Garantia da ordem pública: grande guarda-chuva da justiça criminal
13 de janeiro de 2024, 7h05
Em constante balanço entre o princípio da legalidade e o caráter instrumental das medidas cautelares, nos encontramos imersos em uma intrigante preocupação relacionada ao arbítrio e ao preconceito. Isso ocorre sob o contexto da “garantia da ordem pública”, uma expressão que tem sido frequentemente invocada para justificar prisões preventivas, muitas vezes negligenciando a distinção entre direito material e o processo.
De fato, estamos diante de um gigantesco guarda-chuva invocado para garantir uma suposta ordem, debaixo do qual abrigam-se inúmeras situações diversas. Sob esse amplo conceito, encontramos abrigo para uma série de males, tais como a vontade popular, julgamentos apressados, o exercício arbitrário do poder, preconceitos relacionados a raça, cor e gênero, preferências políticas, conflitos entre juízes e advogados, negligência e até mesmo a falta de tempo, que fica evidente na utilização excessiva de modelos.

Todos esses aspectos podem se esconder por trás dessa justificativa, muitas vezes fazendo com que as medidas cautelares, que em sua essência são apenas ferramentas para auxiliar no processo, se percam em um labirinto que obscurece questões fundamentais do direito processual. É uma verdadeira mistura, uma confusão que torna difícil discernir se as decisões cautelares visam mais a antecipar a punição ou garantir o processo, misturando, de maneira intrincada, o direito material com o processual.
Além disso, esse termo também agrada às velhas práticas cartorárias, facilitando o uso de modelos predefinidos. Neste ponto, é importante lembrar que a “ordem pública” é simplesmente fantástica para criar modelos padronizados, o que facilita o trabalho, permite que copiem e colem argumentos que servem para quase todos os casos, apenas trocando nomes e números. Isso gera decisões e manifestações que podem parecer grandiosas, repletas de jurisprudência e argumentos genéricos, mas, por outro lado, violam a qualidade do acesso à justiça.
Imaginem, então, o cenário: um jovem negro, de origem humilde, pego na teia do tráfico de drogas, sem um advogado para defendê-lo perante as instâncias superiores. Sob o argumento de “garantir a ordem pública”, ele irá aguardar sua audiência em uma cela escura, ansiando pelas visitas, pelas cartas, tentando se distrair com uma partida de bola e sendo obrigado a conviver com todas as mazelas do sistema carcerário.
É nesse cenário que vejo o verdadeiro significado do termo “ordem pública” se desdobrar. É como se esse conceito cumprisse seu papel, e arrisco-me a dizer que, na verdade, ele representa algo muito mais profundo: a ordem social que mantém o controle sobre as classes menos privilegiadas, talvez esse seja o significado da expressão — talvez essa seja a “ordem” almejada.
A questão se expande: que valor moral está intrinsecamente ligado à palavra “ordem”? Como o processo penal pode dar espaço a tanto subjetivismo? É desconcertante não saber exatamente a que “ordem” estão se referindo. Afinal, em um país onde o contraditório raramente é reconhecido, onde órgãos institucionais ainda utilizam álbuns de fotos de suspeitos negros, o que significa, de fato, “ordem pública”?
Talvez, no fim das contas, “ordem pública” signifique exatamente isso: a manutenção da ordem das classes, algo que se esconde por trás dessa expressão. É como se a justiça, sob o pretexto da ordem pública, fosse um instrumento que perpetua o controle social sobre os mais desfavorecidos, os vulneráveis.
Esse é o verdadeiro rosto da “ordem pública”, que se esconde por trás de um termo aparentemente inócuo. Talvez o grande problema da superlotação nas prisões esteja, na verdade, enraizado nesse argumento nebuloso das prisões cautelares.
Esse conceito questionável revela-se, sem dúvida, inconstitucional, pois mina os pilares da legalidade, da segurança jurídica e até mesmo a própria razão das prisões cautelares. Estamos diante de um dilema que clama por revisão e clarificação, pois somente assim poderemos encontrar um caminho que respeite os princípios fundamentais da justiça.
Retornando aos ensinamentos dos processualistas, como bem esclarece o professor Aury Lopes Junior, “sob esse argumento, a prisão preventiva se distancia de seu caráter instrumental, de tutela do bom andamento do processo e da eficácia de seu resultado, tornando-se um inaceitável instrumento de justiça sumária”.
É tempo de questionar e refletir sobre esse amplo guarda-chuva que envolve a “garantia da ordem pública” e buscar, com clareza e determinação, um caminho que reafirme os valores fundamentais da justiça e do devido processo legal. O futuro da nossa sociedade e da nossa justiça depende disso.
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Referência
LOPES JR, Aury. Direito processual penal. Saraiva, 2022.
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