STF deveria ter descriminalizado o uso de todas as drogas
3 de julho de 2024, 6h02
Quando em agosto de 2015, o STF (Supremo Tribunal Federal) começou a julgar o Recurso Extraordinário (RE 635.659) sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006 (posse para consumo de drogas ilícitas) interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o relator do recurso, ministro Gilmar Mendes, em substancioso e bem fundamentado voto, decidiu pela inconstitucionalidade do referido artigo e, consequentemente, pela descriminalização da posse para consumo de drogas ilícitas, de todas as drogas e não apenas da “maconha”.

Argumentou a Defensoria Púbica que o artigo 28 da Lei 11.343/2006 é inconstitucional por violar o direito fundamental à intimidade e à privacidade. Asseverando, ainda e acertadamente, que criminalizar o uso de drogas viola o princípio da lesividade, segundo o qual só podem ser considerados crimes condutas que afetem bens jurídicos de terceiros ou coletivos.
Neste primeiro voto, segundo o relator, “a criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”.
No que pese a decisão do STF, no julgamento que terminou no último 27, em que decidiu pela descriminalização, tão somente, do porte da maconha para uso próprio, fixando a quantia de até 40 gramas para diferenciar usuários de traficantes, é necessário ressaltar que os fundamentos jurídicos para a descriminalização de todas as drogas e não somente da cannabis sativa à luz da Constituição da República valem para todas as drogas, são eles: i. violação ao direito de privacidade; ii. violação à autonomia individual; iii. violação ao princípio da proporcionalidade, e, iv. Violação ao princípio da lesividade.
No que diz respeito ao objeto jurídico do crime — para maioria da doutrina e dos tribunais a saúde pública — Maria Lúcia Karam afirma que:
“Na conduta de uma pessoa, que destinando-a a seu próprio uso, adquire ou tem em posse de uma substância, que causa ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde pública, dada a ausência daquela expansibilidade do perigo”. Nesta linha de raciocínio, prossegue uma das maiores especialistas no tema, “não há como negar a incompatibilidade entre aquisição ou posse de drogas para uso pessoal – não importa em que quantidade – e a ofensa à saúde pública, pois não há como negar que a expansibilidade do perigo e a destinação individual são coisas antagônicas…” [1]
Princípio da lesividade
Já em relação ao princípio da lesividade (nullum crimen sine injuria), também chamado de princípio da ofensividade, só podem ser considerados como crimes aqueles comportamentos que lesam ou ofendam bem jurídico alheio público ou particular. Pelo referido princípio à conduta interna e, portanto, que não se exterioriza lesionando direitos de outras pessoas devem se situar fora do âmbito do direito penal, ainda que seja “pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente – falta a lesividade que pode legitimar a intervenção penal”. [2]
O princípio da lesividade compreende quatro funções: a) proibir a incriminação de uma atitude interna; b) proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor; c) proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais e d) proibir a incriminação de condutas desviadas que não afete qualquer bem jurídico. [3]
Não resta dúvida, portanto, que a criminalização do uso de drogas, frise-se, todas as drogas, ofende o princípio da lesividade já que se trata de uma atitude interna que não extrapola o âmbito do próprio autor.
Outro aspecto da decisão do STF que merece ser analisado com ressalvas, refere-se à fixação de 40 gramas de maconha para diferenciação do usuário do traficante. O que, segundo a própria decisão, não é um critério absoluto já que apreensões de menos de 40 gramas, acompanhadas por balanças de precisão e anotações de venda, por exemplo, podem caracterizar tráfico.
A fixação da quantidade de drogas para diferenciar o usuário do traficante foi motivada pelo tratamento discriminatório e mais rigoroso dado aos mais vulneráveis (jovens, negros, pobres, de baixa escolaridade e residentes nas periferias) em relação aos grupos privilegiados (brancos, com nível superior e residentes em zonas nobres das cidades).
Conforme muito bem demonstrado pelo ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, os mais vulneráveis, com a mesma quantidade de drogas que os privilegiados, são enquadrados como traficantes enquanto os mais favorecidos como usuários, revelando o caráter seletivo do sistema penal.
Contudo, apesar da boa intenção do STF em tentar diferenciar os usuários dos traficantes, o critério da quantidade de drogas, por si só, não é suficiente para distinguir um do outro, uma vez que a atual Lei 11.343/2006 em seu § 2º do artigo 28 dá margem a interpretações subjetivas por parte do julgador, posto que:
“Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”
A decisão do STF em quase nada alterou o poder discricionário do julgador, como bem antecipou o desembargador Marcelo Semer, do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo):
“A centralidade da palavra da polícia indica que a decisão do STF, se de fato convergir pela descriminalização do porte e a fixação de um limite mínimo de droga para a presunção do tráfico, pode não ter o efeito desejado: afinal, o próprio ministro Alexandre de Moraes já indicou que, além do volume, outras circunstâncias vão ser levadas em conta, como denúncias anônimas, local de apreensão, apetrechos etc. — todos elementos que chegam ao juízo exclusivamente pelos relatos da polícia.” [4]
Embora seja inegável a necessidade da fixação de critérios objetivos para diferenciar os usuários dos traficantes evitando que os mais vulneráveis sejam tratados de forma discriminatória, preconceituosa e racista pelas agências punitivas, tais critérios não serão suficientes enquanto prevalecer um sistema em que a palavra da polícia se sobrepõe a qualquer outra prova em afronta ao contraditório e a presunção de inocência.
Salo de Carvalho e Marian de Assis Brasil e Weigert, assinalam que:
“Pelo fato de ser um tema extremamente delicado na política criminal, as diretrizes legais e jurisprudenciais no direito penal das drogas devem ser claras e taxativas, sem dubiedades e sem relativizações, sob pena de serem produzidas contrarreformas, legislativas e judiciais, que tornam inefetivos os (poucos) avanços. A comprovação desta hipótese ocorreu de forma imediata com a proposta de Emenda Constitucional pelo Senado Federal.” [5]
Por fim, entende-se que o STF deveria nos termos do voto proferido pelo ministro relator Gilmar Mendes, em agosto de 2015, ter declarado a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, pelos fundamentos expostos, dando um passo importante e necessário para um real enfrentamento da questão das drogas, sem preconceitos e falsos moralismos.
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[1] KARAM, Maria Lucia. De crimes, penas e fantasias. Niterói, RJ: Luam, 199, p. 125-126.
[2] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 91.
[3] BATISTA, Nilo. Introdução crítica…ob. cit. p. 92-94.
[4] SEMER, Marcelo. A guerra às drogas é uma guerra contra jovens negros. Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-guerra-as-drogas-e-uma-guerra-contra-jovens-negros/.
[5] Carvalho,S; ASSIS BRASIL E WIGERT, M. Sobre os critérios quantitativos para diferenciar a imputação no Direito Penal das drogas. Boletim IBCCRIM, [S.I.] v.31, n. 373.
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