Consultor Jurídico

MP na era digital: as evoluções necessárias para preservação do protagonismo institucional

19 de janeiro de 2024, 11h38

Por Moacyr Rey Filho, José Eduardo Sabo Paes, Guilherme A. Pacheco Zattar

imprimir

“Não podemos resolver nossos problemas com o mesmo pensamento que usamos quando os criamos.”
Albert Einstein

O ano é 2014, a empresa Uber chega no Brasil com uma primeira inserção mal percebida por seus maiores concorrentes: os taxistas. Na percepção destes não havia muitos motivos para preocupações, afinal, uma licença disposta no seu para-brisas garantia o monopólio da prestação do serviço e um comodismo para perpetuação de práticas antigas. Ocorre que o novo serviço entregava o mesmo com muito mais valor [1] e o resultado conhecido foi inevitável.

Mas afinal, o que tem a ver esse exemplo com o tema do texto “Ministério Público na Era Digital: as evoluções necessárias para preservação do protagonismo institucional”? A resposta é simples: é que a relação Uber e táxis (assim como Netflix; AirBnB etc.) demonstra que o que garante o protagonismo de um negócio na era digital é o valor do serviço prestado a quem o usufrui e não os postulados que preveem o seu funcionamento.

Ou seja, no mundo moderno, marcado por uma revolução tecnológica sem precedentes, instituições de todos os setores enfrentam o desafio de se adaptar ou ficar para trás e o Estado, em todas as suas formas, não está imune a essa transformação.

Esta transformação digital tem como lado mais claro a disponibilização de serviços, outrora exclusivamente analógicos, na versão digital. O exemplo mais frutífero desta iniciativa é a do governo federal, que num trabalho que vem sendo feito com maestria na plataforma gov.br, lançada em agosto de 2019 [2], e que já ultrapassou mais de quatro mil serviços disponibilizados, alcançando em abril de 2023 mais de 155 milhões de pessoas físicas (quase 76% da população brasileira) [3], com 813 milhões de acesso num único mês [4].

Conclusão interessante destes dados é que, cada vez mais, faz menos sentido a fala genérica de que os serviços digitais são excludentes da população não digitalmente inserida por dois principais motivos: (a) a população digitalmente excluída é cada vez menor. O serviço digital mais popular do Brasil, o aplicativo de mensageria WhatsApp, abrange hoje 93,4% da população [5] (e 95% das empresas); (b) A oferta do serviço digital é uma alternativa a ser colocada à disposição do cidadão, sendo complementar aos meios tradicionais e não concorrencial.

Ou seja, como diz o professor Silvio Meira, o mundo atual é “Figital”, conceito utilizado para explicar uma realidade em que a distinção entre espaços físicos e digitais se torna cada vez mais tênue.

O sucesso da plataforma gov.br não se limita apenas ao número de serviços disponibilizados ou ao volume de acessos. Representa uma mudança fundamental na relação entre o Estado e os cidadãos, democratizando o acesso aos serviços públicos e remodelando a expectativa dos cidadãos.

E não apenas no Executivo a agenda digital tem merecido especial dedicação. O Conselho Nacional de Justiça tem investido no Programa Justiça 4.0 já há alguns anos e, após a assunção ao cargo do ministro presidente Luís Roberto Barroso, a aceleração tem sido notável, com reforços nas áreas de inovação e inteligência artificial, que prometem uma aceleração na adaptação digital do Poder Judiciário, conhecido como um setor mais conservador, o que não parece ter tanto amparo na realidade.

O Ministério Público brasileiro não está alheio a essa mudança social e tem enfrentado desafios e oportunidades significativas diante do avanço do mundo digital.

Apesar de algumas iniciativas notáveis e inspiradoras, há espaço para uma maior adaptação e integração às novas tendências digitais. Foi justamente esse cenário que motivou o Conselho Nacional do Ministério Público a criar a Estratégia Nacional do MP Digital, vinculada à Comissão de Planejamento Estratégico, com os objetivos de: estimular, difundir e criar condições para o desenvolvimento tecnológico e de práticas inovadoras; construção de uma plataforma de colaboração nacional, que concentre as principais informações e dados sobre o tema; e fomentar a atuação em rede para o enfrentamento colaborativo de problemas.

Esta estratégia nacional é dividida em cinco grandes grupos de trabalho: Base de dados processuais do MP brasileiro; Base de dados para atuação; Serviços de integração tecnológica; Catálogo nacional de compras de TI e Inovação; e Rede Nacional de Inovação.

Para além dos serviços internos, uma das grandes missões do MP Digital é impulsionar o estabelecimento, em cada ramo e unidade, de um estratégia digital definida e documentada, a fim de que membros e servidores possam se dedicar mais ao estratégico e humano; a atuação orientada a dados, a fim de que a participação do MP nas políticas públicas ocorra de forma mais assertiva e efetiva; e o estabelecimento de serviços digitais adequados e que potencializem o alcance ao cidadão.

Pretende-se que a adaptação digital imposta na atualidade alcance de forma mais rápida e uníssona todo o Ministério Público brasileiro, a fim de que o protagonismo institucional seja preservado pelo valor que se entrega à sociedade e não por postulados que podem não ser respeitados por inovações tecnológicas que atendam aos anseios da era digital.

Antes que se diga que isso é distopia distante, é bom lembrar que hoje existem excelentes lawtechs com plataformas de resolução de disputas online (as ODRs) que já tem conduzido litígios para fora do exercício sistema de justiça, e deveriam gerar o seguinte estranhamento: “será que este é o Uber do meu setor?”.

O cenário, contudo, não é de pessimismo, pois, o Ministério Público pode se socorrer de exemplos do passado para pavimentar os passos que deve dar rumo ao futuro, uma vez que foram a inovação e o vanguardismo que tornaram o MP brasileiro protagonista como é, de forma peculiar no mundo: único local em que além da clássica atuação na persecução penal, também é responsável pela defesa dos direitos coletivos: saúde, segurança pública, meio ambiente, consumidor, infância e juventude, constitucionalidade, etc.

Isso ocorreu pela visão de futuro, coragem e postura inovadora de membros que, antes mesmo da própria Constituição de 1988, trilharam esse caminho, moldando o MP àquilo que era a demanda social da época, e permitiram através da agregação de valor entregue à sociedade um maior protagonismo institucional, mostrando que a inovação está no DNA da Instituição.

Por certo, deve ser recordado que as frases ditas pelos ora resistentes às adaptações digitais também não eram raras na oportunidade: “Para que mudar? Sempre foi assim”… “Devo estar ficando velho, pois no meu tempo…”, todavia, a coragem de fazer as mudanças necessárias para adaptar o MP ao seu tempo falou mais alto.

Mais uma vez, vive-se um ponto de inflexão, desta vez impulsionado por um mundo em constante mudança na era digital e os temas difíceis trazidas pela era digital (tais como adoção da inteligência artificial, modernização das relações de trabalho, oferta de serviços digitais e outras tendências tecnológicas) devem ser olhados como são no mundo em 2024, para não correr o risco de que a romantização de práticas possa obstar a conclusão de que elas estejam necessitando aprimoramentos e modernizações.

Com uma abordagem estratégica, responsável e inovadora, o Ministério Público pode não apenas preservar, mas fortalecer seu protagonismo institucional, entregando ainda mais valor à sociedade brasileira. O futuro do Ministério Público na era “Figital” é promissor, e cabe a todos os envolvidos abraçar essa jornada com coragem, determinação e visão de futuro.


[1] MELLO, Cláudio Ari. O futuro da mobilidade urbana e o caso Uber. Revista de Direito da Cidade, UERJ, Vol. 08, nº 02, 2016, p. 781. Disponível em: file:///C:/Users/b31284/Downloads/22029-73209-1-PB.pdf. Acesso em: 24/08/2016.

[2] https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias-economia/2019/08/portal-gov-br-vai-reunir-servicos-do-poder-executivo-em-um-unico-canal

[3] https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/noticias/2023/dezembro/gov-br-alcanca-155-milhoes-de-brasileiros-em-2023

[4] https://itforum.com.br/noticias/gov-br-145-milhoes-usuarios/

[5] https://olhardigital.com.br/2023/10/28/internet-e-redes-sociais/whatsapp-e-utilizado-por-95-das-empresas-brasileiras-mostra-pesquisa/#:~:text=Segundo%20a%20Meta%2C%20o%20Brasil,aplicativo%20de%20mensagens%20da%20Meta.