Prescrição no processo administrativo sancionador perante o Cade
29 de fevereiro de 2024, 15h23
Há uma belíssima obra, atualmente em exposição no Tate, em Londres, que retrata precisamente o que será discutido. Trata-se da pintura a óleo, da Era Vitoriana, intitulada Waiting for the Verdict [1].
Apesar de ser autoexplicativa, basta observar, ainda que brevemente, a tela para notar a intenção do artista: demonstrar a angústia que recai sobre os indivíduos submetidos ao crivo do Estado sancionador.
Especificamente em relação ao processo administrativo para apuração de infração à ordem econômica no âmbito do Cade, a aflição da pessoa física investigada possui mais de uma causa.
Isso porque, para além da possibilidade de ser sancionada monetariamente, a lei que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência faculta ao Tribunal Administrativo do Cade, “quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral”, a possibilidade de imposição de uma série de sanções de natureza não pecuniária [2].
Ocorre que, conforme consagrado nos sistemas jurídicos modernos, o indivíduo não pode permanecer eternamente sob o crivo do Estado-juiz à espera de um julgamento e de um possível apenamento.
Nesse sentido, institutos como a decadência e a prescrição assumem, consequentemente, importância fundamental ao consagrar a ideia de que o Direito “trabalha” a passagem do tempo com critérios próprios, nem sempre coincidentes com o mundo natural [3].
A prescrição, portanto, estabiliza situações jurídicas litigiosas em razão do fluxo temporal, consagrando a regra, no Direito brasileiro, de prescritibilidade das pretensões de natureza punitiva [4]. Em sentido inverso, as sanções que, por escolha política, são imprescritíveis configuram exceção e precisam estar expressamente previstas no ordenamento jurídico:
“Esta influência do tempo, consumido do direito pela inércia do titular, serve a uma das finalidades supremas da ordem jurídica, que é estabelecer a segurança das relações sociais. Como passou muito tempo sem modificar-se o atual estado de coisas, não é justo que se continue a expor as pessoas à insegurança que o direito de reclamar mantém sobre todos, como uma espada de Dâmocles. A prescrição assegura que, daqui em diante, o inseguro é seguro; quem podia reclamar não mais o pode. De modo que, o instituto da prescrição tem suas raízes numa das razões de ser da ordem jurídica: estabelecer a segurança nas relações sociais – fazer com que o homem possa saber com o que conta e com o que não conta” [5].
Dada a importância do tema, o Cade há muito se debruça sobre o tema e, reiteradamente, enfrenta a questão nas sessões de julgamento. Segundo a doutrina, em 19/8/1969, o conselheiro relator Geraldo de Rezende Martins, no bojo do Processo Administrativo nº 3, proferiu o voto vencedor no qual o colegiado, por maioria, reconheceu, pela primeira vez, a aplicação da prescrição no processo antitruste sancionador [6].

Ato contínuo, após longo processo de amadurecimento institucional, o reconhecimento da prescrição como garantia processual do jurisdicionado foi pacificada no voto do conselheiro Leônidas R. Xausa no Processo Administrativo nº 45/92 [7].
PA nº 08700.004447/2020-24
Recentemente, no julgamento do Processo Administrativo (PA) [8] nº 08700.004447/2020-24, instaurado para apurar supostas condutas anticompetitivas em obras públicas de serviços de engenharia e construção para urbanização do Complexo do Alemão, do Complexo de Manguinhos e da Comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro, o Tribunal do Cade, por maioria, determinou o arquivamento em relação a todos os representados.
No caso concreto, cinco pessoas físicas constituíam o polo passivo do PA desmembrado, sendo que três delas haviam celebrado Termo de Compromisso de Cessação (TCC) com o Cade. A questão da prescrição, consequentemente, era de relevância fundamental para os investigados remanescentes.
Nesse ponto, questão essencial para o deslinde da controvérsia seria identificar se houve ou não interrupção da contagem do prazo prescricional. Nos termos do voto do ex-conselheiro relator Sérgio Ravagnani (SEI 1292839), a celebração do acordo de leniência constituiria elemento idôneo a interromper o prazo prescricional, na medida em que configuraria “’ato administrativo’ que tem por objeto a apuração da infração contra a ordem econômica’”.
Em sentido diverso, o voto apresentado pelo presidente Alexandre Cordeiro (SEI 1298098), ratificou que “a interrupção do prazo prescricional não é aplicável aos sujeitos que se encontram fora do âmbito da investigação e que não receberam a devida notificação, materializando-se apenas nas circunstâncias em que os indivíduos foram efetivamente identificados e notificados” (vide p. 28).
Ainda, asseverou que a interrupção da prescrição de modo indistinto, alcançando até mesmo indivíduos que não compunham o polo passivo quando da realização do ato administrativo, acaba por desvirtuar o instituto da prescrição.
Na mesma linha, o então conselheiro Luiz Hoffmann (SEI 1296705) alertou que a “consequência de permitir a perpetuidade da contagem prescricional para pessoas físicas que sequer foram mencionadas nos atos administrativos praticados até o momento” é dissonante com “a garantia constitucional aos administrados que o instituto da prescrição visa a zelar”.
Conclusão
A conclusão a que chegou o Tribunal do Cade, ainda que de modo não unânime, é irretocável. Isso porque, a interpretação mais adequada do artigo 2º, Lei 9.873/99 é aquela na qual se entende que a única forma de interromper o prazo prescricional antes da instauração do processo é por meio da citação do acusado.
Assim, se o indivíduo sequer faz parte do polo passivo de um determinado processo sancionador, não pode ser a contagem do prazo prescricional afetada por ato que importe apuração de fato, mas, tão somente, pela citação. A interrupção da prescrição pela celebração do acordo de leniência, se possível, só seria válida para os casos de prescrição intercorrente, afetando — apenas — os indivíduos que já compõem o polo passivo.
Entender de modo diverso possibilitaria a interrupção da prescrição de maneira absolutamente genérica, aumentando afetando garantias individuais há muito protegidas, sobretudo considerando que o decurso do tempo constitui óbice instransponível à persecução da pretensão punitiva.
Torcemos para que a atual composição do Cade permaneça firme no entendimento de que a prescrição dispensa juízos de valor, além de outros subjetivismos, e serve a um propósito maior: garantir a segurança jurídica ante a estabilidade causada pela passagem do tempo.
[1] Maiores detalhes em: https://www.tate.org.uk/art/artworks/solomon-waiting-for-the-verdict-t03614
[2] As penas podem ser impostas, isolada ou cumulativamente, e vão desde a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais até a proibição de exercer o comércio em nome próprio ou como representante de pessoa jurídica
[3] MEDAUAR, Odete. Prescrição e Administração Pública. Doutrinas Essenciais de Direito Civil | vol. 5 | p. 587 – 612 | Out / 2010
[4] BARROSO, Luis Roberto. Prescrição administrativa: autonomia do direito administrativo e inaplicabilidade da regra geral do código civil. Doutrinas Essenciais de Direito Administrativo | vol. 2 | p. 919 – 946 | Nov / 2012.
[5] DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil – Parte geral, 1977, p. 397-398 apud BARROSO, Luis Roberto. Prescrição administrativa: autonomia do direito administrativo e inaplicabilidade da regra geral do código civil. Doutrinas Essenciais de Direito Administrativo | vol. 2 | p. 919 – 946 | Nov / 2012.
[6] FRANCESCHINI, José Inácio. BAGNOLI, Vicente. Tratado de Direito Empresarial, vol. VII. 3ª ed. em e-book baseada na 3ª ed. impressa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
[7] FRANCESCHINI, José Inácio. BAGNOLI, Vicente. Id. Ibid.
[8] Trata-se de processo filhote, instaurado a partir dos desdobramentos do PA nº 08700.007776/2016-41 (“PA Originário”)
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