Repensando as Drogas

A decisão no RE 635.659/SP: oito teses, muitas dúvidas (parte 2)

 

12 de julho de 2024, 8h00

**continuação da parte 1
*Coletivo Repensando a Guerra às Drogas

Tese 3 — Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do artigo 28 da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença.

3.a. A dicção da Tese 3 permite supor que, até a expedição de regulamento aprovado pelo CNJ, os efeitos da decisão no RE 635.659/SP estarão suspensos. Entretanto, essa leitura contraria a própria essência do juízo de inconstitucionalidade, que deve valer desde sua prolação, alcançando todos os feitos em análise pelo Poder Judiciário. Enquanto não elaboradas as regras de transição, cabe ao Juízo deliberar conforme a legislação vigente, mesmo que se faça necessário o esforço hermenêutico ou analógico para suplantar as lacunas normativas. Como se afirmou no item anterior, acredita-se que prevalecerá um rito praticamente igual ao atual nos termos circunstanciados de ocorrência. As diferenças serão apenas a vedação de aplicação de prestação de serviços à comunidade e a natureza não penal da infração.

Orientação: A exigência de regulamento aprovado pelo CNJ, prevista na Tese 3, não impede a aplicação imediata do entendimento do STF no RE 635.695/SP, por se tratar de juízo de inconstitucionalidade de norma penal. Incumbe ao Juízo aplicar as disposições do STF dentro das balizas normativas vigentes, mesmo diante do momentâneo silêncio do CNJ ou do Poder Legislativo, ante o iura novit cura.

3.b. Usualmente, as punições por infrações administrativas são aplicadas por autoridades administrativas. O porte de Cannabis para consumo próprio, por força da Tese 2, está sujeito à reserva judicial na aplicação da infração, deverá ser aplicada pelo juiz. Segundo a Tese 3, enquanto não houver deliberação do CNJ em sentido contrário, a aplicação das sanções administrativas há de ser feita pelos Juizados Especiais Criminais, mesmo não se tratando de contravenção penal ou de crime de menor potencial ofensivo (artigo 98, inciso I, da Constituição e artigo 61 da Lei Federal nº 9.099/1995). Não obstante, apenas a lei prévia, e em sentido estrito, pode firmar normas de competência no âmbito do Juízo Criminal (artigo 5º, incisos LIV e artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), sendo concebível o argumento de que recai às Varas Cíveis, e não às Varas Criminais, a competência de apreciação dos pleitos sancionatórios para os casos de porte de Cannabis para consumo pessoal.

Orientação: Apesar do teor da Tese 3, é cabível, em tese, o conflito negativo de competência para a imposição das sanções administrativas previstas para o porte de Cannabis para consumo próprio, entre o Juizado Especial Criminal e a Vara Cível, com lastro no artigo 61 da Lei Federal nº 9.099/1995.

Ricardo Tolomelli/Divulgação

3.c. A Tese 3 contempla um procedimento peculiar, que não pode se confundir com um Termo Circunstanciado de Ocorrência — cabível apenas para contravenções e crimes de menor potencial ofensivo, nos termos do artigo 69 da Lei Federal nº 9.099/1995. A dita “notificação de comparecimento em juízo”, expedida pela Autoridade Policial ao infrator, deve substituir a intimação do acusado, e não a inicial do procedimento administrativo. A competência para a notificação recai sobre a Autoridade Policial, a saber, o Delegado de Polícia (artigos 4º e 6º do Código de Processo Penal), mas não pode ser iniciado o processo sancionatório apenas por força da notificação, sob pena de atuação de ofício do Juízo Criminal.

Tese 4 – Nos termos do §2º do artigo 28 da Lei 11.343/06, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito.

4.a. É louvável que o Supremo Tribunal Federal, diante da ambiguidade dos preceitos da Lei de Drogas, tenha erigido uma quantidade de Cannabis como parâmetro para a presunção relativa de porte para consumo próprio. Os estudos jurimétricos, amplamente noticiados pela imprensa, demonstram a seletividade na capitulação das infrações penais de porte para consumo próprio e de tráfico ilícito de drogas, notadamente tomando como critérios aspectos como a cor da pele ou a escolaridade do abordado. O que se espera é que a decisão no RE 635.659/SP reverbere por todo o sistema de persecução penal, desfazendo práticas punitivas inconstitucionais e seletivas. A incógnita é se a difícil transformação dessas práticas irá se concretizar a contento.

4.b. Há ambiguidade quanto à redação da Tese 4. A presunção de porte para consumo próprio é prevista para quem for encontrado com até 40 gramas de cannabis ou seis plantas-fêmeas. A conjunção alternativa “ou” dá a entender que as quantidades são alternativas, e não cumulativas. Contudo, pelo exame da Tese 8, é sabido que quantidades maiores de Cannabis não excluem a possibilidade de reconhecimento da infração administrativa de porte para consumo próprio, sendo mais adequado o entendimento de que as quantidades de Cannabis não são excludentes, mas também cumulativas.

Orientação: As quantidades descritas na Tese 4 são cumulativas, mantida a presunção de porte para consumo próprio caso o sujeito tenha, em seu poder, seis plantas-fêmeas e quarenta gramas de Cannabis processada.

Tese 5 – A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes.

5.a. O caráter relativo da presunção de porte de cannabis para uso próprio pode minar toda a sistemática proposta pelo resultado do RE 635.659/SP. O intuito declarado do precedente, dotado de repercussão geral, consiste em oferecer parâmetros práticos e objetivos para a diferenciação entre tráfico ilícito de drogas e porte para consumo próprio. Se o único parâmetro para a diferença, que é a quantidade, não há de ser tomado como prevalecente, o resultado pode ser a manutenção das práticas seletivas das abordagens policiais, que contribuem para a explosão da população carcerária. O intuito de mercancia, por sua vez, é relevante critério para a afirmação da conduta de tráfico ilícito de drogas, devendo ser amparado como critério para a delimitação do tipo legal de crime.

5.b. Uma infeliz realidade, razão de ser da prisão de muitas mulheres, é a conduta de portar, para consumo de terceiro, pequenas quantidades de cannabis, quando da visita prisional. Atualmente, o enquadramento dessas condutas é feito nos termos do artigo 33 da Lei de Drogas. Contudo, pela exigência do intuito de mercancia para a configuração do tráfico ilícito de drogas, há de se afastar a tipicidade penal destas condutas, sendo apenas conduta acessória a ilícito administrativo.

5.c. A aplicação dessa tese será o termômetro da efetividade da decisão do Supremo Tribunal Federal. Essa decisão enfrentará bastante resistência dentro do Judiciário, que continua preso em grande parte a uma mentalidade de que as drogas geram crimes e seu porte deve ser punido exemplarmente. Assim como outras decisões que tentaram atenuar a severidade e desproporcionalidade de certos pontos da legislação penal, corre sério risco de cair no ostracismo ante o expediente de transformar exceções em regras. Recordam-se, por exemplo, as diversas decisões sobre a excepcionalidade das prisões processuais que, mesmo assim, respondem por cerca de quarenta por cento do total de presos no país.

Orientação: Não é admissível o enquadramento, a título de tráfico ilícito de drogas (artigo 33 da Lei de Drogas), da conduta de tentar ingressar, em estabelecimento prisional, com pequenas porções de Cannabis, para uso de terceiros, ante a ausência de intuito de mercancia.

A interpretação desta tese deve ter como central a comprovação cabal da mercancia. Situações lícitas e circunstâncias também praticáveis por usuários de drogas como correr da polícia, portar dinheiro trocado, estar em local de compra e venda de drogas no momento da prisão ou portar droga embalada para compra e venda não devem ser utilizadas para enquadrar o caso como tráfico de drogas.

ConJur

Na interpretação desta tese 5, que é o verdadeiro termômetro desse julgamento, também valem as limitações recentes da valoração do testemunho policial, conforme decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça. O ideal é que seja exigida filmagem da operação policial, de modo a se garantir o direito efetivo à defesa e não continuar deferindo tamanha margem de arbitrariedade às forças policiais de transformar uma infração administrativa em um crime equiparado a hediondo e punido severamente apenas com base em um depoimento que não pode ser contestado em juízo.

Tese 6 — Nesses casos, caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal da autoridade e de nulidade da prisão.

6.a. A redação do artigo 28, § 2º, da Lei de Drogas estabelece critérios subjetivos e que podem ser desvirtuados, ao permitir que maleáveis circunstâncias comprovem o tráfico de drogas. Fugir da abordagem policial, portar dinheiro trocado, estar próximo a um local de compra e venda de drogas ou com a droga embalada para compra e venda são condutas que tanto podem ser praticadas por usuários quanto por traficantes. Deste modo, não deveriam servir para diferenciar esses crimes, mas, na prática, são invocadas para sustentar a imputação do crime de tráfico. Quando a Tese 6 menciona “critérios subjetivos arbitrários”, resta vedada a invocação, a título de demonstração do crime de tráfico ilícito de drogas, qualquer das situações supracitadas, mas também às circunstâncias de raça, etnia, condição econômica, ou escolaridade do suposto autor do fato.

Orientação: O ônus da demonstração do intuito de mercancia recai apenas sobre os agentes públicos responsáveis pela persecução penal, sendo a regra o reconhecimento do porte de droga para consumo pessoal. Consoante a jurisprudência do STJ, deve-se rechaçar, a título probatório, as buscas pessoais efetuadas sem justificativa plausível, o ingresso em residência sem mandado e mediante constrangimento do acusado, ou a alegação de comunicação anônima de crime desacompanhada de outros elementos probatórios.

Tese 7 — Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio.

7.a. Numa primeira leitura, a Tese 7 não parece ser necessária, considerando que toda prisão em flagrante deve ser analisada pelo Juízo de garantias, em sede de audiência de custódia, nos termos do artigo 5º, inciso LXII, da Constituição e do artigo 7.5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Entretanto, a análise não pode recair tão somente em relação à quantidade, mas ao conjunto dos elementos envolvidos na capitulação da conduta como tráfico ilícito de drogas, sendo vedada a adoção da (inexistente) presunção de validade da acusação, conhecida como in dubio pro societate.

Orientação: a análise do Juízo criminal, em audiência de custódia, acerca da existência ou não do intuito de mercancia não se limita às quantidades de Cannabis portadas pelo acusado, mas a todos os elementos de convicção, em atenção ao previsto na Tese 6.

Tese 8 — A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário.

8.a. A Tese 8 traz importante lembrança de que as quantidades previstas pela Tese 4 não são um critério absoluto para a determinação do intuito de consumo próprio. Como qualquer presunção, a Tese 4 não esgota todas as hipóteses de porte de Cannabis para uso próprio, sendo possível coadunar quantidades superiores às novas regras da infração administrativa. Notadamente, inexistente o caráter mercantil, a regra geral deve ser a do reconhecimento da infração administrativa, e não do crime.

Orientação: o parâmetro de 40 gramas ou de 6 plantas-fêmeas de Cannabis não pode ser interpretado em prejuízo do acusado, a contrario sensu, presumida a ocorrência de tráfico ilícito de drogas caso se venha a apreender quantidade superior. Em concurso com as Teses 5 e 6, a ocorrência do crime de tráfico de drogas demanda a comprovação, por parte da acusação, do intuito de mercancia, demonstrado por elementos objetivos da instrução probatória.

Certamente outras dúvidas surgirão quando da aplicação dos efeitos da decisão do RE 635.659/SP em situações práticas. Tais questionamentos serão debelados pela jurisprudência vindoura, ou pela atividade legislativa do Congresso, ou pela ação regulatória do Conselho Nacional de Justiça. Nesse atual período de transição, grandes são os riscos de atuações díspares em situações idênticas, conduzindo a insegurança jurídica e a quebras de isonomia entre acusados.

Toda mudança implica dificuldades, que talvez fossem menores se o rito de deliberação no RE 635.659/SP contasse com menos posicionamentos dissonantes entre os Ministros da Suprema Corte. A adesão da maioria a posicionamento único, expresso num só voto, poderia, em tese, reduzir a margem de dúvida acerca do teor do dispositivo. Espera-se que o acórdão futuro trate dos temas ainda controvertidos, indicando aos agentes do sistema penal como proceder nos casos de porte de Cannabis para consumo próprio.

Por fim, a tragédia humanitária que é a atual política criminal de “guerra às drogas” continua sem muitas modificações. O proibicionismo se encontra na raiz de diversos problemas graves enfrentados pelo Brasil, na área de segurança pública. O financiamento das organizações criminosas, a explosão da população carcerária, o recorte racial e social das abordagens policiais, a marginalização dos usuários e dos dependentes químicos — todas essas questões deitam raízes na abordagem militarizada e excludente da “guerra”. É uma política completamente contrária à Constituição, que ainda reproduz uma ótica típica da doutrina de Segurança Nacional, do regime ditatorial pré-constitucional.

Apesar do correto diagnóstico do problema, a decisão apresentada pelo mais elevado Tribunal do país não oferece a resposta contundente que dele se esperava, mas um tímido e vacilante passo no sentido dos direitos fundamentais — que, embora não desimportante, não alcança a importância história que dele se esperava.

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