Juiz pode condenar apesar de pedido absolutório do Ministério Público?
7 de fevereiro de 2024, 7h08
Meu objetivo aqui é compartilhar algumas inquietações, com forte apelo prático, sobre um tema que não é novo, mas recentemente adquiriu redobrado fôlego: a compatibilidade entre o artigo 385 do Código de Processo Penal, que permite a prolação de sentença condenatória a despeito de opinião absolutória do órgão ministerial, com a atual ordem constitucional e, em especial, com o sistema acusatório, atualmente densificado pelo artigo 3º-A do CPP, com redação determinada pela Lei 13.964/2019.
A controvérsia em torno da recepção do referido dispositivo tem ocupado o espaço nos tribunais superiores, com destaque para o paradigmático julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça do Recurso Especial 2.022.413-PA, ocorrido em 14 de fevereiro de 2023.
Chama a atenção a densidade dos argumentos apresentados tanto pelo voto vencedor do ministro Rogério Schietti Cruz, que reafirma a conformidade do artigo 385 do CPP à Constituição, quanto pelo voto vencido do ministro Sebastião Reis Júnior, que vislumbra sua incompatibilidade com o sistema acusatório, à luz das alterações promovidas pelo artigo 3º-A do CPP. [1]

Muito recentemente, a polêmica foi reacesa com um artigo publicado nesta ConJur, em 2 de fevereiro de 2024, com a resposta de Jacinto Nelson Miranda Coutinho, Lenio Luiz Streck e Marcio Guedes Berti [2] ao texto de lavra de Afranio Silva Jardim, divulgado pelo site “Empório do Direito”, em 31 de janeiro de 2024. [3]
Em síntese, Jardim defende o acerto do artigo 385 do CPP. Observa que o pedido condenatório é formulado quando do oferecimento da denúncia, que não pode ser retirado, face ao caráter da indisponibilidade da ação penal.
Sustenta que, se fosse possível a retirada do pedido condenatório, a hipótese seria de extinção do processo sem resolução de mérito, e não de absolvição. Por isso, diz ter andado bem o legislador ao admitir que o órgão ministerial possa opinar pela absolvição, cuja manifestação não deve ser mesmo vinculante ao juiz, porque, caso contrário, quem estaria a julgar o feito seria o Ministério Público, e não o magistrado.
Por fim, acaba por sublinhar que essa pretendida vinculação adquiriria ainda mais complexidade nos crimes de competência do tribunal do júri, porque os jurados poderiam responder aos quesitos em desconformidade com a manifestação ministerial em favor da absolvição.
Em resposta, Coutinho, Streck e Berti destacaram que o artigo 385 do CPP é inegavelmente incompatível com a atual Constituição, observado o cariz inquisitório do CPP de 1941. Afirmaram ser inegável que o Ministério Público, por ser parte e não mero “palpiteiro”, ele pede, postula, requer, e não simplesmente opina. Afirmam que, na verdade, o pedido de absolvição afastaria a pretensão de condenar e não mais haveria conflito algum, não restando matéria a ser julgada.
Os autores argumentam que esse raciocínio não violaria o caráter da indisponibilidade da ação penal, reconhecido pelo artigo 42 do CPP, que restaria sempre atendido uma vez oferecida a denúncia.
Pois bem. Os textos não divergem acerca da necessidade do reconhecimento e fortalecimento do sistema acusatório no processo penal brasileiro, de fato o único compatível com o nosso modelo constitucional.
O grande problema é que a expressão sistema acusatório encerra noção plurívoca, que necessita ser colmatada a partir da realidade e das contingências de cada sistema jurídico.
Basta observar que o processo penal anglo-americano, alardeado por muitos como sistema acusatório puro, [4]é permeado por regras que causariam repulsa à maioria da doutrina processual penal constitucional brasileira, a exemplo da possibilidade de dismissal without prejudice, garantindo-se à acusação a possibilidade de manejar nova ação penal sobre os mesmos fatos, posteriormente à homologação da atual demanda. [5]
Não é sem razão que o processo penal norte-americano já foi acidamente denominado por Bernd Schünemann de simulacro de processo penal. [6]
Transição entre o velho um novo Código Penal
Parece ser inegável que o processo penal brasileiro está em crise, consistindo esta, segundo Gramsci, “no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, surge uma grande variedade de sintomas mórbidos”. [7]
Como lembraram Coutinho, Streck e Berti, o atual CPP foi decretado sob os auspícios do autoritarismo da era Vargas, fazendo-se necessária uma filtragem constitucional que expurgue as regras violadoras do sistema acusatório. Porém, nem sempre essa característica se apresenta de modo evidente.
Sem embargo, é possível identificar no sistema acusatório um núcleo essencial, calcado na atuação de três personagens centrais, actum trium personarum: as partes (autor e réu) e um terceiro imparcial (juiz). Quanto ao juiz, é decorrência natural o ne procedat iudex ex officio.
Compõe o núcleo essencial deste princípio a impossibilidade de processos penais serem iniciados por um ato judicial, eliminando-se os famigerados processos judicialiformes, previstos pela redação original do atual CPP.
Também implica a vedação à concessão de medidas cautelares de ofício e a produção indiscriminada de provas desapegada da iniciativa das partes, sob o pretexto de se alcançar a mitológica e inatingível verdade real.[8] Mas há diversos pontos situados em uma inescapável zona cinzenta, calhando serem mais bem escrutinados e debatidos.
E no que toca ao exame da compatibilidade do artigo 385 do CPP ao sistema acusatório e, consequentemente, à própria Constituição, parece inevitável o enfretamento de três questões, duas de natureza genérica e outra restrita aos processos afetos ao tribunal do júri. Permitam-me lançá-las aqui para reflexão:
- É possível o julgamento do mérito sem pretensão?
Não cabe, neste curto espaço, tomar parte na polêmica se, ao cabo da instrução criminal, o Ministério Público pede ou simplesmente opina. Mas consideremos a posição do texto de Coutinho, Streck e Berti. Para eles, o pedido de absolvição posterior extinguiria a pretensão acusatória inicial. Se não há mais pretensão, como é que poderia haver julgamento de mérito?
O julgamento sem pretensão não representaria julgamento sem pedido? Provavelmente devido a esse estranhamento, Badaró propõe que o pedido absolutório esvaziaria a pretensão processual e, logo, não haveria conteúdo a ser julgado. Assim, o processo deve ser extinto, sem a apreciação do mérito. Entretanto, diz o processualista que, antes dessa providência, faz-se necessária a concordância do acusado, que pode preferir ser absolvido.
Assim, se o réu não concordar com o pedido de absolvição, o juiz terá de apreciar o mérito, podendo condenar ou absolver o acusado. [9] A solução apresentada por Badaró ao processo penal é idêntica àquela prevista textualmente para o processo civil, como estabelece o artigo 485, § 4º, do Código de Processo Civil. [10]
Ela se revela adequada aos direitos disponíveis, mas há sérias dúvidas se a existência, ou não, da pretensão processual penal deverá ser condicionada à concordância do acusado, oferecida segundo a marca da indisponibilidade, o teor do disposto no artigo 42 do CPP.
- Seria desejável a inexistência de qualquer mecanismo de controle de ato processual?
Quando o representante ministerial promove o arquivamento de um inquérito policial, independentemente do motivo, deverá ele, nos termos do artigo 28 do CPP e de sua interpretação conforme realizada pelo Supremo Tribunal Federal, [11] encaminhá-lo para a instância de revisão do próprio Ministério Público, além de submeter a sua manifestação ao juiz competente, à vítima, ao investigado e à autoridade policial.
Se a vítima ou o seu representante discordar do arquivamento, poderá submeter a matéria ao órgão de revisão, e o próprio juiz competente também poderá fazê-lo, diante de patente ilegalidade ou teratologia. Segundo o artigo 18 do CPP, em se tratando de arquivamento por falta de base para a denúncia, nada impede que as investigações sejam reabertas, desde que presentes novos elementos de provas.
Ora, não seria um contrassenso existirem fortes mecanismos de controle para o arquivamento do procedimento investigativo preliminar, dos quais poderá participar o juiz, inclusive, em casos excepcionais, e, por outro lado, negar qualquer espécie de controle ao pedido/opinião pela absolvição? Esse despautério salta aos olhos principalmente se percebermos que somente o segundo caso possui a aptidão de formar coisa julgada material.
- Como a vinculação se operaria em se tratando de processos afetos ao tribunal do júri?
Tratou-se de uma questão levantada, inclusive, pelo texto de Afrânio Jardim e que sequer foi tangenciada pela resposta de Coutinho, Streck e Berti. Imaginem que, durante a sessão plenária, o representante ministerial requeira a absolvição do réu.
Esse pedido vincularia os jurados, que teriam que, necessariamente, votar pela absolvição? Não haveria fricção à cláusula pétrea da soberania dos veredictos, prevista pelo artigo 5º, XXXVIII, c, da Constituição? Seria melhor, então, que o juiz presidente, diante do pedido de absolvição, dissolvesse o conselho de sentença?
Outro ponto, ainda no contexto dos crimes afetos ao júri, seria quanto ao requerimento ministerial, formulado ao final da primeira fase do procedimento especial. Se o Ministério Público, por exemplo, pugnasse pela impronúncia do réu, estaria igualmente o juiz vinculado ao pedido? Não poderia, por exemplo, decidir ainda mais favoravelmente ao réu, absolvendo-o sumariamente?
A possibilidade de condenação a despeito de pedido absolutório do órgão ministerial está longe de se submeter à lógica maniqueísta do tudo ou nada. Tanto é que o célebre processualista James Goldschmidt, tão festejado pela doutrina processualista penal de vanguarda, ao analisar o artigo 912, número 3, Ley de Enjuiciamento Criminal espanhol, e também e seu artigo 69 da Ley de Jurado, que então estabeleciam a vinculação do juiz ao pleito absolutório na fase de julgamento, observou que essa vinculação representaria “até um exagero do princípio acusatório, porque se desconhece que o objeto do processo é o direito de punir e, por consequência, não um tipo delituoso, senão um fato a ser julgado, e que aquele direito de punir corresponde ao Juiz.”[12]
Em sentido semelhante, no ano de 2016, a Suprema Corte colombiana acabou por reinterpretar o artigo 448 de seu Código de Processo Penal de 2004, que textualmente impedia a condenação se não tivesse havido pedido de condenação. [13]
Entendeu o tribunal pela possibilidade de condenação, dentre outros argumentos, diante das particularidades do sistema acusatório colombiano, reputando-se equivocada a importação de instituições como, por exemplo, a “retirada da acusação”, somente pelo fato de que provenham de legislações processuais rotuladas como acusatórias: porque o oferecimento da ação penal representaria um dever constitucional, decorrente do princípio da legalidade; e que uma sentença que “decida” absolver o acusado porque o órgão ministerial assim “solicita”, com exclusão do exercício autônomo e independente de valoração das provas, não constitui uma decisão judicial, mas mero referendo da vontade do acusador (Sentença 43.837/2016).[14]
Enfim, o artigo 385 do CPP existe em nosso direito há mais de 70 anos, como notaram ambos os textos. Ele parece se situar naquela penumbra entre o constitucionalmente admissível e o intolerável. Entretanto, se o que se pretende é o reconhecimento de que ele não foi recepcionado pela ordem constitucional e, em especial, que foi revogado pelo atual artigo 3º-A do CPP, as três questões acima levantadas carecem de reflexão.
[1] Disponível em GetInteiroTeorDoAcordao (stj.jus.br). Acesso em 5/2/2024.
[2] Disponível em Em alegações finais o MP não pede, só opina? Resposta ao professor Afrânio Silva Jardim (conjur.com.br). Acesso em 5/2/2024.
[3] Disponível em Em alegações finais, o Ministério Público não “pede”, mas simplesmente “opina” sobre o julgamento do pedido formulado na denúncia – Por Afrânio Silva Jardim – Empório do Direito (emporiododireito.com.br). Acesso em 5/2/2024.
[4] Por todos, AMBOS, Kai; LIMA, Marcellus Polastri. O processo penal acusatório e a vedação probatória perante as realidades alemã e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 38.
[5] STEINBERG, M I. Dismissal with or without prejudice under the speedy trial act – a proposed interpretation. Journal of Criminal Law and Criminology, Chicago, v. 69, pp. 1-14, 1977.
[6] SCHÜNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual norte-americano. Trad. Danielle Soares Delgado Campos. In: GRECO, Luís (coord). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, pp. 240-261, 2013, p. 243.
[7] GRAMSCI, Antonio. Cadernos-seleções de notas de prisão. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971, pp. 25-26.
[8] A despeito de pretendidas otimizações no processo de reconstrução histórica dos fatos, a verdade é sempre parcial (CASARA, Rubens R.R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 178.
[9] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 11ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 567.
[10] Art. 485. (…) § 4º: “§ 4º Oferecida a contestação, o autor não poderá, sem o consentimento do réu, desistir da ação.”
[11] STF, Pleno, ADIs 6299, 6298, 6300 e 6305, Rel. Min. Luiz Fux, j. 24/8/2023.
[12] GOLDSCHMIDT, James. Problemas jurídicos e políticos do processo penal. Trad. Mauro Fonseca Andrade e Mateus Marques. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 70.
[13] O art. 448 do CPP colombiano (Lei 906/2004) assim estabelece: “El acusado no podrá ser declarado culpable por hechos que no consten en la acusación, ni por delitos por los cuales no se ha solicitado condena.” – grifei.
[14] Para argumentos adicionais, v. TABARES, Mónica Alexandra Quintero; ARISMENDY, Mary Luz Salazar. El principio de congruência del sistema penal acusatorio: la incidencia de la jurisprudencia. Bogotá: Ibáñez, 2021, pp. 81-83.
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