Revolução, crise e resiliência: 35 anos da Constituição de 1988
21 de janeiro de 2024, 11h30
Aos 35 anos, completados em 5 de outubro de 2023, a Constituição de 1988 é indiscutivelmente longeva, não apenas superando em muito a duração das demais constituições brasileiras do Século XX, mas também se afastando robustamente da idade média das constituições mundiais (de 19 anos, segundo Zachary Elkins, Tom Ginsburg e James Melton)[1].

O grande paradoxo que parece assombrar a doutrina brasileira é como conciliar a longevidade da Constituição de 1988 com as frequentes crises que a assombram. Aliás, crise é certamente a tônica das celebrações acadêmicas aos 35 anos da Constituição, realizadas à sombra do 8 de janeiro e dos difíceis anos que o antecederam[2].
É mais ou menos consensual que o sistema constitucional brasileiro se encontra em algum tipo de crise há mais de uma década[3]. O marco inicial usualmente apontado são os protestos de junho de 2013, um presságio da insatisfação política que explodiria nos anos seguintes, e o ponto inicial das narrativas que procuram explicar a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Debate-se a existência de uma longa crise ou de múltiplas e distintas – ainda que relacionadas – crises. Mas mesmo entre os que adotam uma narrativa contínua há o reconhecimento de diferentes fases e momentos mais e menos agudos.
O fato é que é difícil conciliar tanta turbulência constitucional com longevidade. Tradicionalmente, as crises são tidas como os lugares em que as constituições nascem e morrem[4]. A Constituição, com a concepção moderna que nós conhecemos, é fruto da crise, da turbulência, da alternância de poder, do protesto, da mudança; a palavra é maior que crise – é revolução. As duas Revoluções são o berço do constitucionalismo moderno, a Francesa e a Americana, são responsáveis por estabelecer a conexão quase automática que fazemos entre as constituições e os recomeços políticos e sociais.
Mesmo em seus primeiros expoentes, no final do Século XVIII, o constitucionalismo que nascia na crise já se projetava para os períodos de normalidade política. As constituições foram concebidas com vocação de permanência, e destinadas, portanto, a perdurarem além do momento e da conjuntura da crise. Esse é, inclusive, um dos primeiros marcos do sucesso de uma Constituição – ser capaz de sobreviver e reger a vida política das gerações seguintes àquela que a concebeu[5].
Antes do início da longa crise constitucional atual, o Professor Oscar Vilhena Vieira cunhou o termo resiliência constitucional para nomear o fenômeno da duração da Constituição de 1988, que já era notável aos seus 25 anos[6]. Em suma, a ideia por trás da resiliência constitucional estava na capacidade da Constituição de 1988 de se atualizar, correspondendo às constantes mudanças e anseios sociais, sem com isso comprometer o seu cerne ou a sua identidade (“a palavra resiliência é empregada pela física para designar a propriedade de certos materiais de recobrar sua forma original, após serem submetidos por algum tempo, a deformação plástica”[7]). Para ele, portanto, a capacidade de adaptação da Constituição era a chave para o seu sucesso.
Em um ensaio recente, Vieira revisitou o conceito de resiliência constitucional, à luz da conturbada última década de vida da Constituição de 1988, e concluiu que “os incentivos institucionais que favorecem a resiliência da Constituição, em sentido estrito, permanecem em funcionamento”[8]. Ponderou que, não obstante o inegável poder de erosão das crises da última década, a Constituição de 1988 sobreviveu, inclusive ao singular e agudo ataque do 8 de janeiro. E, na linha do conceito de resiliência que adotou em 2013, defendeu que a Constituição de 1988 se adaptou, mas não comprometeu seu cerne original.
É nesse ponto que Vieira se afasta dos críticos ao conceito de resiliência constitucional que foram, na mesma coletânea[9], convidados a destrinchar seu significado. No fio condutor dessas críticas, como as formuladas pelos Professores Rubens Glezer, Diego Werneck Arguelhes e Vera Karam de Chueiri, encontra-se a conclusão de que a longevidade da Constituição de 1988 não é sinônimo de sucesso.
Glezer sugere que a Constituição de 1988 se deteriorou ao ponto de ser justificável e até mesmo adequado a sua substituição, e atribui sua permanência a uma verdadeira inércia política de construir uma Carta mais adequada[10]; Arguelhes argui que a Constituição de 1988 sacrificou o seu cerne em prol da sobrevivência, e que o papel do STF se modificou de tal maneira que, embora seja ao menos parcialmente responsável pela sobrevivência do sistema constitucional de 1988, não mais segue a repartição de poderes e os limites ali sugeridos[11]; Chueiri, por fim, defende que a capacidade de adaptação da Constituição foi tão ampla que ela permitiu sua própria descontinuidade, afastando-se cada vez mais de sua identidade e tornando sua longevidade vazia de significado[12].
Essas e outras críticas são céticas quanto à possibilidade de conciliação entre o entrincheiramento de compromissos constitucionais e a capacidade de adaptação às mudanças sociais. Trata-se de um dos dilemas mais antigos do constitucionalismo[13], simplesmente exacerbado e acelerado pelo contexto de crise.
No entanto, para além de debater se a Constituição de 1988 foi capaz de manter sua resiliência – adaptando-se sem comprometer o seu cerne – é preciso ponderar se a resiliência é efetivamente uma meta desejável ou adequada. A ideia de resiliência bebe na fonte do constitucionalismo liberal clássico – o próprio texto de Vieira admite a influência nomes como Rawls, Habermas, Stephen Holmes e John Hart Ely[14]; ela parte do princípio que existe um núcleo, um cerne, nas Constituições, que não deve ser alterado.
Esse ideal de imutabilidade – ainda que apenas de alguns princípios e compromissos políticos fundamentais – sempre esteve em tensão com o conceito de Revolução, a força criativa que gera a norma constitucional. A conciliação entre eles dependeu da cisão da criação constitucional em duas forças distintas, o poder constituinte originário e derivado, a política normal e a política constitucional.
Mas esse poder de adaptação enfraquecido, incapaz de fazer alterações no cerne da identidade constitucional, na prática não é o único que age ao longo da vida de um sistema constitucional. Em momentos especiais – em geral precisamente os momentos de crise – mudanças no cerne e na identidade da Constituição podem se mostrar necessárias. Bruce Ackerman descreve detalhadamente, na série We the People, como esse fenômeno – que ele denomina momentos constitucionais – se desdobrou ao longo da mais longeva das histórias constitucionais modernas, a norte-americana[15]. O relato de Ackerman não deixa dúvidas de que a incrível longevidade da Constituição Americana não seria possível sem as mudanças efetivadas nos momentos constitucionais, que efetivamente alteraram o cerne, ou a identidade, daquela Constituição.
Essa linha de raciocínio pode levar à conclusão – e no contexto americano muitos a defendem – que uma Constituição alterada em seus elementos mais fundamentais se torna, efetivamente, outra[16]. Por essa lógica, os Estados Unidos não teriam uma Constituição de mais de 200 anos, mas estariam vivendo a sua terceira ou quarta experiência constitucional.
O mesmo tom permeia algumas das críticas ao conceito de resiliência constitucional, e nos trazem um questionamento vital: após uma década de crises e mudanças, ainda vivemos, na prática, sob a égide da mesma Constituição promulgada em 1988? A resposta é certamente complexa, mas quanto mais longeva se tornar nossa constituição, com mais seriedade precisaremos refletir sobre os efeitos do tempo nos compromissos constitucionais.
[1] ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom; MELTON, James. The Endurance of National Constitutions. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
[2] GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira (Org.). Resiliência e Deslealdade Constitucional: Uma Década de Crise. São Paulo: Contracorrente, 2023; LAZARI, Igor de; SEPULVEDA, Antônio Guimarães; BOLONHA, Carlos Alberto Pereira das Neves. 35 anos da Constituição Federal do Brasil. IBERICONNECT, disponível em: https://www.ibericonnect.blog/2023/10/35-anos-de-la-constitucion-federal-de-brasil/, acesso em 19/01/2024; LACERDA, Nara. 35 anos da Constituição: texto foi resiliente em crises, mas direitos ainda estão só no papel, avalia pesquisadora: para Marina Slhessarenko, construção da carta de 1988 levou população ao debate e representou momento único no país. Brasil de Fato, disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/10/05/35-anos-da-constituicao-texto-foi-resiliente-em-crises-mas-direitos-ainda-estao-so-no-papel-avalia-pesquisadora, acesso em 19/01/2024.
[3] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Democracia em Crise no Brasil: Valores Constitucionais, Antagonismo Político e Dinâmica Institucional. São Paulo: Contracorrente, 2020; MEYER, Emilio Peluso Neder. Constitutional Erosion in Brazil. Hart, 2023. GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira (Org.). Resiliência e Deslealdade Constitucional: Uma Década de Crise. São Paulo: Contracorrente, 2023
[4] LEVITSKY, Steven; ZUBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. São Paulo: Zahar, 2018. ISSACHAROFF, Samuel. Fragile Democracies: Contested Power in the Era of Constitutional Courts. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.
[5] O célebre debate sobre o tema entre James Madison e Thomas Jefferson é perfeitamente descrito por Cass Sunstein em SUNSTEIN, Cass. A Constitution of Many Minds. Princeton: Princeton University Press, 2009.
[6] VIEIRA, Oscar Vilhena. Resiliência Constitucional: compromisso maximador, consensualismo político e desenvolvimento gradual. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2013.
[7] VIEIRA, Oscar Vilhena. A tese da Resiliência Constitucional ainda sobrevive? In: GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira (Org.). Resiliência e Deslealdade Constitucional: Uma Década de Crise. São Paulo: Contracorrente, 2023.
[8] VIEIRA, Oscar Vilhena. A tese da Resiliência Constitucional ainda sobrevive? In: GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira (Org.). Resiliência e Deslealdade Constitucional: Uma Década de Crise. São Paulo: Contracorrente, 2023.
[9] GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira (Org.). Resiliência e Deslealdade Constitucional: Uma Década de Crise. São Paulo: Contracorrente, 2023.
[10] GLEZER, Rubens. Longevidade Constitucional por Inércia: sem lealdade não há resiliência constitucional. In: GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira (Org.). Resiliência e Deslealdade Constitucional: Uma Década de Crise. São Paulo: Contracorrente, 2023.
[11] ARGUELHES, Diego Werneck. Resiliência da Constituição ou do Supremo? In: GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira (Org.). Resiliência e Deslealdade Constitucional: Uma Década de Crise. São Paulo: Contracorrente, 2023.
[12] CHUEIRI, Vera Karam de. Resiliência ou Crise? Concepções em disputa para uma compreensão mais ou menos crítica dos últimos dez anos da democracia constitucional brasileira. In: GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira (Org.). Resiliência e Deslealdade Constitucional: Uma Década de Crise. São Paulo: Contracorrente, 2023.
[13] SUNSTEIN, Cass. A Constitution of Many Minds. Princeton: Princeton University Press, 2009.
[14] VIEIRA, Oscar Vilhena. A tese da Resiliência Constitucional ainda sobrevive? In: GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira (Org.). Resiliência e Deslealdade Constitucional: Uma Década de Crise. São Paulo: Contracorrente, 2023.
[15] ACKERMAN, Bruce. We the People: Foundations. Cambridge: Harvard University Press, 1993.
[16] FONER, Eric. The Second Founding: How the Civil War and Reconstruction Remade the Constitution. W. W. Norton & Company, 2020.
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