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É possível a adesão a ata de registro de preços firmada à luz da Lei 8.666?

12 de janeiro de 2024, 17h20

Por Caio Augusto Nazário de Souza, Lucas Sipioni Furtado de Medeiros, Pedro Henrique Braz de Vita

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No âmbito das atas de registro de preços, existem três figuras principais: o órgão ou entidade gerenciadora, o órgão ou entidade participante e o órgão ou entidade não participante. O primeiro, como o nome sugere, é o responsável pela condução do procedimento e pelo gerenciamento da ata de registro de preços; o segundo é aquele que, embora não coordene o procedimento, dele participa formalmente, integrando a ata; o terceiro, por fim, é aquele que não participa do procedimento e nem integra a ata.

Acontece que este último pode vir a aderir a uma ata da qual não participou e dela se beneficiar em futuras contratações: são as chamadas “caronas”, que estão disciplinadas no Decreto nº 7.982/13 e foram expressamente recepcionadas pela Lei nº 14.133/21 (artigo 86). E é neste ponto que surge o questionamento que será aqui abordado: como fica a “carona” nas atas firmadas pela Lei nº 8.666/93 após a revogação desta em 30/12/2023? Sendo curto e direito, o objeto do presente artigo é responder às seguintes indagações: é possível a adesão a atas de registro de preços regidas pela Lei nº 8.666/93 após o fim da vigência dessa Lei? E, se sim, qual o regime jurídico aplicável?

Para responder a essas perguntas, primeiro precisamos examinar os efeitos da revogação da Lei nº 8.666/93 sobre as atas com base nela firmadas. Especificamente, considerando que as atas de registro de preço terão validade máxima de um ano (inciso III do § 3º do artigo 15 da Lei nº 8.666/93), aquelas cujo prazo de validade ultrapassa 30/12/2023 (data de revogação da Lei nº 8.666/93 nos termos da Lei Complementar nº 198/20230) ficam revogadas automaticamente nesta data ou seguem válidas até o seu termo final?

Não há previsão quanto a isso nem na Lei nº 8.666/93 nem na Lei nº 14.133/21. E, tratando-se um de caso clássico de lacuna, entendemos pela aplicação, por analogia [1], da solução adotada pela nova Lei aos contratos firmados com base na Lei antiga, que seguirão por ela regidos (parágrafo único do artigo 191 da Lei nº 14.133/21). Embora a ata de registro de preços não seja propriamente um contrato administrativo, a racionalidade é a mesma: aplicação da doutrina tempus regit actum [2]. Situações jurídicas consolidadas com base em leis revogadas seguem por elas regidas, salvo disposição expressa em sentido contrário.

Portanto, as atas de registro de preços firmadas sob a luz da Lei nº 8.666/93 seguem válidas e por ela regidas até o seu termo final, ainda que ele seja posterior a 30/12/2023. Não há o que se falar em revogação automática, muito menos em alteração do diploma normativo base. E se seguirão válidas, a adesão a elas é possível? A nosso ver, sim.

Primeiro porque a Lei nº 14.133/21, responsável por substituir a Lei nº 8.666/93, prevê expressamente a figura da adesão a atas de registro de preços, de modo que seguirá existindo no ordenamento jurídico autorização para que esse tipo de procedimento seja levado a cabo mesmo após a revogação da Lei nº 8.666/93. Segundo porque seria tecnicamente questionável afirmar que a doutrina do tempus regit actum e o artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição, responsáveis por manter vigentes as atas de registro de preços firmadas à luz da Lei nº 8.666/93 após a sua revogação, impedem a produção de parte de seus efeitos (os procedimentos de adesão).

Ou seja, os mesmos fundamentos jurídicos responsáveis por viabilizar que a vigência de atas de registro de preços formalizadas sob fundamento da Lei nº 8.666/93 permaneçam vigentes mesmo após a revogação dessa última, impõem que elas gerem todos os seus efeitos, inclusive perante órgãos e entidades da administração pública que desejam aderir a elas.

Agora, se as atas firmadas com fundamento na Lei nº 8.666/93 seguem válidas mesmo após 30.12.2023, qual o regime jurídico aplicável para a adesão a essas atas por um órgão ou entidade que dela não participou? O procedimento a ser seguido, nos termos já expostos, é o vigente no momento da formalização da ata, isto é, aquele previsto na Lei nº 8.666/93. O órgão ou entidade que manifesta seu interesse em aderir à ata se submete ao regime jurídico a ela aplicável, e não há como se cogitar de uma ata regida pela Lei nº 8.666/93 admitir adesão regulada pela legislação que a revogou.

Por outro lado, se a revogação da Lei nº 8.666/93 não produz grandes consequências com relação ao procedimento de adesão, o mesmo não se pode dizer quanto aos seus requisitos e condicionantes. E isso porque, no caso narrado, a autorização à adesão estará prevista na Lei nº 14.133/21, teoricamente a única vigente no momento (afinal, a Lei nº 8.666/93 foi revogada), estando o órgão ou entidade sujeito à observância das suas disposições, notadamente no que se refere aos requisitos e condicionantes materiais da adesão.

E, neste ponto, merece destaque a inovação no que toca aos limites quantitativos da adesão.  O Decreto nº 7.892/13, por exemplo, prevê apenas um limite: o quantitativo decorrente das adesões à ata de registro de preços não poderá exceder, na totalidade, ao dobro do quantitativo de cada item registrado na ata (§ 4º do artigo 22). Outros regulamentos, país afora, regulam a questão de formas diversas. A Lei nº 14.133/21, por sua vez, manteve o limite previsto no Decreto nº 7.892/13 e estabeleceu um novo: o quantitativo não poderá exceder, por órgão ou entidade, a 50% dos quantitativos dos itens do instrumento convocatório registrados na ata (§ 4º do artigo 86).

Isto é, na Lei nº 14.133/21 não só as contratações não podem ultrapassar o dobro do quantitativo de cada item registrado, como também as contratações de um mesmo órgão ou entidade não podem exceder a 50% desses mesmos quantitativos. Há, portanto, uma modificação substancial: a previsão de uma nova condicionante para a adesão. E isso produz efeitos para a presente discussão.

Como a autorização à adesão à ata por parte do órgão ou entidade está na Lei nº 14.133/21, ele está sujeito aos limites e condicionantes por ela estabelecidos. Portanto, se o procedimento é aquele previsto na Lei nº 8.666/93, que é a legislação de regência da ata, as condições materiais de adesão são aquelas previstas na Lei nº 14.133/21, que é a legislação que autoriza a adesão.

Isso quer dizer que há uma diferença substancial entre o procedimento aplicável e os requisitos da adesão. A legislação que rege a ata rege também o procedimento aplicável à adesão, já que não se pode cogitar sobreposição de formalidades distintas para se levar a cabo um mesmo procedimento administrativo. Por outro lado, os requisitos materiais da adesão são aqueles previstos na legislação que a autoriza, sob pena de violação às condicionantes previstas na única lei em vigor que rege o tema.

Desse modo, há três cenários possíveis: a) se a ata prevê disposições quanto aos limites quantitativos da adesão e elas são mais restritivas que a Lei nº 14.133/21, aplica-se a ata, visto que nesse caso não há violação à Lei nº 14.133/21; b) se a ata prevê disposições quanto aos limites quantitativos da adesão e elas são mais permissivas que a Lei nº 14.133/21, aplica-se esta última, sob pena de o órgão ou entidade não se conformar aos requisitos previstos na lei que autoriza a adesão; c) se a ata é omissa no ponto, aplica-se, pelo mesmo motivo anterior, a Lei nº 14.133/21.

Para finalizar, com base em todo o exposto, destacamos as seguintes conclusões:

  1. as atas de registro de preços firmadas sob a vigência da Lei 8.666/93 seguem válidas até o seu termo final, ainda que ele seja posterior a 30/12/2023 (data de revogação da Lei 8.666/93);
  2. essas atas, assim como os contratos firmados com base na Lei 8.666/93, seguirão por ela regidos mesmo após a sua revogação;
  3. é possível a adesão de órgãos ou entidades não participantes a essas atas, visto que elas são válidas e estão aptas a produzir todos os seus efeitos;
  4. nesses casos, o procedimento aplicável à adesão é aquele previsto na Lei 8.666/93 e no regulamento pertinente, que são os diplomas normativos que regem as referidas atas;
  5. por outro lado, como a autorização para a adesão decorre da Lei 14.133/21, as condições materiais de adesão nela previstas devem ser observadas, com destaque para os limites aos quantitativos, sob pena de o órgão ou entidade não se conformar aos requisitos previstos na única lei em vigor que rege o tema;
  6. há três cenários: se a ata é mais restritiva que a Lei 14.133/21, aplicam-se os requisitos e condições previstos na ata; se a ata é mais permissiva, aplicam-se os requisitos e condições previstos na Lei 14.133/21; se a ata é omissa, aplicam-se os requisitos e condições previstos na Lei 14.133/21.

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[1] Conforme o art. 4º da Lindb, quando a lei é omissa cumpre ao juiz (no caso, ao jurista) decidir o caso com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais do direito.

[2] Nesse caso, reforçada pelo teor do art. 5º, inc. XXXVI, da Constituição, segundo o qual a lei não prejudicará o ato jurídico perfeito.