Projeto de Lei em Santa Catarina quer instituir multas por porte de drogas
10 de julho de 2024, 19h32
No dia 2 de julho de 2024, foi aprovado na Assembleia Legislativa de Santa Catarina o Projeto de Lei nº 475/2021, que visa a instituir multas por porte e consumo de drogas ilícitas em espaços públicos em Santa Catarina. À luz da recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no RE nº 635.659/SP e da legislação federal vigente (Lei 11.343/06), é necessário um exame aprofundado dos limites da atuação legislativa estadual nesta matéria.

O artigo 2º do projeto de lei indica que os infratores serão responsabilizados pelo poder público na condição de pessoa física, sendo aplicada multa pecuniária, no valor de um salário mínimo, que será dobrado em caso de reincidência nos últimos 12 meses, ou seja, dois salários mínimos.
Embora a iniciativa demonstre uma preocupação legítima com a manutenção da ordem pública e a segurança dos cidadãos, a sua viabilidade jurídica suscita importantes questões. A legislação sobre drogas é uma área delicada e complexa, que envolve tanto aspectos de saúde pública quanto de direito penal.
A Constituição, no artigo 22, inciso I, atribui à União a competência privativa para legislar sobre direito penal. Este dispositivo estabelece que a definição de crimes e a aplicação de sanções penais são de responsabilidade exclusiva do legislador federal. O projeto de lei estadual, ao propor a criação de multas para o porte e consumo de drogas, entra em uma seara que é claramente reservada à União, configurando uma invasão de competência.
Apesar do julgamento do STF que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal, classificando-o como uma infração administrativa, todas as outras drogas continuam sendo tratadas como ilícito penal, conforme o artigo 28 da Lei nº 11.343/2006. A Lei de Drogas já regulamenta de forma abrangente as infrações e sanções relacionadas ao porte e consumo de drogas. Qualquer tentativa de um ente federado em legislar de maneira independente sobre esta matéria fere o princípio da legalidade.
Assim, a criação da pena de multa para o usuário flagrado sob o porte e/ou consumo de outras substâncias que não sejam maconha implica em usurpação da competência exclusiva da União para legislar sobre matéria penal, conforme definido pelo artigo 22, inciso I, da Constituição. E qualquer contrariedade a este princípio compromete a integridade do sistema federativo e a uniformidade das políticas públicas sobre drogas, que deveriam ser pensadas em conjunto com outros entes da sociedade civil.
O princípio da legalidade penal, insculpido no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição, estabelece que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Além disso, o projeto de lei estadual, ao propor sanções para o porte e consumo de drogas, adentra uma seara que já é normatizada pela Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas). A duplicidade de normas penais cria insegurança jurídica e também fere o princípio da legalidade, uma vez que compete exclusivamente à União a definição de crimes e penas.

Embora o PL nº 475/2021 tenha a intenção de instituir multas para o porte e consumo de drogas ilícitas em espaços públicos sob o pretexto de serem sanções administrativas, uma análise mais aprofundada demonstra que tais multas não possuem, de fato, caráter administrativo genuíno.
Os princípios que regem a administração pública, conforme o artigo 37 da Constituição, incluem a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. As sanções administrativas verdadeiramente compatíveis com esses princípios são aquelas que visam à regulação de condutas administrativas e à manutenção da ordem pública, garantindo a eficácia dos serviços prestados pelo Estado.
Abordagem punitiva
Dessa forma, o projeto de lei, ao criar estas multas, parece adotar uma abordagem punitiva mais típica do direito penal do que do administrativo, faltando-lhe a estrutura procedimental e as salvaguardas típicas das sanções administrativas, sobretudo porque a aplicação de penalidades deve seguir um procedimento administrativo específico, que inclua garantias de ampla defesa e contraditório, assegurando que as sanções sejam aplicadas de maneira justa e proporcional.
Aliás, o princípio do ne bis in idem, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição, estabelece que ninguém pode ser punido mais de uma vez pelo mesmo fato. A dupla penalização, com a imposição de multas administrativas pelo Estado e sanções previstas na legislação federal, afronta diretamente este princípio.
Ademais, as sanções impostas devem ser proporcionais à gravidade da infração, conforme o princípio da proporcionalidade implícito no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição. O projeto de lei, ao instituir multas sem critérios claros de proporcionalidade, pode resultar em penalidades desarrazoadas e injustas. A legislação deve prever mecanismos que assegurem que as sanções aplicadas sejam justas e adequadas à natureza da infração. Deve haver uma justificativa relevante de incluir multa apenas para drogas ilícitas, considerando que drogas lícitas podem igualmente prejudicar a saúde das pessoas e causar maiores prejuízos à coletividade, como no caso do álcool ou o próprio tabaco (cigarro).
Além disso, a imposição de multas por porte e consumo de drogas impacta direitos fundamentais dos indivíduos, como o direito à privacidade e à liberdade individual.
Vale lembrar, ainda, que a competência para criar ou remodelar órgãos do Executivo e para estabelecer novas despesas é privativa do chefe do Executivo, conforme o artigo 61, §1º, II, ‘a’ da Constituição e artigo 50, §2º da Constituição do estado de Santa Catarina. O projeto de lei, ao propor a implementação de um novo regime de multas e “procedimentos administrativos”, possivelmente cria novas despesas e reorganiza a administração pública, o que configura vício de iniciativa. Afinal, qual órgão estadual ficará responsável por receber e processar os recursos administrativos de usuários que tenham sido multados?
Por isso é vedada a deflagração de processo legislativo, por parlamentar, que possua o intento de remodelar órgãos do Executivo, seu funcionamento, e a estruturação da administração pública, mais especificamente em relação a servidores e a órgãos do Poder Executivo.
Não é demais observar que, ainda que o ato oriundo do Legislativo imponha dever de fiscalização e de instituição de multas, incumbe ao Executivo cumprir e fazer com que se cumpram as leis, o que é da sua essência. Até por isso, está previsto no artigo 4º que o Poder Executivo deverá regulamentar a lei no prazo de 30 dias, contados da sua publicação no Diário Oficial Estadual (DOE).
Fiscalização e aplicação de multas
Para executar a fiscalização e aplicação das multas, o Poder Executivo deverá criar um órgão administrativo específico ou designar um já existente para essa função. Isso inclui a definição das atribuições, competências e estrutura organizacional do novo órgão, o que envolve processos legislativos e administrativos complexos.
Isso implica a realização de concursos públicos ou processos seletivos para a contratação, além da necessidade de treinamento específico para que esses servidores estejam capacitados a fiscalizar, aplicar multas e conduzir processos administrativos de forma eficiente e justa, em obediência ao contraditório e à ampla defesa.
Dessa forma, a implementação das ações previstas no projeto de lei demandará planejamento orçamentário detalhado. O Executivo deverá alocar recursos financeiros não previstos anteriormente, no curto prazo de 30 dias, estipulado pelo Legislativo estadual.
A Procuradoria Geral do Estado (PGE/SC) emitiu parecer contrário, destacando a inconstitucionalidade do projeto de lei, enquanto a Polícia Militar de Santa Catarina (PM-SC) e a Polícia Civil de Santa Catarina (PC-SC) emitiram pareceres favoráveis, enquanto representantes da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Este contexto levanta questões importantes sobre a verdadeira natureza da sanção proposta — se é administrativa ou penal — e as intenções subjacentes à sua implementação.
Os pareceres favoráveis ao projeto foram emitidos exclusivamente por órgãos de segurança pública. A PM-SC e a PC-SC podem enxergar na proposta uma ferramenta para reforçar a ordem pública e a segurança nos espaços públicos, entretanto, há de se destacar que os valores recolhidos de usuários são também destinados às mesmas polícias que votaram de maneira favorável à instituição da referida pena de multa (PM e PC). A visão predominantemente punitiva e persecutória desses órgãos (não é segredo para ninguém) sugere que a sanção não é verdadeiramente administrativa, mas sim penal, com o intuito principal de punir (mais uma vez) os infratores.
Muito embora o projeto de lei pretenda instituir multas com suposto “caráter administrativo”, a concordância dessa sanção exclusivamente por órgãos de segurança pública e a falta de envolvimento de órgãos de saúde pública ou sociais indicam um enfoque punitivo. A verdadeira sanção administrativa visa à regulação e controle administrativo, e não à punição penal. Para ser considerada administrativa, a sanção deve estar inserida em um contexto de gestão pública que privilegie a prevenção, a educação e a reabilitação, em vez da mera repressão.
O artigo 3º dispõe que os valores arrecadados em decorrência da aplicação desta lei serão revertidos a políticas públicas de prevenção ao uso de drogas e ao tratamento de adictos (que já é competência do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas — Sisnad).
Não obstante, a destinação das verbas arrecadadas será destinada majoritariamente à segurança pública (50%). Somado à ausência de opinião jurídica de órgãos de saúde e assistência social, isso revela uma falta de abordagem integrada e multidisciplinar. A proposta do projeto de lei, ao focar na arrecadação de recursos para a segurança pública, não demonstra uma preocupação genuína com a qualidade de vida e a saúde dos usuários de drogas, reforçando ainda mais o caráter meramente punitivo.
Portanto, o Projeto de Lei nº 475/2021 de Santa Catarina, ao propor a aplicação de multa para o porte e consumo de drogas no âmbito do estado, invade a competência privativa da União, viola o princípio da legalidade penal, cria despesas indevidas ao governo estadual e ataca frontalmente direitos fundamentais, como da privacidade, proporcionalidade e autonomia de vontade.
É de suma importância que o “infrator” multado busque assistência jurídica especializada, pois, por meio dos recursos cabíveis, invariavelmente os procedimentos serão arquivados e os usuários absolvidos, devido à sua flagrante inconstitucionalidade, pelos motivos supracitados.
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