Opinião

Inteligência artificial na revisão do estoque regulatório

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  • é pesquisadora do Centro de Estudos de Regulação e Governança dos Serviços Públicos conferencista consultora jurídica doutoranda em políticas públicas pela UFRJ e autora de artigos científicos na ambiência regulatória.

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13 de julho de 2024, 15h25

Não é de hoje que se discute o excesso regulatório e seu espaço indevido em agendas políticas de diversas nações, notadamente sob a preocupação de que as normas regulamentares precisam ser empiricamente informadas e democraticamente responsivas, vocacionadas ao crescimento econômico e criação de empregos, com potenciais benefícios à população.

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No Brasil, essa tendência foi materializada por meio da edição do Decreto Federal n° 10.139, de 28 de novembro de 2019, que dispõe sobre a revisão e a consolidação dos atos normativos inferiores a decreto, como portarias, resoluções e instruções normativas. O teor do texto do documento citado indica o intuito de empreender esforços para eliminar ambiguidades, duplicações, supressão de normas revogadas tacitamente, cujos efeitos estejam exauridos no tempo, bem como aquelas vigentes, que demandam necessidade de ressignificação.

Para a literatura internacional, é imperativo obter maior rigor no estabelecimento de métodos de avaliação que permitam minimizar os impactos nocivos das normas regulatórias redundantes, inconsistentes, sobrepostas, defasadas e frustrantes.

A partir desses desafios, é urgente explorar o empenho contínuo na construção de cultura regulatória de avaliação regular, à luz do Regulatory Lookback, particularmente no que se refere à verificação dos seus efeitos no cenário internacional, por meio de dados concretos, informações simétricas e padrões de planejamento mais exigentes.

Valorizando o olhar retrospectivo, Vinik (2018) argumenta que há concordância universal quanto à necessidade de reformular o estado regulatório, relembrando que, ao longo do primeiro ano do mandato de Trump, foram lançadas ordens executivas destinadas a desaceleração do fluxo de novas regras, imprimindo a mensagem de que as agências deveriam averiguar, antes de dar seguimento aos processos normativos em pauta, se os regulamentos existentes ainda se revelam úteis e por quanto tempo.

Em suma, permanece com ênfase nas jurisdições estrangeiras a imperiosa necessidade de reanálise do estoque regulatório como condição prévia à inauguração do processo regulatório normativo, além de reduzir encargos desnecessários e dispendiosos à sociedade e ao crescimento econômico.

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Se, no passado, a matéria não perfazia o rol de prioridades das agências reguladoras, hoje, ao revés, identificar regulamentações obsoletas, contraditórias, sobrepostas ou desnecessariamente onerosas é um imperativo maior diante da era “ativismo regulatório regulamentar”.

A ocorrência de um fato social é suficiente para ativar a carga regulatória, sem a prudente reflexão daquilo que se tem. Pergunta que não quer calar: Diante de um rol expressivo de atividades que perfazem o dia a dia das agências, como priorizar a avaliação retrospectiva sem comprometer a rotina regulatória? É possível aliar o uso inteligência artificial (IA) neste processo?

Origem da inteligência artificial

A primeira experiência com o uso da IA, segundo Sharkey e Mallet (2024), ocorreu ocorreu em 2021, quando o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) dos EUA emitiu uma regra final, incorporando IA no seu processo de revisão de regras. O HHS foi a agência pioneira que testou um sistema de IA voltado a sinalizações de regras desatualizadas, redundantes, ineficazes, excessivamente complexas ou onerosas no processo de revisão [1].

Nessa ocasião, o HHS constatou que boa parte de seus regulamentos era defasada, sem contar os mais de “cinquenta” casos de sobreposição de obrigações — contendo encargos adicionais sobre hospitais e prestadores de cuidados de saúde.

Em paralelo, há preocupações em torno da dinâmica de aplicação da IA no bojo do processos internos das agências reguladoras, bem como o risco de que a IA seja utilizada para atingir indústrias específicas no processo de revisão.

De acordo com o devido processo legal administrativo, as regras que impactam substancialmente o mercado regulado devem passar por um processo de notificação pública e com a abertura aos comentários. Em nome da segurança jurídica, as agências deverão divulgar quando, como e porquê a IA está apta a ser utilizada no processo de revisão do estoque regulatório.

A divulgação procedimental, segundo Sharkey e Mallet (2024) aumentará a confiança, facilitará o escrutínio público das regras e ajudará os especialistas a compreender como a IA toma as suas decisões no processo de revisão das regras. Mais do que isso, se bem regulamentada, poderá minimizar a pauta em torno das preocupações de transparência e responsabilização regulatória.

À medida que o mundo avança com a implementação de outros sistemas de IA, não é mais nos dado o direito de viver e agir as raias dos comportamentos antiquados e, tampouco, à revelia da ordem jurídica. A virtude, como dizia Aristóteles, está no meio: Se, por um lado, não é dado o direito à sociedade de romper o compromisso com os valores democráticos, notadamente transparência, segurança jurídica e responsabilização; por outro, exigir a divulgação da programação da IA e todos os fatores que afetarão o processo de revisão do estoque regulatório pode ser efetivamente o caminho mais promissor.

É preciso, como marcha inicial à maturidade e em complementação às premissas supracitadas, fomentar fóruns de discussão, sem contar a importância do compartilhamento de experiências internacionais, permitindo-se registrar e difundir o desenvolvimento obtido. Em tempo, o aprendizado obtido, favorece o convencimento da sociedade e dos atores políticos na magnitude do processo avaliativo para fins de melhoria regulatória, sem contar a retroalimentação dos compromissos públicos com os resultados.

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Referências

BRASIL. Ministério da Economia. Guia orientativo para elaboração de Avaliação de Resultado Regulatório – ARR. Brasília: Secretaria de Acompanhamento Econômico, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/analise-de-impacto-regulatorio-air-e-avaliacao-de-resultado-regulatorio-arr/o-que-e-arr/guiaarrverso5.pdf. Acesso em: 2 jan. 2023

CANADÁ. Directive on the evaluation function. 2016. Disponível em: https://www.tbs-sct.canada.ca/pol/doc-eng.aspx?id=15681&section=html. Acesso em: 3 jan. 2023.

COGLIANESE, Cary. Moving forward with regulatory lookback. RDA – Revista de Direito Administrativo, v. 276, p. 13–23, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.12660/rda.v276.2017.72989. Acesso em: 2 jan. 2023.

GREENSTONE, Michael. Toward a culture of persistent regulatory experimentation and evaluation.  In: MOSS, David; CISTERNO, John (ed.). New perspectives on regulation. Cambridge: The Tobin Project, 2009.

JORDÃO, Eduardo; CUNHA, Luiz Filippe. Revisão do estoque regulatório: a tendência de foco na análise de impacto regulatório retrospectiva. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 227-255, abr./jun.2020.

MENDES, Flavine Meghy Metne. Modelo de governança, agências reguladoras e custos das normas regulatórias. 2023. 124f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento) – Instituto de Economia, UFRJ, Rio de Janeiro, 2023.

OFFICE OF MANAGEMENT AND BUDGET’S. Office of Information and Regulatory Affairs. Circular A-4: regulatory analysis, sept. 17, 2003. Disponível em: https://obamawhitehouse.archives.gov/omb/circulars_a004_a-4/. Acesso em: 2 jan. 2023.

SUNSTEIN, Cass R. The regulatory lookback. Boston University Law Review, n. 94, 2014b.

SHARKEY, Catherine M;  MALLETT, Cade. Artificial Intelligence for Retrospective Regulatory Review.https://www.theregreview.org/2023/09/12/sharkey-mallett-artificial-intelligence-for-retrospective-regulatory-review/.Acesso em 10 de julho de 2024.

VINIK, Danny. Trump’s war on regulations is real: but is it working? Politico, Arlington, 20 jan. 2018.


[1] SHARKEY, Catherine M;  MALLETT, Cade. Artificial Intelligence for Retrospective Regulatory Review.https://www.theregreview.org/2023/09/12/sharkey-mallett-artificial-intelligence-for-retrospective-regulatory-review/.Acesso em 10 de julho de 2024.

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