Precisamos discutir a qualidade decisória do sistema de Justiça
7 de fevereiro de 2024, 9h18
Existe uma crença muito difundida, que volta e meia aflora nos mais diferentes espaços de discussão da sociedade: A concepção de que o Brasil possuí um sistema jurídico com excessivas possibilidades recursais e leniente com a defesa de acusados em processos criminais. Daí decorre um desdobramento conclusivo de que seriam esses os fatores principais da “impunidade” e da demora na prestação jurisdicional.
A premissa perpassa mentes, corações e fígados de ampla parcela da sociedade e da mídia tradicional, que a repete rotineiramente de maneira irrefletida, como uma espécie de dogma, desdobrando-se em editoriais, artigos de opinião e (pseudo)análises jurídicas.
Pior, o quadro ganha contornos grotescos quando profissionais do direito chancelam e defendem abertamente a tese, muitas vezes materializada no reducionismo de que “o Brasil possuí quatro graus de jurisdição”, naquilo que poderia se enquadrar no que Warat denominou de “senso comum teórico” [1].
Uma das tarefas de uma crítica compromissada do direito deve ser a de ter uma certa “chatice epistêmica” com o significado daquilo que se enuncia.
Na expressão de Streck, é necessário exercer o “constrangimento epistemológico” de concepções que carecem de conteúdo, afinal, não é possível dizer “qualquer coisa sobre qualquer coisa”, como se existisse um grau zero de sentido [2].
Em outra linha, é preciso obrar num esforço crítico de desconstrução das “estruturas automáticas da vida, ou seja, de sua obviedade” [3]. Nas palavras de Timm:
O “óbvio” pretende ocupar, como que automaticamente — portanto irrefletidamente — todos os espaços do real. Mas a vida é mais do que as figurações que dela podemos fazer, assim como a matemática é mais que um conjunto de fórmulas, a história mais que um conjunto de datas e a música mais que um conjunto de sons. Assim como a fotografia de uma cidade é exatamente isso: a fotografia de uma cidade, e não a cidade mesma, as ideias e concepções que temos da realidade são exatamente isso: ideias e concepções de realidade, e não a realidade propriamente dita em suas infinitas variedades e manifestações [4].
Como nota preambular da proposta textual, é necessário afirmar um truísmo e reposicionar o centro do debate ante a uma elementaridade, que é precisamente o ponto de influxo do qual se parte o erro metodológico da perspectiva acima retratada.
Diferentemente do que muito se propala, o Brasil não possui quatro graus de jurisdição. É uma impropriedade técnica sustentar tal acepção. O Brasil possui duas instâncias sujeitas à ampla devolução da matéria em apreciação e duas instâncias de natureza extraordinária, com vias extremamente estreitas.
Em verdade, quem labuta no cotidiano forense pode sustentar que, na prática e na grande maioria dos casos, o sistema jurídico brasileiro tem propiciado mal e parcamente o duplo grau de jurisdição em termos de efetiva análise de teses e proposições.

Isso porque, para além da crítica já amplamente reverberada de ausência de critérios decisórios, de ampla subjetividade — numa espécie de realismo jurídico — e da consequente insegurança jurídica no Brasil, não tem sido incomum se verificar no dia-a-dia a repetição sistemática de modelos decisórios pré-formatados — minutas prêt-à-porter — e incompatíveis com as peculiaridades do caso concreto; a coleção de clichês decisórios abstratos e genéricos que não dialogam com os argumentos lançados pelas partes; a remissão a julgados que não guardam relação com as especificidades do caso; e, especialmente em segundo grau, o uso desmedido da fundamentação per relationem, isto é, a repristinação parcial ou total, geralmente, dos argumentos da decisão objeto do recurso.
Debate de ideias se faz necessário na advocacia
Falando do ponto de vista de quem está do outro lado do balcão, arrisco a dizer que a maior frustração da advocacia não é ter seu pedido eventualmente negado, a sua tese rechaçada. A divergência, o antagonismo, são contingências ínsitas a um fenômeno complexo como é o direito.
A maior frustração do advogado, em verdade, é não ver a sua tese, ou os seus argumentos, envolvida em um debate dialético de ideias, próprio do caráter que o processo deve ostentar, o que vem ocorrendo em frequência cada vez mais acentuada nos casos que passam ao largo dos holofotes midiáticos e do interesse de figuras ou grupos hegemônicos, enfraquecendo sobremaneira o Estado de direito.
Ora, se a Constituição estabelece o dever de fundamentação — e, portanto, de motivação — e o duplo grau de jurisdição, essas normas não podem ser apenas performáticas. Ou se tem um julgamento efetivo, com dupla análise concreta daquilo que constitui a essência do caso concreto em apreço, ou vamos admitir que a segunda instância se conforme com uma atuação meramente homologadora, e não revisional.
De outra banda, quando se trata de tribunais superiores, além do escopo de possibilidades reduzido, em razão de requisitos formais muito específicos e delimitados, os expedientes endereçados para STJ e STF, tendo como pano de fundo a “demanda explosiva”, estão subordinados e condicionados, cada vez mais, a súmulas, entendimentos e jurisprudências defensivas que, quer por um raciocínio utilitário, quer por uma concepção processual autoritária ou discricionária, na prática, quando não inviabilizam a subida da imensa maioria das demandas recursais defensivas, impossibilitam a análise do conteúdo das irresignações defensivas respectivamente pela corte federal e constitucional.
Não retratam holisticamente a gama possível de situações, mas alguns dados que se têm à disposição indicam justamente o nível de dificuldade de litigar nos tribunais superiores. Levantamento do gabinete da vice-Presidência do Superior Tribunal de Justiça entre setembro de 2022 e outubro de 2023 aponta que 95% dos recursos extraordinários contra decisões do STJ têm seguimento negado ou são inadmitidos pela vice-Presidência[5]; 92% das decisões que negam análise de recursos especiais são mantidas pelo Superior Tribunal de Justiça, indicava também estudo do STJ [6].
O próprio Habeas Corpus, expediente que, por concepção, deveria ter o grau de abrangência mais alargado em se tratando de tutela das liberdades, encontra enorme resistência para a sua concessão nos tribunais superiores.
Em recente estatística divulgada pelo Anuário da Justiça Brasil 2023, com base em dados do Painel Corte Aberta do STF, foi anunciado o número de Habeas Corpus com decisão final em 2022 no Supremo Tribunal Federal [7].
O primeiro dado digno de nota é a quantidade expressiva de habeas corpus direcionados à mais alta corte do país em 2022 (10.424), o que, já de início, indica, ressalvados eventuais abusos, para anomalias na origem dos casos, indícios de ilegalidades pretéritas cometidas por agentes jurisdicionais que perpassaram dois graus de jurisdição e, possivelmente, uma corte federal.
No entanto, o que efetivamente chama a atenção é que o percentual de concessões de ordens, na média, é de ínfimos 7% do total das respectivas ações originárias ajuizadas. Carece um estudo com maior rigor metodológico que esquadrinhe o conteúdo e as razões das não concessões.
Entretanto, a prática instrumentalizada dos tribunais superiores, fundada cada vez mais em uma “cultura de produtividade”, permite uma legítima hipótese para justificar o quadro, consistente na frequente oposição de jurisprudências defensivas, isto é, empecilhos e obstáculos sumulares ou jurisprudenciais, para conhecimento e/ou concessão do remédio heroico.
De maneira geral, não tem sido incomum verificar algumas excentricidades no repertório jurisprudencial de tribunais e cortes superiores, que ganham status de dogma e impõem verticalmente aos causídicos tarefas argumentativas inglórias.
A título exemplificativo, a exigência de prequestionamento em Habeas Corpus — ação genuinamente originária; a ficcional separação de questão de fato e questão de direito; o entendimento de que o órgão julgador não está obrigado a examinar e enfrentar todos os argumentos das partes, para ficar somente nessas.
Ou seja: é dissociada da realidade a concepção de que há ampla possibilidade recursal no Brasil, especialmente na seara penal, seja porque materialmente a tarefa de “dizer o direito” está conformada cada vez mais a uma execução automatizada, impermeável e irreflexiva, seja porque formalmente há uma limitação cada vez mais incisiva para a cognição de expedientes manejados em tribunais superiores; o direito de ser lido — e de ter seus argumentos devidamente considerados e respondidos — é um ideal real pelo qual, hoje, os advogados precisam batalhar energicamente, processo a processo, diuturnamente, de modo que a linguagem tem perdido substância e profundidade em meio ao volume processual; a preocupação central do sistema jurídico brasileiro não tem sido a legitimidade e a qualidade da decisão e do julgamento, mas a gestão de números de processos, em uma perspectiva cada vez mais utilitária, administrativa e “eficientista” da Justiça.
A pretensão acusatória prevalece
Aliás, a produtividade — no sentido de produção quantitativa — tem sido cada vez mais cobrada pelo CNJ e norteadora de critérios de promoção e premiação dos magistrados. Essa “mensagem” enunciada de cima para baixo também reflete diretamente no modo com o qual os juízes brasileiros na ponta balizam seu modus operandi jurisdicional.
No processo penal, o resultado da “produtividade” e da “simplificação” que se tem observado dentro de um sistema que é acusatório na concepção, mas que ainda é inquisitório em mentalidade [8] e procedimentalidade, não raras vezes aponta para o caminho decisório “natural” e mais “fácil”, que é o favorecimento da pretensão acusatória em detrimento do conhecimento, análise ou provimento de mecanismos de resistência defensiva.
Ocorre que mesmo a se observar pela perspectiva de administração numérica de processos, é vã a ilusão de que com artifícios teóricos dentro desse quadro conceitual se diminuirá sensivelmente a demanda recursal. A pretexto de limitar o número de processos e de expedientes recursais, em um nível sistêmico, consegue-se apenas o redirecionamento do objeto das demandas.
Isto é, ao invés de, por exemplo, se analisar o recurso especial, o recurso extraordinário, o habeas corpus, ocorre o acúmulo exponencial de agravos, embargos e demais mecanismos de resistência, só que, dessa vez, sobrecarregando o sistema e demandando a concentração de esforços de todos os atores jurídicos envolvidos em discutir ninharias sumulares ou procedimentais que passam longe da análise do cerne dos casos e dos direitos fundamentais (supostamente) afrontados.
Os paradigmas que preocupantemente vêm sendo estabelecidos na cultura do nosso sistema de justiça permitem alusão a um modelo fordista de produção, só que a diferença fundamental é que o objeto da linha de produção tem sido os direitos da cidadania. Na obra “Na Colônia Penal”, de Kakfa [9], o mote principal da novela escrita em 1914 é o funcionamento de um sistema de justiça por meio de uma metodologia em torno de uma máquina.
Trata-se da rotinização de procedimentos que se pretendem absolutos e que levam à naturalização da violência, à automatização da linguagem e a tamanha penetrabilidade do homem pela máquina que, metaforicamente, o homem se transforma em máquina.
O perigo, exatamente, de uma execução rotinizada de procedimentos de modo absoluto é fundar uma espécie de racionalidade apartada das circunstâncias dos casos concretos, alheia à intersubjetividade, incapaz de perceber algo que não a própria facilitação da sua operabilidade em termos utilitários.
É preciso que se registre, antes que se corra o risco de injustiça, que se tem conhecimento do hercúleo esforço do Poder Judiciário e dos seus competentes servidores — muitas vezes à custa de problemas psicológicos e distúrbios emocionais — para dar conta da prestação jurisdicional, cada vez em maior proporção, a despeito de todo o desaparelhamento das varas e tribunais.
O “Justiça em Números”, o “Painel Corte Aberta”, entre outros indicadores, demonstram que há um problema real de alta demanda judicial. O que definitivamente não está em xeque aqui é a competência dos quadros que compõem o Poder Judiciário.
Não se trata de tecer uma análise maniqueísta buscando o panegírico da culpa ou que tenha como mira de alçada a expiação das responsabilidades de uma ou outra instituição, mas de traçar um olhar sistêmico, profundo e bem intencionado sobre qual sistema de Justiça, de fato, estamos engendrando enquanto atores jurídicos; se ele está conformado com uma racionalidade legítima e se tem sido compatível com o oferecimento de uma resposta adequada constitucionalmente.
A discussão a respeito da diminuição da demanda judicial deve passar por outras esferas, antecedentes e bem mais complexas, cujo espaço já não permite o devido adensamento teórico. Definitivamente, não será tolhendo direitos, atropelando-se um devido processo legal substancial, apostando na cultura da simplificação de fenômenos complexos, automatizando a linguagem e inviabilizando possibilidades recursais com álibis retóricos carentes de normatividade, tudo em benefício de vistosos relatórios de produtividade, que teremos uma melhora na prestação jurisdicional. Quantidade decisória não é qualidade. E a qualidade decisória deve(ria) sempre preceder o enfoque de um sistema de Justiça que, por definição, se propõe cuidar do direito de pessoas.
[1] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Seqüência Estudos Jurídicos e Políticos, [S. l.], v. 3, n. 05, p. 48–57, 1982. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/17121. Acesso em: 25 jun. 2023.
[2] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temais fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017.
[3] SOUZA, Ricardo Timm de. Sobre a construção do sentido. O pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 68.
[4] SOUZA, Ricardo Timm de. Sobre a construção do sentido. O pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 75
[5] Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/19112023-95–dos-recursos-extraordinarios-contra-decisoes-do-STJ-tem-seguimento-negado-ou-sao-inadmitidos.aspx. Acesso 30, jan. 2024.
[6] Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/05/02/stj-mantem-92percent-das-decisoes-que-negam-analise-de-recursos.ghtml. Acesso em: 30, jan. 2024.
[7] CONSULTOR JURÍDICO Anuário da Justiça Brasil 2023. Disponível em: <https://anuario.conjur.com.br/pt-BR/profiles/78592e4622f1-anuario-da-justica/editions/anuario-da-justica-brasil-2023>. Acesso em: 30, jan. 2024, p. 27.
[8] LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal – Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva, 2020
[9] KAFKA, Franz. Na colônia penal. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
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