidades) um pactum sceleris (…). O pactum sceleris ou bilateralidade só se apresenta nas modalidades de recebimento da vantagem indevida ou da aceitação da promessa de tal vantagem por parte do intraneus [corrompido], ou da adesão do extraneus [corruptor] à solicitação do intraneus, ou nas formas qualificadas previstas nos §1º e parág. único, respectivamente, dos arts. 317 e 333.”

Este entendimento foi acompanhado por Costa Junior [3], que assim se manifestou: “das modalidades de corrupção passiva previstas em lei, ao menos duas, receber e aceitar, importam na bilateralidade da conduta”.

Em linha simétrica também Fragoso [4], que pontificava: “na forma de receber, o crime é bilateral, sendo inconcebível a condenação do agente sem a do correspondente autor da corrupção ativa”.

Spacca

Magistral é o escólio de Regis Prado [5], que faz coro aos demais juristas citados: “Tanto no recebimento como na aceitação da promessa perfaz-se também o corresponde delito de corrupção ativa” (artigo 333).

Corrupção passiva no funcionalismo

Portanto, a prática da corrupção passiva do funcionário público corresponde sempre à ação de um agente particular, que, de alguma maneira, promove a corrupção ativa, obrigatoriamente nas modalidades de receber e aceitar vantagem ou promessa de vantagem, sendo, por conseguinte, impossível a ocorrência de um sem o outro. Em resumo, quem recebe, recebe de quem entregou; quem aceita, aceita de quem ofertou.

Essa compreensão também tem relevância para a processo penal, na medida em que, empreendida uma investigação sobre crime de corrupção passiva na modalidade “receber” ou “aceitar”, tendo em vista a necessária bilateralidade, a autoridade investigadora jamais poderá de valorar a prática da corrupção ativa na modalidade “oferecer” ou “prometer”, bem como deverá expor os todos fundamentos da conclusão.

E assim, de duas, uma. Ou os corruptores passivos não praticam o crime nas modalidades “receber” ou “aceitar”, o que afasta, diante da necessária bilateralidade, a ocorrência da corrupção ativa na modalidade “prometer” ou “oferecer”; ou as cometem, todos, corruptores passivos e ativos, sem exceção.

Caso não haja a exposição dos fundamentos pelos quais não se investigou ou se processou os corruptores ativos, nas modalidades atinentes à bilateralidade, deve o representante do Ministério Público, ao receber os autos do inquérito, requerer mais diligências para apuração, pois imprescindíveis ao recebimento da denúncia (CPP, artigo 16), sob pena de se processar e condenar alguém que fora corrompido, mas, por razões, às vezes inconfessáveis, não processar quem o corrompeu.

Esta lógica é igualmente amparada pelo princípio da obrigatoriedade da ação penal pública incondicionada (gênero do qual o princípio da indivisibilidade é espécie), pois, conforme Nucci [6]: “(…) quando o promotor toma conhecimento de quais são os autores do crime, deve ingressar com ação penal contra todos, não porque a ação penal pública é indivisível, mas porque é obrigatória”.

Por fim, e aqui já avaliando as consequências do momento posterior ao trânsito em julgado, sendo sentenciado o agente por corrupção passiva, nestas espécies, e, inexistindo no processo a valoração sobre a existência de corrupção ativa ou mesmo um outro processo que venha a apurá-la, o condenado poderá requerer investigação sobre a prática de corrupção ativa e, caso se conclua que esta não ocorreu, ingressar com revisão criminal (CPP, artigo 621, I [7]), na intenção de rescindir o decreto condenatório, ante a aplicação da regra da bilateralidade.

 


[1] BITENCOURT, Cezar Robert. Tratado de Direito Penal. 5 Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 118.

[2] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v. 9. Rio de Janeiro: Forense, 1959, 429-30.

[3] COSTA JR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal. 6 Ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 470.

[4] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal – Parte Especial. 11 Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 416.

[5] REGIS PRADO, Luiz. Tratado de Direito Penal Brasileiro – Parte Especial. v. 7. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 143.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 13 ed. São Paulo: Editora Forense, 2016, p. 23, arquivo epub.

[7] “Art. 621.  A revisão dos processos findos será admitida: I – quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; (…)”