Trio é condenado por dano moral coletivo ao ‘exorcizar’ terreiro de candomblé no Maranhão
3 de julho de 2024, 7h48
A tentativa de impor a própria fé a terceiros, mediante um discurso de pretensa superioridade que desqualifica a crença alheia, caracteriza intolerância religiosa e gera o dever de indenizar. Com esse entendimento, o juiz Douglas de Melo Martins, da Vara de Interesses Difusos e Coletivos de São Luís, condenou dois homens e uma mulher a pagar indenização de R$ 5 mil por danos morais coletivos. Eles fizeram manifestação em frente a um terreiro de candomblé na capital maranhense para “exorcizá-lo”.

Terreiro de candomblé foi vítima de intolerância religiosa no Maranhão
“A força das manifestações emanadas pelos réus não aparenta mero proselitismo, pois as frases de ordem tentam comunicar uma hierarquia entre as crenças, a partir de uma suposta supremacia religiosa por parte dos réus”, observou Martins. Ele julgou procedente a ação civil pública movida pela Defensoria Pública do Estado do Maranhão. Para o juiz, houve “situação grave de intranquilidade social, gerando danos relevantes na esfera moral da coletividade, muito além do limite da tolerabilidade”.
De acordo com a inicial, sob liderança dos réus, um grupo de integrantes de duas igrejas promoveu manifestação em frente à Casa Fanti-Ashanti por ocasião de uma festividade em homenagem ao orixá Ogum. Com direito a carro de som, faixas e distribuição de panfletos, os acusados anunciaram a intenção de “expulsar os demônios”. Imagens mostram que eles estenderam as mãos segurando Bíblias para “exorcizar” o terreiro de matriz africana e os seus adeptos.
“Houve, de fato, uma conduta intolerante, sob a forma de violência verbal e simbólica, contra as convicções religiosas da Casa Fanti-Ashanti”, concluiu o julgador. Ele fundamentou a sentença no artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, que assegura a igualdade de todos perante a lei e proclama como “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.
A decisão também cita outros dispositivos constitucionais, tais como o artigo 3º, inciso IV, conforme o qual é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Já artigo 5º, inciso XLI, determina que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. Por fim, o artigo 19, inciso I, consagrou a laicidade estatal.
Conforme o julgador, a Carta Magna conferiu ao Estado a sua condição de laico, de forma a não direcionar a verdade para apenas uma religião, mas buscando garantir a existência do pluralismo religioso. Martins acrescentou que, apesar de o Brasil ser um país predominantemente cristão, ele é caracterizado por uma forte presença do sincretismo religioso: “As religiões afro-brasileiras estão incorporadas à identidade cultural do país”.
Se pode mais, pode menos
Como forma de reforçar ainda mais a procedência da ação civil pública, o juiz lembrou que o artigo 208 do Código Penal tipifica as condutas de “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa, impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. O artigo 20 da Lei 7.716/1989, por sua vez, considera crime de racismo o ato de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião”.
“Se a esfera penal, que é baseada no princípio da intervenção mínima, tipifica tais condutas, no âmbito cível elas jamais poderiam passar despercebidas”, finalizou Martins. A sua única objeção recaiu sobre valor da indenização. A DPE-MA pediu R$ 20 mil, mas o juiz ponderou que a condição econômica dos réus recomenda moderação. Para ele, a quantia de R$ 5 mil é adequada para atingir o propósito educativo da condenação, sem se revelar desproporcional e excessivamente onerosa aos requeridos.
A indenização será revertida ao Fundo Estadual de Direitos Difusos. Os réus também arcarão com as custas processuais e os honorários advocatícios, que foram fixados em 10% sobre o valor da condenação e se destinarão em favor do Fundo de Aparelhamento da DPE-MA. A decisão ratificou a tutela de urgência que determinou aos demandados, sob pena de multa, absterem-se de promover quaisquer manifestações que ameacem, ofendam ou agridam as religiões de matriz africana e os seus praticantes.
Processo 0828468-16.2022.8.10.0001
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