Ambiente Jurídico

Litigância climática: dever corporativo de vigilância na França

Autores

  • é juíza de Direito doutora em Direito pela Université de Paris-Sud titular de master II em Droit de l'Environnement também pela Université de Paris-Sud especialista em Droit comparé et européen des contrats et de la consommation Université de Savoie ; coordenadora da Unidade Ambiental Ecojus do TJ-RS coordenadora do Núcleo de Estudos de Direito Ambiental da Escola Superior da Magistratura-Ajuris.

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  • é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

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6 de julho de 2024, 8h00

Implantado na legislação francesa pela Lei nº 2017-399, o dever de vigilância exige que grandes empresas [1] identifiquem, previnam e mitiguem riscos significativos para os direitos humanos e o meio ambiente decorrentes de suas atividades, bem como das operações de suas subsidiárias e fornecedores. Essa legislação, no entanto, não menciona explicitamente as mudanças climáticas, tratando os riscos ambientais de forma mais genérica.

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Em contraste, a recém-aprovada Diretiva Europeia de Diligência Devida em Sustentabilidade Corporativa (Corporate Sustainability Due Diligence Directive — CSDDD) incorpora o conceito de dever de vigilância no direito europeu com um foco explícito nas mudanças climáticas. Esta diretiva estabelece requisitos específicos para que as empresas reduzam as emissões de gases de efeito estufa e adaptem suas operações aos desafios climáticos, alinhando-se aos compromissos internacionais, como o Acordo de Paris, e sublinhando a responsabilidade direta das empresas na luta contra o aquecimento global.

A Diretiva Europeia, sendo posterior à legislação francesa, define novos parâmetros que ampliam o escopo da responsabilidade corporativa, incluindo aspectos específicos relacionados às mudanças climáticas. A França, que já possui a Lei nº 2017-399, enfrentará o desafio de transpor esta diretiva para o direito interno. Esse processo exige a adaptação das normas nacionais para se alinharem aos objetivos mais abrangentes estabelecidos pela União Europeia.

A transposição da diretiva permitirá não apenas uma atualização, mas possivelmente uma expansão do âmbito da lei existente, integrando de maneira mais explícita as questões climáticas nas obrigações de vigilância das empresas . É de serem relembradas, neste contexto, as oportunas palavras de Jeffrey Sachs:

“O dever de boa governança deve aplicar-se não apenas aos Estados, mas às empresas privadas. O setor público e o privado devem operar de acordo com as leis previstas no Estado de Direito, com responsabilidade, transparência e receptividade às necessidades dos acionistas e contribuintes; com engajamento ativo em questões críticas como poluição, aquecimento global e uso da terra; equidade e honestidade nas práticas políticas e nos negócios”. [2]

Não é redundante referir que nos litígios climáticos está presente a necessidade de se explorar a responsabilidade civil das companhias por abusos aos direitos humanos o que, aliás, foi identificado pela Organização das Nações Unidas e outras organizações internacionais . Em 2005, o então Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, nomeou o professor John Ruggie como seu principal representante para tratar do tema direitos humanos e corporações transnacionais e outras empresas de negócios.

Ruggie desenvolveu os seus princípios em um conjunto pautado pela proteção, respeito e instrumentos legais de reparação e, também, providenciou diretrizes para colocá-los em operação o que, aliás, foi aprovado pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas .[3]

Esta moldura, de acordo com Van Dam, [4] consiste em três pilares: (1) o dever do Estado de proteger, (2)o dever das corporações de respeitar e (3) o acesso aos instrumentos jurídicos para a reparação da violação aos direitos humanos. O segundo pilar, em particular, prevê, em combinação com os guias de princípios, standards não vinculativos para impedir a violação aos direitos humanos. De acordo com o referido autor, esta forma de soft law pode ser o primeiro passo na direção da criação de standards obrigatórios dentro dos sistemas nacionais de responsabilidade civil das empresas e companhias no caso de violação de direitos humanos . [5]

Importante referir que as emissões de gases de efeito estufa por companhias produtoras de energia produzida pela queima de combustíveis fósseis é parte da causa do aquecimento global e dos seus efeitos catastróficos [6] que podem, em tese, violar direitos humanos. Existem exemplos clássicos de possíveis violações dos direitos humanos por companhias emissoras de gases de efeito estufa como as mortes e privações econômicas, políticas e sociais causadas por eventos climáticos extremos como as secas, as inundações, o aumento do nível dos oceanos, da intensidade das tempestades, dos ciclones e dos furacões, que não raras vezes geram também as tristes figuras dos refugiados climáticos.

Também não se pode ignorar o Guia de Princípios sobre Negócios e Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), além da UN Compact e da ISSO 26.000. A responsabilidade social das organizações está fixada pela  ISO 26.000 que dispõe:

“A responsabilidade social se expressa pelo desejo e pelo propósito das organizações em incorporarem considerações socioambientais em seus processos decisórios e a responsabilizar-se pelos impactos de suas decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente. Isso implica um comportamento ético e transparente que contribua para o desenvolvimento sustentável, que esteja em conformidade com as leis aplicáveis e seja consistente com as normas internacionais de comportamento. Também implica que a responsabilidade social esteja integrada em toda a organização, seja praticada em suas relações e leve em conta os interesses das partes interessadas.” [7]

De se considerar que “O Guia de Princípios sobre Negócios e Direitos Humanos da ONU”, os já mencionados Princípios Ruggie, consistem em 31 princípios que visam levar as corporações a incorporarem uma ética socioambiental em suas ações. As orientações são baseadas no reconhecimento de obrigações assumidas pelos estados de respeitar, proteger e implementar os direitos humanos e liberdades fundamentais e no reconhecimento do papel das empresas como órgãos especializados da sociedade que devem cumprir todas as leis aplicáveis e respeitar os direitos humanos  e a necessidade de que os direitos e obrigações sejam providos pelos estados de instrumentos legais procedimentais correspondentes a serem utilizados em caso de sua violação. [8]

Neste contexto, da necessidade da obediência a princípios éticos, e da própria legislação socioambiental por grandes empresas, ao comentar o caso Schell, no qual são analisados os ditos deveres  empresariais e corporativos de diligência,  Gerrard refere que:

…deveremos observar agora  processos similares  ajuizados em outros países contra outras corporações e, especialmente, que estes litígios climáticos podem forçar as companhias de petróleo e outras grandes corporações a reduzir as emissões em nível global. Outro ponto importante é que a decisão, se mantida em eventual etapa recursal, será aplicada amplamente às emissões da Shell, além das refinarias na Holanda, para incluir suas cadeias de fornecimento globais e outras operações. [9]

Obrigações legais

Retornando ao ponto central do presente texto, uma decisão recente do Tribunal de Apelação francês [10] em uma ação movida diversas associações e coletividades territoriais contra Total Energies reforça essa tendência, sugerindo uma evolução no direito francês que poderia levar à integração explícita das mudanças climáticas nas obrigações legais de vigilância das empresas.

Na ação, os autores contestam o plano de vigilância climática da empresa [11], argumentando que não atende suficientemente aos requisitos da lei de vigilância, notadamente no que diz respeito às ações de prevenção e mitigação das mudanças climáticas e à redução de emissões de gases de efeito estufa (GES).

Ao analisar a admissibilidade dos pedidos e o interesse de agir das partes, embora a decisão não tenha afirmado explicitamente a existência de um dever de litigância climática, ao final terminou por reenviar o caso ao juízo de primeiro grau, indicando que as alegações relacionadas ao dever de vigilância quanto aos impactos climáticos são juridicamente justificáveis e merecem ser examinadas em processo judicial. Isso é significativo porque mantém o debate a respeito da amplitude do dever de vigilância em aberto, além de não fechar as portas para outras ações semelhantes que eventualmente venham a ser ajuizadas.

Segundo Agathe Beaujon [12], a recente decisão trouxe alívio às ONGs quanto ao futuro da justiça climática na França, pois abre caminho para um julgamento de mérito sobre o cumprimento pela Total Energies de suas obrigações climáticas. Essa situação é vista como um avanço significativo para o acesso à justiça e a efetividade do dever de vigilância.

Adicionalmente, essa decisão é uma das primeiras emitidas pela nova câmara do tribunal de apelação, que é focada em litígios emergentes relacionados à responsabilidade ecológica das empresas. A sensibilidade desta jurisdição especializada, segundo a autora, teria um papel decisivo, marcando uma mudança significativa em relação às abordagens de primeira instância.

Com efeito, a relevância dessa decisão reside no fato de que ela potencialmente pavimenta o caminho para que, no direito francês, o dever de vigilância seja interpretado ou expandido para incluir explicitamente questões relacionadas às mudanças climáticas, antes mesmo da transposição da diretiva. Mais do que isso, ela abre caminho para uma nova espécie de litigância climática, baseada no dever de diligência corporativa (due diligence). [13]

Este desenvolvimento sugere uma nova fase na responsabilidade ambiental empresarial, onde o cumprimento das obrigações legais e a responsabilidade social das empresas estarão cada vez mais vinculados à sua performance ambiental direta, refletindo uma tendência global de maior accountability corporativa em relação às questões climáticas.

Em conclusão, a interação entre a legislação francesa e a diretiva europeia destaca uma trajetória evolutiva no direito corporativo, ambiental e climático, onde os desafios globais das mudanças climáticas estão sendo cada vez mais integrados às práticas de governança corporativa.

Mais do que isto, na medida em que essas leis e regulamentos continuem a evoluir, é provável que vejamos um aumento na litigância relacionada ao clima, com empresas sendo chamadas a responder não apenas ante os seus sócios, mas também perante a sociedade e os tribunais, por suas ações e inações, inconstitucionais, ilegais, ou inconvencionais, no enfrentamento deste cenário de emergência climática em que estamos inseridos.

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[1] A legislação francesa fala especificamente no dever de vigilância da “société mère”, o que pode ser traduzido para o português como “empresa-mãe”, ou “sociedade-mãe”. Este conceito refere-se à empresa principal dentro de um grupo de empresas, que possui controle ou uma influência significativa sobre outras empresas subsidiárias (conglormerados). A empresa-mãe geralmente detém a maioria das ações de suas subsidiárias e pode dirigir as políticas corporativas e a gestão dessas empresas menores. Este conceito é essencial para promover uma governança corporativa responsável e ética em um contexto globalizado, onde as cadeias de valor são extensas e complexas, e onde as ações de uma subsidiária em uma parte do mundo podem ter impactos significativos e diretos sobre os direitos humanos e o ambiente em outra.

[2] SACHS, Jeffrey. The Age of Sustainable Development. New York: Columbia University Press, 2015. p. 42.

[3] VAN DAM, Cees. European Tort Law. Oxford: Oxford University Press, 2014. p. 389.

[4] VAN DAM, Cees. European Tort Law. Oxford: Oxford University Press, 2014. p. 393.

[5] VAN DAM, Cees. European Tort Law. Oxford: Oxford University Press, 2014. P. 393.

[6] FARBER, Daniel. Disaster Law and Inequality. Law and inequality, Minneapolis, v. 25, n. 2, p. 297-322, 2007.

[7]INMETRO. ISO 26000, 2010. Disponível em: <http://www.inmetro.gov.br/qualidade/responsabilidade_social/iso26000.asp>. Acesso em: 20 jun. 2018.

[8] UNITED NATIONS. Guiding Principles on Business and Human Rights. Disponível em: <https://www.ohchr.org/Documents/Publications/GuidingPrinciplesBusinessHR_EN.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2018.

[9]  GERRARD, Michael; BURGER, Michael; FREEEMAN, Jody. Global Climate Change and U.S. Law. 3. ed. Chicago: American Bar Association, 2023.p. 135

[10] CA, Arrêt du 18 juin 2024.

[11] O plano de vigilância é um instrumento exigido de grandes empresas, nos termos da lei francesa de 27 de março de 2017. Elaborado em conjunto com as partes interessadas e divulgado publicamente, o plano deve incluir:  1) mapeamento dos riscos; 2) procedimentos de avaliação regular das operações da empresa e de seus parceiros comerciais; 3) ações adaptadas para atenuar riscos e prevenir impactos negativos graves; 4) mecanismos de alerta e coleta de denúncias;  e 5) mecanismos de monitoramento e avaliação da eficácia das medidas implementadas.

[12] Devoir de vigilance : nouvelle étape dans le procès climatique contre TotalEnergies et EDF, disponível em https://www.challenges.fr/entreprise/green-economie/devoir-de-vigilance-nouvelle-etape-dans-le-proces-climatique-contre-totalenergies-et-edf_896773 (consultado em 02/07/2024).

[13] Como muito bem referido, aliás, por Tiago Fensterserifer : “O  Caso Comunidade La Oroya vs. Peru da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), julgado em novembro de 2023 e cuja decisão foi publicada no mês de março de 2024, abordou de forma paradigmática o “dever de devida diligência” das empresas públicas e privadas em matéria de direitos humanos, meio ambiente e clima.

O tema foi novamente abordado pela Corte IDH durante o 167º Período Ordinário de Sessões que ocorreu no Brasil, entre os dias 20 e 29 de maio de 2024, com a sua abertura realizada no Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Nos dias 24 (no Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília), 27, 28 e 29 (no Teatro Amazonas, em Manaus), a Corte IDH realizou audiência pública histórica para subsidiar a futura Opinião Consultiva n. 32 sobre “Emergência Climática e Direitos Humanos”, objeto de solicitação formulada pela Colômbia e Chile no início do ano de 2023.

Caso Comunidade La Oroya é o primeiro julgamento contencioso da Corte IDH sobre poluição ou contaminação química. Para dimensionar a magnitude da poluição industrial verificada no caso, La Oroya foi listada entre as localidades mais poluídas do Mundo por órgãos internacionais.

A poluição levada a efeito pelo Complexo Metalúrgico de La Oroya, no Peru, perpetuou-se por mais de um século, ensejando, segundo a Corte IDH, violação flagrante ao direito a um meio ambiente saudável e a configuração de uma “zona de sacrifício”, caracterizada pela violação sistêmica e massiva dos direitos humanos dos seus residentes. Inúmeras gerações dos habitantes de La Oroya foram envenenadas por chumbo, arsênico e outras substâncias químicas altamente tóxicas, resultando em doenças (físicas e mentais) e mortes. Disponível em: https://blog.grupogen.com.br/juridico/areas-de-interesse/ambiental/direitos-humanos-meio-ambiente-e-dever-de-diligencia-das-empresas/. Consultado em: 01/07/2024.

Autores

  • é juíza de Direito, doutora em Direito pela Université de Paris-Sud, titular de master II em Droit de l'Environnement também pela Université de Paris-Sud, especialista em Droit comparé et européen des contrats et de la consommation, Université de Savoie ; coordenadora da Unidade Ambiental Ecojus do TJ-RS, coordenadora do Núcleo de Estudos de Direito Ambiental da Escola Superior da Magistratura-Ajuris.

  • é juiz federal, professor do PPG e Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Escola Superior da Magistratura Federal. Pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), vice-presidente do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

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