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Proteção ao neurodireito e à integridade mental na Constituição do RS

5 de janeiro de 2024, 13h24

Por Cíntia Teresinha Burhalde Mua, Paulo Antonio Caliendo Velloso da Silveira

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Todo indivíduo possui o direito à integridade mental, como uma proteção inalienável contra a manipulação  decorrente dos avanços da neurociência e da neurotecnologia. Esse o dispositivo aprovado e promulgado em 20/12/2023, pela PEC 298 de 2023, que alterou a Constituição do Rio Grande do Sul. O dispositivo modificou o parágrafo único do artigo 235 da Constituição Estadual, que trata da política pesquisa científica tecnológica estabelecendo a proteção da identidade mental contra qualquer pesquisa que afete o cérebro e sua atividade, sem o consentimento do individuo.

Neste contexto, a alteração promovida pela Emenda Constitucional nº 85/2023 trata-se de uma das primeiras normas no mundo sobre o tema e a primeira do Brasil

Neurodireitos ocupam-se da proteção da atividade cerebral, do comportamento humano e sua predição, exigindo uma maior densidade normativa na regulação do  acesso aos dados neurais, inibindo a manipulação ou a modificação de neurodados em todo o seu ciclo de vida.

Dados neurais são dados pessoais sensibilíssimos, que revelam a atividade neuronal única de um indivíduo igualmente único, demandando um gradiente regulatório diferenciado.

O Chile foi o primeiro país a reconhecer expressamente os neurodireitos como direitos fundamentais, incluindo-os na redação do artigo 19 da respectiva Carta.

Em consequência deste reconhecimento, a Corte Constitucional chilena já produziu uma importante decisão no caso Guido Girardi vs. Emotiv Inc. (tombado sob o nº 105.065-2023 [1]), envolvendo o uso de um fone de ouvido (Insigth) que monitora as ondas cerebrais, “obtendo dados sobre gestos, movimentos, preferências, tempos de reação e atividade cognitiva de quem o utiliza” [2]. O Tribunal determinou a remoção dos neurodados de Guido de seus portais e da nuvem [3].

Seguindo o exemplo da positivação constitucional chilena, tramita no Congresso a Proposta de Emenda Constitucional n.º 29/2023, que objetiva incluir, como direitos fundamentais, a proteção à integridade mental e a transparência algorítmica, alterando o   do artigo 5.º, LXXX da CF/88, nos seguintes termos: “LXXX – o desenvolvimento científico e tecnológico assegurará a integridade mental e a transparência algorítmica, nos termos da lei”.

Outrossim, em andamento na Câmara dos Deputados, Projeto de Lei nº 522/2022 [4], que “modifica a Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), a fim de conceituar dado neural e regulamentar sua proteção”.

O uso de dados neurais é atividade de alto risco (artigo 17 e 18), sujeita à responsabilidade objetiva (artigo 27, § 1º), sempre sujeito à Avaliação de Risco Algorítmico (AIA)  nos termos do Projeto de Lei n.º 2.338/2023 [5][6].

Ademais, há expressa vedação da implementação e do uso de sistemas de IA que contemplem risco excessivo (artigo 14, caput, e incisos I a III), assim entendidos aqueles que utilizem técnicas subliminares; explorem vulnerabilidades de grupos determinados; perfilizem pessoas naturais com base em análise comportamental ou de atributos da personalidade, exceto o previsto no artigo 15.

No âmbito riograndense, a Emenda Constitucional nº 85/2023 altera o parágrafo único do artigo 235 da Carta gaúcha, para incluir o direito à integridade mental como direito e garantia fundamentais da pessoa humana, transitando no âmbito da competência concorrente, ex vi do artigo 24, IX e §§ 2º e 3º da Magna Carta.

A Emenda Constitucional em liça está arrimada nas pesquisas conduzidas na Universidade de Columbia, cujo principal mentor, Rafael Yuste [7], esteve no Brasil — e no Rio Grande do Sul — recentemente, bem como em diversos documentos internacionais não cogentes, tais como a Recomendação Sobre Inovação Responsável em Neurotecnologia da OCDE [8], a Declaração de Princípios Interamericanos em matéria de Neurociências, Neurotecnologias e Direitos  Humanos da OEA, bem como o Relatório da Unesco sobre a matéria, aprovada à unanimidade, tanto na Comissão de Constituição e Justiça da Casa Legislativa quanto em plenário, demonstrando a relevância e a convergência estratégica do tema,

Os riscos à integridade mental decorrentes de intervenções cérebro-máquina são reais; os impactos das neurointervenções na neurobiologia e neuroquímica da atividade neural são objeto de intenso e contínuo debate ético-científico.

A título de exemplo, o “brain-hacking malicioso” [9]  — que pode envolver o sequestro de dados de uma prótese, via  wireless; a reprogramação intencional da eletroestimulação para fins escusos e a espionagem dos sinais de um implante cerebral à busca de informações privadas [10],  cunhando a tipicidade do neurocrime.

A despersonalização — um estranhamento de si, uma anestesia sensorial [11] — decorrente de estimulação transcraniana também se apresenta como uma espécie do plantel de riscos que desafiam o direito à integridade mental.

Além da soft law citada pelo proponente da Emenda à Constituição riograndense, importante mencionar outros Documentos convencionais tem por ponto de partida a centralidade no ser humano e o uso benéfico da tecnologia:  a Convenção de Oviedo [12] e a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da Unesco [13] e a Resolução do Parlamento Europeu nº 2020/2012 [14], os quais também focam no ser humano e  na utilização benéfica da ciência como princípios-chave, mas agregam uma acepção de consentimento mais rígido, numa visão “antropocêntrica e antropogênica”, que considera a não-discriminação como um imperativo ético-normativo.

A par dos movimentos de positivação do reconhecimento dos neurodireitos como direitos fundamentais, assume relevância, no plano da convencionalidade,  a  Declaração de Princípios Interamericanos em matéria de Neurociências, como marco para a caminhada rumo a uma convenção internacional especificamente sobre neurodireitos.

Considerando os limites da abordagem deste escrito, cumpre destacar o sétimo princípio da Declaração, que trata da integridade neurocognitiva como direito e garantia a todos as pessoas, com foco na prevenção do uso abusivo ou malicioso dos dados neurais a partir de intervenções neurotecnológicas que possam interferir na atividade cerebral ou que impactem o exercício de direitos humanos. Proscreve a utilização das neurotecnologias para alterar a liberdade de pensamento e da consciência, tornando o usuário dependente de terceiros. Considera inadmissível qualquer cláusula de exclusão de responsabilidade do fornecedor, veda a aplicação compulsiva ou forçada e ratifica a proibição de uso da neurotecnologia como método de “tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante”.

Os desafios ético-jurídicos para a proteção dos neurodireitos são complexos e abrangentes, exigindo um novo olhar sobre a dimensão dos direitos humanos. É preciso compreender que os dados neurais dizem respeito à privacidade em sua acepção mais profunda, à identidade na sua essência, que define quem somos perante nós e outrem, à autodeterminação, que deve ser protegida contra manipulações algorítmicas.

Sem menoscabo da urgência da proteção constitucional dos demais neurodireitos, objeto da PEC nº 29/2023, cuja redação comporta críticas que não cabem à moldura deste artigo, o  Estado do Rio Grande Sul,  através da Emenda Constitucional nº 85/2023, ocupa lugar de vanguarda na República Federativa do Brasil — e  mundialmente —  na proteção do neurodireito específico à integridade mental.

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[1] CHILE, Corte Constitucional, processo nº 105.065-2023, relatora Ministra Ángela

Vivanco, j. em  09/08/2023. Disponível em https://www.doe.cl/alerta/11082023/20230811001, acesso em 02/12/2023.

[2] Idem, p. 1/2

[3] Cf.: MCCAY, Allan. Last month the Chilean Supreme Court handed down a historic judgment with respect to neurotechnology and human rights, which addresses the increasingly important issue of mental privacy. LSJ on line, publicado em  20 de setembro de 2023. Disponível em https://lsj.com.au/articles/neurotechnology-and-human-rights-in-chile-the-australian-implications/, acesso em 01/12/2023.

[4] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2317524, acesso em 02 dez 2023.

[5] O Projeto de Lei em testilha, conhecido como marco civil da inteligência artificial, arrima-se no Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho n.º 2021/0106 (também denominado EU AI Act), disponível em https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2023-0236_PT.html, acesso em 02 dez. 2023.

[6] Cujo inteiro teor está disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233, acesso em  02 dez. 2023.

[7]  Rafael YUSTE é o pesquisador-líder do projeto BRAIN (Brain Research Through Advancing Innovative Neurotechnologies, cf. FRONTEIRAS. Criador do projeto BRAIN discute os neurodireitos, postado em jun. de 2023. disponível em https://fronteiras.com/leia/exibir/criador-do-projeto-brain-discute-os-neurodireitos, acesso em 02/12/2023) e do Morningside Group, composto por instituições acadêmicas e pesquisadores de diversos países  do Norte global e por líderes das empresas de tecnologia de ponta, produzindo um documento propositivo acerca do uso ético da neurotecnologia e dos neurodireitos como direitos humanos (YUSTE, Rafael et al. Four ethical priorities for neurotechnologies and AI. Nature, [s. l.], n. 551, p. 160, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1038/551159a. Acesso em: 18 jun. 2022).

[8] ORGANISATION DE COOPÉRATION ET DE DÉVELOPPEMENT ÉCONOMIQUES. Recommendation of the Council on Responsible Innovation in Neurotechnology. Paris: OECD, 2019. Disponível em: www.oecd.org/competition/algorithms-collusion-competition-policy-in-the-digital-age.htm. Acesso em: 4 dez. 2022.

[9] Sobre o tema: IENCA Marcello; HASELAGER Pim. Hacking the brain: brain–computer interfacing technology and the ethics of neurosecurity. Ethics Inf Technol, [s. l.], v. 18, n. 2, p. 120, 2016. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10676-016-9398-9. Acesso em: 19 dez. 2023

[10] Idem, p. 120.

[11] SALGADO, Ana Carolina Sarquis. Estudo de Sintomas de Despersonalização em Pacientes com Migrânea e Controles. 77 f. Dissertação (Mestrado em Neurociências) – Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Belo Horizonte, Belo Horizonte 2015. p. 16. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUBD-A28FYR/1/disserta__o_ana_salgado.pdf. Acesso em: 15 out. 2022.

[12] Trata da Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina. Disponível em: https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/convencao_protecao_dh_biomedicina.pdf, acesso em 02/12/2023

[13] UNESCO. Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos. Paris: UNESCO, 2004. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_inter_dados_genericos.pdf. Acesso em: 23dez. 2023.

[14]  UNIÃO EUROPEIA. Parlamento Europeu. Resolução do Parlamento Europeu, de 20 de outubro de 2020, que contém recomendações à Comissão sobre o regime relativo aos aspetos éticos da inteligência artificial, da robótica e das tecnologias conexas. Bruxelas: Parlamento Europeu, 2020. Disponível em:https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2020-0275_PT.html#title1.  Acesso em: 23dez. 2023