Opinião

A inteligência artificial e o sistema de Justiça

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27 de fevereiro de 2024, 11h16

Por que motivo, sendo a reforma da justiça algo persistentemente presente nas agendas políticas de estados democráticos, é uma das reformas que corre mais riscos de falhar?

Deve haver poucos estados democráticos em que o sistema de justiça não esteja sobre permanente questionamento (seja ao nível dos processos, seja ao nível dos agentes de justiça — designadamente os tribunais e as demais instâncias judiciárias, como o Ministério Público ou as entidades de investigação).

Os agentes políticos estão constantemente confrontados com pressões para reformar e melhorar a política e as estruturas da justiça.

Porém, a maioria do questionamento e das pressões de reforma não provém do grosso dos cidadãos. Neste e noutras dimensões, a política de justiça insere-se num contexto diferente de muitas outras políticas públicas.

As políticas públicas econômicas, da saúde, da educação, da segurança social, da habitação, da segurança pública, etc., com maior ou menor intensidade afetam em princípio todos os cidadãos.

Todos nós um dia temos de consultar um médico, ir a uma farmácia, a uma urgência; todos nós temos experiência e contatos com o sistema de educação, por nossa causa, pelos nossos filhos e familiares.

TJ-PE

Mas no que toca à justiça, apenas umas percentagens quase residuais de pessoas alguma vez são tocadas pelo seu funcionamento em termos de isso poder afetar significativamente a sua vida.

A maior parte das empresas e dos indivíduos ou nunca teve um contato com os tribunais ou quando tiveram foi por causa de pequenas questões, como multas de trânsito, pequenas querelas, contencioso administrativo relacionado com licenciamentos, concursos, etc (não posso ser exaustivo, tomem como mera exemplificação).

Por isso, a percepção que as pessoas têm da justiça é a que resulta, sobretudo, dos casos mediáticos ou da mediatização de problemas de justiça (como a morosidade, a alegada leniência das penas e dos juízes, a ineficácia ou a atuação contraditória de agentes de justiça).

Isso leva a que as pressões para reformas da política da justiça não provenham no essencial da opinião pública ou da sociedade globalmente consideradas, mas sim dos setores específicos que são afetados pelo funcionamento, alegadamente deficiente, da justiça e pelos chamados custos de contexto: os advogados; os investidores, as grandes empresas das utilities, os bancos, as seguradoras.

E também muitos políticos, seja quando envolvidos por suspeitas da prática de crimes econômicos, seja quando querem explorar a seu favor processos que envolvem adversários.

Portugal e Brasil
Os temas da justiça ou da reforma da justiça só muitas vezes tem centralidade nas campanhas eleitorais, pelo menos em Portugal.

E no Brasil, pelo que entendo, a justiça só é objeto de campanha quando ela própria é, voluntária ou involuntariamente, um protagonista das eleições.

É esta gravitação em torno de casos mediatizados, implicando pessoas conhecidas ou casos que envolvam avultados meios, a propósito dos quais surgem frequentemente críticas ao funcionamento da justiça — ou aos seus agentes — e apelo à reforma, que torna as reformas altamente propensas ao falhanço.

Demasiadas vezes as reformas são impulsionadas por acontecimentos específicos, mediatizados, que atingem pessoas com poder e influência na opinião pública, ou que causam alarme social (como crimes especialmente violentos ou hediondos) e não por uma reflexão madura e imune ao calor do momento.

Portugal, se me permitem mencionar muito brevemente a situação atual, é um exemplo flagrante.

Ultimamente tem havido situações em que o Ministério Público fez um juízo eventualmente errado da situação de facto e de Direito, precipitando-se na sua atuação, com consequências sérias.

Há um ano, um secretário de Estado colaborador direto do primeiro-ministro, do núcleo duro do Governo, foi forçado a demitir-se por ter sido acusado pelo MP de um crime. Na semana passada foi absolvido por um tribunal deste crime.

O atual primeiro-ministro, António Costa, demitiu-se em novembro do ano passado após a Procuradoria-Geral da República ter divulgado em comunicado que está sob investigação.

Há dias, o juiz de instrução criminal referiu que os indícios contra o Primeiro-Ministro são muito vagos e inconsistentes.

Em janeiro, o presidente do Governo Regional da Madeira e o presidente da Câmara Municipal do Funchal demitiram-se, por terem sido constituídos arguidos num processo de corrupção.

O segundo foi, aliás, preso, tendo estado 21 dias detido, aguardando a decisão do juiz de instrução criminal sobre as medidas de coação, designadamente a prisão preventiva requerida pelo MP.

O juiz de instrução criminal, ao fim de 21 dias, mandou libertá-lo (a ele e a outros detidos na mesma operação), dizendo que não só não havia indícios graves da prática do crime como não havia indícios da prática de crime.

Perante isto, já se fala de uma ampla restruturação do MP, de mecanismos de responsabilização, de reforço da hierarquia, de mais controlos, etc. E até da demissão da PGR. Muitos outros exemplos podíamos dar.

Há frequentes quebras do segredo de justiça, muitas vezes vistas como uma forma de as autoridades ou alguns interessados “condenarem” antes de julgamento. Pois logo se propõe acabar pura e simplesmente com o segredo de justiça.

Há alguns processos mediáticos onde os arguidos recorrem sistematicamente. Pois já se fala na necessidade de reduzir drasticamente as possibilidades de recurso.

Há certos tipos de criminalidade — designadamente econômica — em que não há sucesso significativo: pois, logo se propõe o aumento das dosimetrias das penas, a inversão do ônus da prova, as apreensões de bens mesmo sem julgamento, etc.

No caso do branqueamento de capitais, isso atinge o paroxismo máximo, com sucessivas alterações legislativas que reforçam o arsenal preventivo, mas sem um sucesso visível e com crescentes encargos sobre os particulares sujeitos a deveres preventivos.

Há um recrudescimento do consumo de drogas em certas zonas das cidades, particularmente Lisboa. Pois logo alguns setores políticos propõem atitudes mais drásticas.

As prisões têm dificuldades em sustentar o número de presos: pois logo se propões diminuir o tempo de prisão preventiva ou da liberdade condicional.

Podia continuar com os exemplos, mas não será necessário, porque estes já permitem ilustrar o meu ponto: nas políticas de justiça, as reformas arriscam-se a ser empurradas não por movimentos de fundo da cidadania, mas por questões conjunturais muito mediatizadas.

Por isso, são desgarradas, incoerentes, às vezes contraditórias.

Três ensinamentos pelo menos, de caráter metodológico, decorrem daí:

– evitar reformas a quente, empurrados por conjunturas e casos altamente mediatizadas;

– quando, se faz qualquer reforma da justiça, procurar visão de conjunto, avaliando bem os impactos que cada intervenção em cada setor produzirá, direta, ou indiretamente, nos demais;

– sobretudo, fazê-las de forma participada, com ampla participação e sem deixar que seja capturada por um grupo conjunturalmente interessado, mobilizando instituições capazes de uma visão independente e desinteressada, como a FGV Justiça, ou entidades isentas como o CNJ.

O segundo tema, reporta-se ao impacto da IA no setor da justiça. Começo por delimitar este impacto.

Suponho que ele será menor nos sistemas em que não vigora o precedente vinculativo no que naqueles em que vigora.

Suponho também que há áreas onde a IA nunca poderá substituir integralmente o juízo humano: na justiça constitucional e na justiça penal.

Na justiça constitucional, a necessária interpretação evolutiva da Constituição, em adaptação constante à realidade constitucional, só pode ser feita, no momento próprio, pelo juiz constitucional humano.

Na justiça penal, o julgamento de pessoas feito com apreciação adequada dos réus, que pressupõe a relação direta na sala do tribunal, entre juiz e réu, cara a cara, só pode ser feia por pessoas físicas. Mas é possível que a IA acelere a justiça em certas áreas e liberte os recursos para outras áreas.

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