O 8 de Janeiro

A brasilidade, a Constituição, o STF e os contragolpes

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7 de janeiro de 2024, 17h01

Candido Portinari, filho de imigrantes italianos, nascido no interior de São Paulo em 1903, é tido como um dos maiores pintores do mundo. Autor dos painéis “Guerra e Paz”, expostos desde 1957 na sede da ONU em Nova York, e de obras emblemáticas como o “O Lavrador de Café”, que pintou quando retornou ao Brasil no início dos anos 1930, Portinari morreu aos 58 anos, e não pôde viver no país fundado pela Constituição Cidadã, de 1988.

Já o brasileiro que recebeu seu nome em homenagem, Alberto Portinari Rodrigues, nasceu em 5 de outubro de 1988, no mesmo dia da criação do Estado do Tocantins — sendo ele o primeiro cidadão tocantinense — e da promulgação da Constituição Federal do Brasil.

“O lavrador de café”, de Portinari

Ela [a Constituição] passa a enxergar o brasileiro como um todo, a nossa diversidade, e imaginar que nós vivemos em cenários, em situações diferentes. “A Constituição vem para abraçar a todos”, disse Portinari, o tocantinense, na abertura do documentário “Filhos da Democracia — Os 35 Anos da Constituição”, dirigido por Marcya Reis e produzido pela Câmara dos Deputados, em 2023.

Enquanto sua fala podia ser ouvida como narração do documentário, o espectador via o jovem Portinari misturar café solúvel em uma panela simples, que depois foi passado por um coador de pano, caindo em uma garrafa térmica alaranjada. Na cena seguinte, com uma parede de tijolos aparentes no fundo, a mesma garrafa é usada por sua mãe, Nelsir Ferreira, para servir-lhe uma xícara. Ele, sentado em uma cadeira de plástico que fazia conjunto de uma mesa forrada caprichosamente por uma toalha branca, sorria, assim como sua mãe.

Imagem e som se misturavam no documentário para retratar um Brasil real, diverso, de dimensões continentais e em construção. Um país que ainda aprende a conviver com a democracia recriada há 35 anos, quando a chamada “Nova República” ainda engatinhava após o fim da ditadura militar, e se transformava em um regime democrático com a promulgação da Constituição.

“Passamos a ter direito de falar, né (sic)? direito de pensar e direito de se manifestar. A gente viu na história o que o Brasil já passou, com a censura e com todos os movimentos que tiveram, de estudantes, artistas, de jornalistas…que tiveram muitos momentos difíceis de prisão e de exílio, por não poder falar e se manifestar. Com a Constituição de 1988 a gente viu uma luz, onde as pessoas passaram a ter direito de falar, de dizer o que pensa, de brigar por seus direitos”, complementou Alberto Portinari.

Retratos do Brasil
Os Portinaris, o gênio artístico e o tocantinense comum, fazem parte de uma mesma construção social, são retratos de um mesmo Brasil. Uma nação que em pouco mais de 80 anos viu sua população aumentar em 162 milhões de pessoas.

Alguns dados são impressionantes e demonstram a complexidade de um país que ocupa a quinta posição entre os mais extensos países do globo: em 1940, a imensa maioria da população vivia em área rural, chegando a 69%. Em 1980 esses números praticamente se invertem, até que em 2010, apenas 70 anos depois, o Brasil passou a ter 84% das pessoas vivendo em áreas urbanas.

Do penúltimo ao último Censo (2010 e 2022) do IBGE, o Sudeste foi a região do Brasil que mais ganhou população — um salto de 80.364.410 para 84.847.187 habitantes.

Era um tempo de transição, a realidade em que a Constituição foi pensada. Não apenas em questões demográficas, mas também democráticas. O Brasil saía de 21 anos de ditadura militar, período iniciado após mais um golpe de Estado que o país sofreu, em 1964.

Era preciso construir uma Carta que possibilitasse não apenas preparar o país para os processos transitórios em curso, mas também para uma nova forma de convívio entre a população e as instituições.

Pós-ditadura e Nova República
A Constituição foi o principal instrumento transformador para o novo país que se formou com a Nova República, e não foi pouco o que ela proporcionou. Depois de 5 de outubro de 1988, entrava em vigor uma Constituição que foi apelidada por um de seus principais articuladores de “cidadã”, com toda razão de ser.

Inaugurava-se uma nova forma de relações jurídico-institucionais no país, trazendo uma grande ampliação das liberdades civis e os direitos e garantias individuais. A nova Carta trouxe normas e cláusulas que alteraram as relações econômicas, políticas e sociais, como, por exemplo, conceder direito de voto aos analfabetos e aos jovens de 16 a 17 anos, novos direitos trabalhistas, como redução da jornada semanal de 48 para 44 horas, seguro-desemprego e férias remuneradas acrescidas de um terço do salário.

Outras das principais medidas da Constituição de 1988:

– eleições majoritárias em dois turnos;
– direito à greve e liberdade sindical;
– aumento da licença-maternidade de três para quatro meses;
– criação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em substituição ao Tribunal Federal de Recursos;
– criação dos mandados de injunção, de segurança coletivo e restabelecimento do Habeas Corpus;
– criação do habeas data (instrumento que garante o direito de informações);
– reforma no sistema tributário e na repartição das receitas tributárias federais;
– fortalecimento de estados e municípios;
– nova política agrícola e fundiária;
– leis de proteção ao meio ambiente;
– fim da censura em rádios, TVs, teatros, jornais e demais meios de comunicação; e
– novas regras sobre seguridade e assistência social.

O STF e a garantia
O Supremo Tribunal Federal (STF) não foi criado junto com a Constituição de 1988. A primeira Corte Suprema que a República experimentou veio após o fim do Império.

O funcionamento da Corte teve suas primeiras regras aprovadas em 8 de agosto de 1891, até então adotando as regras do extinto Supremo Tribunal de Justiça. As sessões eram realizadas aos sábados e às quartas-feiras, e como estabelecia a primeira Constituição, eram 15 os ministros nomeados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado, sendo 10 do antigo Supremo Tribunal de Justiça nessa primeira composição.

João Evangelista de Negreiros Sayão Lobato, o Visconde de Sabará, presidiu a primeira sessão do Supremo, despachando em uma mesa que sequer tinha gavetas para guardar os documentos da posse. A Corte funcionou até 1895 na sala da Corte de Apelação do Distrito Federal, tendo um prédio exclusivo depois da virada do século, em 1902. O STF assumiu seu lugar definitivo na Praça dos Três Poderes em 21 de abril de 1960.

Desde então, o Supremo se firmou como o garantidor maior dos direitos fundamentais dos brasileiros, e o guardião das constituições — da que o criou, em 1891, e da última, de 1988. A Corte é essencial para a garantia de direitos fundamentais e fundacionais de uma democracia: as liberdades de imprensa, de religião e de expressão. Liberdades que permitem o “direito de falar”, como lembrou o Portinari do Tocantins.

Com a promulgação de uma “Constituição Cidadã”, o Supremo se firma também como garantidor da cidadania e da convivência solidária. Uma Corte que em seu início se limitava a examinar controvérsias de direito privado, passou a ser um agente jurídico e político, limitando o poder parlamentar quando avalia as leis criadas e as confrontam com a Constituição, do executivo quando impede abusos estatais aos direitos individuais e do judiciário atuando como instância máxima.

Golpes, tentativas e contragolpes
Depois da Primeira República e da primeira Constituição, em 1891, o Brasil teve outras cinco Constituições: 1934, 1937, 1946, 1967 e a cidadã de 1988. Entre as várias mudanças que a Constituição que vigora no país há mais de 35 anos, está a ampliação do STF no terreno institucional.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Durante a sessão solene pelo centenário do STF, em 1991, o ex-presidente José Sarney, então senador, se referiu a um “Supremo monárquico”, onde não havia dimensão política, “que servia a um Estado unitário, sob a invocação do imperador”, e lembrou que o STF nunca faltou à nação, constituindo-se como “uma instituição republicana, federativa”.

Mas nem sempre conseguiu, em uma história marcada por golpes de Estado e autogolpes — mesmo a chegada da República e da primeira Constituição veio através de um golpe, que derrubou o Império. Em 1930, 37, 45 e no último em 1964, a Constituição e seu guardião, o Supremo, sucumbiram ao poder das armas e da violência.

O regime militar de 1964 limitou a competência do Supremo, o deixando sem condições de defender os muitos direitos individuais afrontados no período. Mas, em uma democracia estabelecida e com a Suprema Corte consolidada há mais de três décadas, a tentativa de golpe institucional em 8 de janeiro de 2023 foi frustrada.

Os atos antidemocráticos daquele dia, que nasceram nos acampamentos em frente aos quartéis e culminaram nos ataques físicos às sedes dos três poderes da República — na mesma praça que estão desde a fundação da capital — não resultaram em mais uma ruptura democrática, tendo a ação direta dos poderes constituídos pela Constituição e pelo seu guardião, o STF.

Durante os ataques, manifestantes pediam mais um golpe de Estado — ou um autogolpe que fosse dado pelo governo de ocasião —, e empreenderam vários danos ao patrimônio público, como vidros quebrados, móveis danificados e até incêndios. E diversas obras de arte de valor inestimável foram danificadas, incluindo uma de Candido Portinari.

A cidadania, os direitos, os deveres e a consolidação da democracia, todos garantidos pela Constituição e por suas instituições, deram um contragolpe em 8 de janeiro de 2023, e continuaram a permitir a existência de um país livre, que valoriza a cidadania sendo possível que Portinaris existam.

Um país em construção
“Meu pai e minha mãe não estudaram, não tiveram essa oportunidade. Isso que eu fico pensando. Ficaram só trabalhando na roça. E quando eu trabalhava não tinha folga não, nem dia de domingo. Era diretão (sic). Naquela época a gente trabalhava e passava o dia, dormia no trabalho, ficava lá direto”, disse Nelsir Ferreira, mãe de Alberto Portinari, no mesmo documentário produzido pela Câmara dos Deputados.

A Constituição de 1988 construiu um país mais justo. Porém, ela e a Nova República não fizeram o suficiente. Alguns desafios continuam evidentes no Brasil atual, como permitir que o acesso à justiça, à segurança pública, à educação pública de qualidade e à saúde sejam de fato universais. Ainda somos um país muito desigual, com fortes traços de misoginia e racismo, que nunca conseguiu a verdadeira justiça social para quem é preto e pobre, assim como o era no Brasil antigo.

No mesmo sentido, a Constituição permitiu um estado de coisas com ampliação considerável do acesso de negros, de mulheres, de indígenas e tantas outros grupos minorizados aos espaços da vida pública, mas ainda está longe de representar a distribuição da demografia brasileira.

Mesmo com essas falhas, e nas complexidades de um país continental, foi feito muito em 35 anos. E ainda há muito para fazer. Mas, Nelsir e Portinari vivem em um país diferente, com instituições mais fortes, democráticas e resistentes aos ataques. E com uma Constituição viva e cidadã.

 

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