Decidir não é escolher: sobre a responsabilidade política do Ministério Público
3 de fevereiro de 2024, 10h19
O Ministério Público assumiu diferentes identidades na história jurídico-constitucional pátria. A instituição passou por vicissitudes e não gozava do destacado grau de independência que hoje é a ela conferido. A Constituição de 1988 rompe com a tônica histórica de pouca importância dispensada ao Ministério Público ao conferir-lhe uma nova roupagem, passando a ocupar distinto papel no (e para) o Estado Democrático de Direito. A partir daí o “Ministério Público vem ocupando lugar cada vez mais destacado na organização do Estado, dado o alargamento de suas funções de proteção de direitos indisponíveis e interesse coletivos”1
O “Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado” e compete a ele a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”(art. 127, caput, CF/88). O art. 129 da Constituição Federal, por sua vez, trata de substancioso rol de funções institucionais do Ministério Público. É evidente e inegável a atenção dada pelo Constituinte de 1988 ao Ministério Público, que passou a ser o titular de uma série de atribuições e garantias que sustentam sua independência.
O Ministério Público brasileiro pós-1988 é singular de tal forma a ponto de Maria Tereza Sadek afirma que:
quando as pessoas se gabam exclamando que a jabuticaba só existe no Brasil, retruco, observando que o que existe de fato só no Brasil é o nosso Ministério Público. Podemos encontrar instituições análogas na América Latina, no mundo Europeu e na América do Norte. Em nenhum dos países, contudo, vamos nos deparar com um Ministério Público que apresente um perfil institucional semelhante ou que ostente igual conjunto de atribuições. O nosso Ministério Público, a partir da Constituição de 1988, passou a ser uma instituição que tem pouca semelhança com seus congêneres no exterior e tampouco com o Ministério Público brasileiro do passado. Eu até diria, ousando uma observação ainda mais radical, que o nome é o mesmo, mas a instituição não. Várias características mudaram. Entre essas alterações, ressalte-se, desde logo, a sua localização institucional e o rol de suas atribuições 2.
Apesar dessa distinta configuração institucional que o MP ganhou com a Constituição de 1988, ele ainda não se consolidou como genuína instituição de garantia. Ainda é uma “velha instituição com novas funções”3.
1 – Sintomas de uma crise de identidade
A atuação do MP na “lava jato” denota essa disparidade entre a atuação do MP e o perfil constitucional a ele conferido. De igual modo, o “manifesto contra a bandidolatria”. Esses são sintomas de uma crise de identidade que sofre a instituição e que a distancia do ideal garantista.
Na “lava jato”, o MP protagonizou um verdadeiro lawfare em desprestígio às garantias e direitos fundamentais. Esse desrespeito aos direitos fundamentais foi evidenciado na proposta legislativa do MPF intitulada “10 medidas contra a corrupção”. Uma das medidas propostas é a possibilidade de execução provisória da pena após julgamento de mérito do caso por tribunal de apelação (mitigação do princípio fundamental da presunção de inocência).
A partir de 09 de junho de 2019, no episódio conhecido como “vaza jato”, ocorreu o vazamento de uma série de conversas realizadas no aplicativo Telegram entre o até então juiz Sergio Moro, o então membro do MPF Deltan Dallagnol e outros membros da operação “lava jato”. O conteúdo das conversas foi divulgado pelo Portal The Intercept Brasil tornando públicas uma série de ilegalidades cometidas pelos membros da operação, notadamente o conluio entre membros do MP e o juiz em busca da condenação de Lula, o que ocasionou, posteriormente, a anulação de processos.
Nas referidas conversas, o então membro do MPF, Deltan Dallagnol, em diálogo com um de seus colegas, que o alerta sobre a ilegalidade dos grampos telefônicos e da divulgação da conversa entre Lula e Dilma, no dia 16 de março de 2016, afirma: “Andrey, no mundo jurídico concordo com você, é relevante. Mas a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é a política”4. Tal afirmação deixa explícito que o até então membro do MP deixou os critérios jurídicos de lado em prol de critérios não-jurídicos, em claro desprestígio à ordem jurídico-constitucional. “Deltan conseguiu provar, em uma frase, que há dois mundos: o do direito e o da política. Para ele, vale mesmo é o da política. Vale tudo. Tudo vale. Os fins justificam os piores meios”5.
Outro exemplo que expõe um distanciamento do órgão ministerial do ideal de instituição de garantia é o “manifesto contra a bandidolatria”, que tem como signatários mais de uma centena de membros do MP, que vai de encontro ao garantismo. Em síntese, o manifesto defende penas mais rigorosas e critica o “garantismo e a bandidolatria”. Entre os pontos atacados estão: i) a reforma do Código Penal; ii) a política de desencarceramento; iii) a audiência de custódia; iv) a Reforma do Código de Processo Penal; v) a nova Lei de Abuso de Autoridade6.
O manifesto cria dois mundos, dois tipos de pessoas, o cidadão de bem e o não-cidadão, o criminoso. Como se os últimos também não fossem, da mesma forma que os primeiros, cidadãos detentores de direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados. Os signatários do manifesto confundem garantismo com impunidade, como se a Constituição fosse a responsável pelas mazelas que acometem o sistema penal pátrio, quando, em verdade, é a não concretização da Carta Cidadã que obsta o avanço civilizatório desse Sistema. Esquecem, como eloquentemente aponta Aury Lopes Júnior7, que punir é algo necessário, a punição é civilizatória, mas é preciso fazê-la dentro das regras do jogo, pois é preciso punir para garantir e punir garantindo.
Recentemente, o promotor Jacson Zilio foi alvo da Corregedoria-Geral do Ministério Público do Paraná, que chegou a requerer a sua remoção da 9ª Promotoria de Justiça Criminal do Foro Central da Região Metropolitana de Curitiba. As “razões” giravam em torno do fato do promotor seguir precedentes das cortes superiores acerca da ilegalidade nas buscas pessoais e domiciliares em casos de tráfico de drogas. Isso estaria ocasionando pouquíssima combatividade (sic) por parte do promotor8.
Os casos ora abordados não podem ser universalizados para representar o ideário prevalecente no Ministério Público pátrio, mas trazem à tona sintomas preocupantes de uma crise de identidade do órgão ministerial que, em determinadas ocasiões, distancia-se do projeto constitucional que deve contornar o seu desenho institucional. Nos referidos casos, os parâmetros jurídico-constitucionais sucumbiram perante os predadores do Direito: subjetivismo, decisionismo, ativismo, moral, economia e política.
2 – A responsabilidade do Ministério Público com a Constituição
A Constituição de 1988 atribuiu ao MP a missão de zelar pelo direito e pela democracia. O MP surge como um dos principais atores institucionais nesse labor de se fazer democracia… de preservação da autonomia do Direito como condição de possibilidade para superação de crises político-institucionais que assombram o Estado Democratico de Direito. Nos dizeres de Paulo Bonavides9, os membros do Ministério Público são soldados da Lei Fundamental e sacerdotes do Estado de Direito.
Inobstante, para tanto, o MP deve incorporar o seu perfil constitucional em sua completude. Deixar o velho morrer para que o novo possa nascer 10.
É necessário assentar uma premissa fundamental: decidir não é escolher. Essa é uma diferenciação necessária. Nessa linha, conforme vem de há muito sustentando o Professor Lenio Streck, é vedado ao Ministério Público fazer agir estratégico, pois ele deve ser imparcial; ao passo em que não escolhe, decide 11.
Sendo assim, a decisão não advém de uma escolha, mas do comprometimento com o aquilo que a comunidade política constrói como Direito. Por outro lado, a escolha está situada no âmbito da parcialidade e da discricionariedade, é mero ato de opção diante das possibilidades apresentadas. Consubstancia-se, nesse sentido, tão somente em simples ato presentificado em determinada circunstância que se apresenta 12.
O decidir — no âmbito hermenêutico — é um ato revestido de responsabilidade política, é um ato estatal; o escolher, por sua vez, é um ato de razão prática referente ao cotidiano e ao agir estratégico13. Essa diferenciação se dá em um nível estrutural, e não valorativo. Ou seja, as respostas de escolha são parciais, a passo que as respostas de decisão são totais14.
A responsabilidade política dos juízes, na linha da Crítica Hermenêutica do Direito, relaciona-se com a
obrigação de justificar suas decisões, porque com elas afetam os direitos fundamentais e sociais, além da relevante circunstância de que, no Estado Democrático de Direito, a adequada justificação da decisão constitui-se em um direito fundamental. O sentido da obrigação de fundamentar as decisões previsto no art. 93, IX, da Constituição do Brasil implica, necessariamente, a justificação dessas decisões15.
O ato decisional do MP, enquanto ato revestido de responsabilidade política, assim o é pois acusação afeta direitos fundamentais e, por isso, deve ser devidamente justificada e despida de agir estratégico. É corolário por excelência do papel institucional conferido pela Constituição ao Parquet: garante da democracia e do plexo de direitos fundamentais que a sustenta!
Outrossim, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público estabelece que é dever do membro do Ministério Público “indicar os fundamentos jurídicos de seus pronunciamentos processuais”(Art. 43, III, da Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993).
Como assevera o Professor Lenio Streck 16, o Ministério Público não deve assumir posturas punitivistas e de um acusador sistemático, devendo agir, de acordo com a Constituição de 1988, de forma imparcial. A lógica estabelecida pela ordem constitucional e de tratados internacionais17 exige mais do que um acusador, mas também não há que se falar em uma parte que acusa e é imparcial como se um juiz fosse. Trata-se de uma imparcialidade singular. Um dever de agir sem interesses fora do processo e sempre buscando a defesa da ordem jurídica e garantia dos direitos fundamentais. Um agir imbuído de responsabilidade política. Nessa linha, interessante observação de Guilherme Augusto De Vargas Soares e Giovanna Dias 18:
é verdade que o Ministério Público não a possui com os mesmos contornos da imparcialidade do julgador (e isto é claro, tendo em vista que ambos exercem funções diferentes), no entanto, isso não significa que ele não tenha sua própria imparcialidade. Promotores e procuradores não podem agir conforme seus interesses particulares (políticos, morais, de cunho preconceituoso etc.), mas, sim, de acordo com o interesse público e social. É de interesse público que o processo não contenha prova ilícita, pois essa é uma garantia fundamental do acusado, construída a partir do texto constitucional, e que é aplicável a todos os cidadãos que constituírem a parte passiva (ou, até mesmo, ativa) de um processo.
Nesse sentido, o MP possui a obrigação, sim, de ser imparcial em relação aos seus interesses particulares ou aos interesses particulares da vítima.
Na mesma linha, destaca Leonardo Longen do Nascimento 19 que:
O Ministério Público deve atuar como acusador imparcial. Afinal, como poderia ser diferente em um sistema que supostamente superou o modelo inquisitorial e encampou legalmente o modelo acusatório inerente ao Estado Democrático de Direito? Assim, não deveria ser novidade que não cabe ao Ministério Público agir como perseguidor implacável, capaz de atropelar nulidades e garantias para obter a condenação.
A Crítica Hermenêutica do Direito fornece elementos teóricos para reflexão e busca pela superação do modelo de acusador sistemático rumo a um acusador imparcial integrante de uma instituição de garantia, pois o Ministério Público não escolhe, ele decide. E, ao fim e ao cabo, como salienta Leonardo Longen do Nascimento, “refletir sobre a atuação do Ministério Público é pensar acerca do próprio Estado Democrático de Direito”.
O Ministério Público somente existe em razão da Constituição, portanto é inadmissível que ele não a defenda em face de ilegalidades vindas de qual lado for, inclusive do próprio Estado (para se valer de Alfredo Valladão) 20. A instituição que deve ser de garantia, não pode se tornar em uma matricida que fere de morte sua própria mãe (a Constituição). O Ministério Público não pode tornar-se uma mera extensão dos anseios da sociedade. Pode (e deve) ser mais do que isso. Enquanto órgão estatal, deve filtrar os interesses em jogo, com responsabilidade política, para agir de forma constitucionalmente adequada. Ao contrário disso, o agir estratégico, significa trair sua missão constitucional e contribuir para com o enfraquecimento da democracia (a quem o MP deve defender). Significa que a instituição a quem a Constituição confiou a guarda da ordem democrática assumiria a vil função de desvirtuar o Direito a partir de meras escolhas.
Por fim, o que importa dizer, na linha das preocupações epistêmicas externadas rotineiramente pelo Professor Lenio Streck, é que precisamos falar sobre o Ministério Público!
1 Silva, José Afonso Da. Curso de direito constitucional positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014. p. 604.
2 Sadek, Maria Teresa. A construção de um novo Ministério Público resolutivo. De jure: revista jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, 2009. p. 131.
3 Ribeiro, L. M. L. Ministério Público: Velha instituição com novas funções?. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 113, p. 51-82, 2017.
4 Trecho citado em: STRECK, L.L. Tá lá um corpo estendido no chão! É a filigrana! é a Constituição! Consultor Jurídico, 9 de setembro de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-09/ta-la-corpo-estendido-chao-filigrana-constituicao
5 Streck, L.L. Tá lá um corpo estendido no chão! É a filigrana! é a Constituição! Consultor Jurídico, 9 de setembro de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-09/ta-la-corpo-estendido-chao-filigrana-constituicao Acesso em: 20/01/2024.
6 íntegra do manifesto disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/voce-tem-sido-enganado/
7 LOPES JUNIOR, A. Direito processual penal. 17. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020.
8 Sobre o tema conferir: Nascimento, Leonardo Longen do. Qual a combatividade esperada do Ministério Público em uma democracia? Consultor Jurídico. 09 de dezembro de 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-09/qual-a-combatividade-esperada-do-ministerio-publico-em-uma-democracia/ Acesso em: 25/01/2024.
9 Bonavides, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um Direito Constitucional de luta e resistência – por uma Nova Hermenêutica – por uma repolitização da legitimidade. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
10 Streck, Lenio Luiz e NEWTON, Eduardo Januário. Afinal, ‘o que é o Ministério Público, esse outro (des)conhecido’? Consultor Jurídico, 17 de novembro de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-17/opiniao-afinal-mp-outro-desconhecido. Acesso em: 27/01/2024.
11 Streck, Lenio Luiz. Por que Moro foi parcial e o Ministério Público não foi isento: a prova do lawfare na Lava Jato. In: Lenio Luiz Streck, Carol Proner, Marco Aurélio de Carvalho, Fabiano Silva dos Santos (orgs.). Livro das parcialidades, Rio de Janeiro: Telha, 2021.
12 Streck, Lenio Luiz. O Que é Isto: decido conforme minha consciência? 6. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017
13 Streck, L. L. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed.Belo Horizonte: Letramento Editora, 2020
14 Rombach, Heinrich. Decisión. Conceptos Fundamentales de Filosofia. KRINGS, Hermann; BAUMGARTNER, Hans Michael; WILD, Christoph (Orgs.). Barcelona, ES: Editorial Herder, 1977. v. I, p. 476-490.
15 Streck, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 11ª ed. 4ª tir. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021.
16 Streck, L. L. O que é isto – O assustador manifesto contra a bandidolatria? Consultor Jurídico. 10 de agosto de 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-10/senso-incomum-isto-assustador-manifesto-bandidolatria Acesso em: 25/01/2024.
17 Segundo o Estatuto de Roma – do qual o Brasil é signatário – em seu artigo 54: “A fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o presente Estatuto e, para esse efeito, investigar, de igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa”.
18 Soares, Guilherme Augusto De Vargas; Dias, Giovanna. É possível que o Ministério Público seja imparcial? Consultor Jurídico. 30 de março de 2019, Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mar-30/diario-classe-possivel-ministerio-publico-seja-imparcial/ Acesso em: 25/01/2024.
Conferir também: Soares, Guilherme Augusto De Vargas; Dias, Giovanna. Lei Anastasia-Streck: manifesto por um Ministério Público imparcial. Consultor Jurídico. 22 de fev. de 2020, Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-fev-22/diario-classe-lei-anastasia-streck-manifesto-ministerio-publico-imparcial/
19 Nascimento, Leonardo Longen do. Qual a combatividade esperada do Ministério Público em uma democracia? Consultor Jurídico. 09 de dezembro de 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-09/qual-a-combatividade-esperada-do-ministerio-publico-em-uma-democracia/ Acesso em: 25/01/2024.
20 Para Alfredo Valladão, conforme citado por Streck (2017): “O Ministério Público se apresenta como uma figura de um verdadeiro Poder do Estado. Se Montesquieu tivesse escrito hoje o “Espírito das Leis”, com segurança não havia sido tríplice se não quádrupla a divisão dos Poderes. Um órgão que legisla, um que executa, um que julga, devendo existir, também, um que defenda a sociedade e a lei ante a Justiça parta a ofensa de onde partir, é dizer, dos indivíduos ou dos próprios Poderes do Estado”.
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