Importância da ação popular na defesa do patrimônio cultural brasileiro
13 de julho de 2024, 8h00
A Constituição vigente previu expressamente a possibilidade de se defender, por meio da ação popular, o patrimônio cultural brasileiro. Em seu artigo 5°, LXXIII, dispõe a Carta Magna que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.
Em nível infraconstitucional a ação popular é regulada pela Lei 4.717/65, que em seu artigo 1°, § 1° (inovado pela redação que lhe deu o artigo 33 da Lei nº 6.513, de 20 de dezembro de 1977), dispõe que os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico são considerados como patrimônio público e, portanto, passíveis de defesa pelo referido instrumento constitucional.
A atribuição ao cidadão da legitimidade para promover a defesa jurisdicional do patrimônio cultural, via ação popular, aperfeiçoa o exercício da tarefa solidária e compartilhada do Estado e da coletividade na consecução do poder-dever de proteção de todos os bens que integram o patrimônio cultural brasileiro, como preceitua o artigo 216, § 1°, da Constituição.
Para manejar validamente a ação popular o autor deverá estar no gozo de seus direitos políticos. Apesar de agir em nome próprio, o autor popular defende um interesse difuso, uma vez que toda a coletividade tem direito de fruir do meio ambiente cultural hígido.
Uma leitura açodada dos dispositivos que regulam a ação popular pode induzir à conclusão, equivocada, de que tal instrumento tem natureza meramente desconstitutiva em relação a atos já praticados. Contudo, hodiernamente a ação popular está inserida no âmbito do microssistema de tutela coletiva [1], de sorte que se submete a princípios próprios, como os da máxima utilidade e da máxima amplitude da tutela jurisdicional coletiva, que lhe emprestam nova roupagem.
Ajuizamento preventivo
Em razão disso, a ação popular poderá ser ajuizada mesmo antes da consumação dos efeitos lesivos do ato, ou seja, de forma preventiva, evitando-se a concretização de lesões. Em sede de defesa do patrimônio cultural essa possibilidade mais se justifica tendo em vista o princípio da prevenção que norteia a disciplina, sendo notório que certos atos, se consumados, seriam irreparáveis.

Como lecionam Adriano Andrade, Cleber Masson e Landolfo Andrade [2]:
“Com a Constituição de 1988, consolidou-se um modelo processual em que vicejam os princípios da efetividade da justiça (que pressupõe a prestação jurisdicional adequada), da instrumentalidade do processo, do acesso à justiça e da inafastabilidade da tutela jurisdicional. Desde então, é sob a ótica desses princípios que a ação popular deve ser interpretada, de modo que a efetiva ocorrência de dano é claramente dispensável.”
Assim, por exemplo, pode-se propor ação popular de forma preventiva com o escopo de evitar a iminente expedição de alvará autorizando a demolição de um prédio tombado em razão de seus atributos culturais.
Amplitude dos pleitos
Outro ponto que merece ser destacado diz respeito à amplitude de pedidos passíveis de serem formulados na ação popular, que pode ter, inclusive, finalidade corretiva da atividade administrativa nos casos em que o poder público deveria agir por expressa imposição legal. Desta forma, por meio da ação popular o cidadão pode obrigar a administração a atuar quando a sua omissão implicar ameaça de lesão ao patrimônio cultural [3].
Com efeito, no campo da tutela do patrimônio cultural brasileiro a ação popular deixa de ter função meramente desconstitutiva ou ressarcitória e viabiliza a prolação de qualquer tipo de provimento necessário ao acautelamento dos bens culturais (mesmo ainda não protegidos administrativamente) cuja conservação se pretenda.
Consoante leciona Gregório Assagra de Almeida:
“Tendo em vista a incidência, em sede de ação popular, do princípio da máxima amplitude da tutela jurisdicional coletiva, estatuído pelo art. 83 do CDC e aplicável à ação popular por força de regra expressa prevista no art. 21 da LACP, conclui-se que são admissíveis na ação popular todos os pedidos: condenatório, em todas as suas espécies, declaratórios, negativos ou positivos; constitutivos, desconstitutivos ou modificativos e, inclusive, provimentos cautelares, executivos e mandamentais, conforme o caso” [4].
Desta forma, é cabível, por exemplo, o ajuizamento de ação popular contra o município que se mostra omisso no cumprimento de seu dever de zelar pela defesa do patrimônio cultural e permite que o proprietário de bem de valor cultural o descaracterize ou quando a municipalidade deixar de exercer vigilância sobre os bens culturais situados em seu território, expondo-os ao abandono e ao risco de perecimento.
Jurisprudência
No campo jurisprudencial, é de se destacar que o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento no sentido de ser possível a propositura de ação popular visando obrigação de não fazer consistente em cessar ou impedir ato administrativo que possa vir a causar danos ao meio ambiente [5].
O recente entendimento pretoriano também vem admitindo a utilização da ação popular para compelir o poder público omisso a adotar providências para o restauro de bens culturais:
“CONSTITUCIONAL. AÇÃO POPULAR. PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL DA ANTIGA REFFSA. IPHAN. ATO OMISSIVO GERADOR DA OBRIGAÇÃO DE FAZER (LEI Nº 11.483/2007). PERMISSIVO DO ART. 5º, INC. LXXIII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEI Nº 4.717/1965. TEMA 836-STF. POSSIBILIDADE. PRAZO RAZOÁVEL PARA INÍCIO DO CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE FAZER. RECURSOS VOLUNTÁRIOS E NECESSÁRIO AOS QUAIS SE NEGA PROVIMENTO. 1. É legítima a pretensão do autor popular para obter do Poder Judiciário providência consistente na obrigação de fazer obra de restauro e conservação de equipamento público de valor histórico e cultural sob encargo do IPHAN. 2. O pressuposto desse permissivo, no caso dos bens móveis e imóveis oriundos da antiga RFFSA, é a Lei nº 11.483/2007, dispositivo legal que possibilita a propositura da Ação Popular para obter obrigação de fazer do poder público omisso. 3. Art. 5º, inc. LXXIII, da Constituição Federal. Lei nº 4.717/1965. Tema 836-STF. 4. Fixação de prazo razoável para o início da implementação da obra de restauração do bem imóvel público de valor histórico e cultural, tendo em vista às circunstâncias da hipótese. 5. Negado provimento aos recursos voluntários e necessário. 6. Majoração em 1% da verba de honorários sucumbenciais em desfavor da vencida. (TRF 5ª R.; AC 08005611820174058504; Primeira Turma; Rel. Des. Fed. Conv. Marco Bruno Miranda Clementino; Julg. 20/07/2023)
São ainda exemplos concretos de utilização da ação popular para a defesa do patrimônio cultural brasileiro:
- suspensão de obras de aterro executadas pela Prefeitura de São José – SC, passando pela orla marítima e atingindo o centro histórico da cidade [6];
- suspensão do tráfego de veículos pesados na rua Comandante Costa, em Cuiabá (MT), por ameaçarem a conservação do Casarão da Família Muller, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional [7];
- suspensão da mudança de nome antigo e tradicional de rua sem anuência dos moradores [8];
- impedimento de demolição de prédio erigido em 1937 que abrigava importante complexo fabril, para a expansão de avenida [9];
- impedimento de asfaltamento de rua calçada com paralelepípedos sem a realização de audiência pública e prévia autorização do Conselho de Patrimônio Cultural [10];
Conclusão
Enfim, a ação popular é ferramenta de extremo relevo prático e constitui garantia constitucional do direito fundamental à fruição de um patrimônio cultural hígido.
Sua utilização criteriosa e responsável pode constituir elemento positivo de reforço no sistema de proteção ao patrimônio cultural brasileiro, onde as ações cidadãs necessitam ganhar maior protagonismo.
[1] O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento no sentido de que existe um microssistema de tutela dos interesses ou direitos coletivos composto pela Lei da Ação Popular, Lei da Ação Civil Pública, Lei de Improbidade Administrativa, Mandado de Segurança Coletivo, Código de Defesa do Consumidor e Estatuto da Criança e do Adolescente. (REsp 1.452.660/ES, rel. ministro Og Fernandes, 2ª Turma, julgado em 19/10/2017, DJe 27/04/2018)
[2] Interesses difusos e coletivos. 9ª ed. Rio de Janeiro: Gen. Forense. 2019, p. 357-358.
[3] Sobre o tema Hely Lopes Meirelles leciona: Arma-se, assim, o cidadão para corrigir a atividade comissiva da Administração como para obrigá-la a atuar, quando sua omissão também redunde em lesão ao patrimônio público. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, Habeas Data, Malheiros Editores, p.93.
[4] Manual das Ações Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey 2007. p. 378-379.
[5] RESP n. 889.766/SP, relator ministro Castro Meira, 2ª Turma, DJ de 18/10/2007, p. 333.
[6] TRF 4ª Região – AI 2001.04.01.089571-5/SC – j. 07.11.2002.
[7] TJ-MT – AI 32894/2007 – rel. des. Evandro Stábile – j. 30.07.2007.
[8] Apelação Cível n° 234.298-5/9-00, de Ribeirão Pires, 6ª Câmara Cível do TJ-SP, rel. des. José Elias Habice Filho, julgado em 15/12/2003.
[9] TJ-SP; APL 0020492-09.2012.8.26.0320; Ac. 8638008; Limeira; 8ª Câmara de Direito Público; rel. des. Rubens Rihl; Julg. 22/07/2015; DJESP 07/08/2015.
[10] TJ-MG; AC-RN 5002032-71.2021.8.13.0242; Terceira Câmara Cível; relª desª Luzia Divina de Paula Peixôto; Julg. 23/03/2023; DJEMG 27/03/2023.
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