Opinião

Lei Orgânica consagra o dever de imparcialidade das Polícias Civis

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  • é advogado sócio do Vieira Pinto Sociedade Advogados delegado de Polícia e professor universitário aposentado professor da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra e mestre em direito pela Universidade Paulista.

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  • é advogado criminalista e sócio fundador do escritório criminal Vieira Pinto Sociedade de Advogados delegado de Polícia aposentado e professor da Academia de Polícia "Dr. Coriolano Nogueira Cobra".

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2 de fevereiro de 2024, 13h14

Em brilhante e oportuno artigo publicado na ConJur, no último dia 3 de janeiro, o delegado de polícia e professor David Pimentel Barbosa de Siena promoveu abalizada análise inicial dos mais relevantes princípios norteadores da investigação criminal, instituídos pela Lei Federal nº 14.735/23 [1] — a denominada Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis (LONPC) —, motivando-nos a apresentar agora uma necessária contribuição para o desenvolvimento desse tema, mediante a abordagem de um tão específico quanto elogiável aspecto dessa aplausível iniciativa legislativa.

Com efeito, não pode passar despercebida a insistência da nova lei em evidenciar que a investigação criminal levada a cabo no nosso Estado democrático de Direito deve, obrigatoriamente, primar pela mais acendrada e efetiva imparcialidade, qual reiterado em inúmeros dispositivos desse preceituário, a começar pelos seus princípios institucionais básicos elencados em seu artigo 4º, nestes termos:

“XII – atuação imparcial na condução da atividade investigativa e de polícia judiciária;”

“XV – autonomia, imparcialidade, tecnicidade e cientificidade investigativa, indiciatória, inquisitória, notarial e pericial;”

“XVII – natureza técnica e imparcial das funções de polícia judiciária civil e de apuração de infrações penais, sob a presidência e mediante análise técnico-jurídica do delegado de polícia;”.

Dever de todos
Depois, ao tratar das competências policiais civis (artigo 6º), e notadamente das funções de polícia judiciária civil e de apuração de infrações penais, a LONPC voltou a relacionar a execução imparcial dessas atividades como condição legitimadora dos procedimentos institucionais (inciso XXVII).

E como se essas previsões ainda não bastassem, a vertente Lei Orgânica ainda estabeleceu a atuação imparcial como dever inerente a todos os ocupantes de cargos efetivos da polícia civil (artigo 29).

Exsurge, portanto, totalmente razoável e mesmo indispensável postular agora a atenção de todos os policiais civis e operadores do Direito em geral, primeiro, para a fulcral importância conferida à imparcialidade neste divisado e renovado cenário da “devida investigação legal”; e, depois, para a imprescindibilidade de adequada aferição do conteúdo ético, técnico e jurídico do focalizado princípio institucional, procedimental e disciplinar, a fim de gerar o perfeito discernimento de suas consequências práticas, que sem embargo de não se afigurar inaudita exigência, longe se encontra, no mais das vezes, de marcar categórica presença no desenvolvimento das investigações policiais levadas a cabo no bojo de inquéritos policiais.

É consabido que os policiais, enquanto servidores públicos, devem total respeito aos princípios regenciais da função pública previstos no caput do artigo 37 da Lei Maior, dentre os quais, por motivos óbvios, ora destacamos a impessoalidade, que já na antiga e celebrada lição da saudosa professora Lúcia Valle Figueiredo era identificada como a  [2]. Ainda que certas vozes queiram hoje dar uma acepção distinta e autônoma à imparcialidade, exsurge evidente a impossibilidade de distanciá-la da mais comezinha concepção de impessoalidade, que vincula, em última instância, a atuação do agente público unicamente voltada à realização da “finalidade pública que deve nortear toda atividade administrativa”, qual ensina Maria Silvia Zanella de Pietro[3], dentre outros tantos doutos.

Princípios institucionais das polícias
Releva, destarte, desde já fixar a finalidade pública das polícias civis, certamente no que se refere ao constitucional exercício das acimas identificadas funções de polícia judiciária civil e de apuração de infrações penais, em tarefa que, à vista da lei em testilha, pode ser proficientemente descortinada a partir dos princípios institucionais que lhes definem a obrigação de atuar colimando a “proteção da dignidade humana e dos direitos fundamentais no âmbito da investigação criminal” (artigo 4º, I), a discrição e preservação do sigilo necessário à efetividade da investigação e à salvaguarda da intimidade das pessoas (inciso II), a “lealdade e ética” (inciso VI), a “busca da verdade real” (VII) e a “essencialidade da investigação policial para a persecução penal” (inciso XVII).

Alie-se a essas previsões o inconfundível teor do artigo 26 da discorrida Lei Orgânica, que tornou impositivo ao delegado de Polícia, no âmbito do inquérito policial, o dever de “atuar com isenção, com autonomia funcional e no interesse da efetividade da tutela penal, respeitados os direitos e as garantias fundamentais e assegurada a análise técnico-jurídica do fato”.

Conforme define o dicionário eletrônico Houaiss, isenção, com o sentido que ora nos interessa, significa “caráter ou condição daquele que não é parcial; justiça, equidade”, onde se projeta claro que a atuação isenta de um policial civil, máxime do delegado de Polícia, no exercício das funções de investigação criminal e de polícia judiciária, impõe-lhe agir com único compromisso, qual seja, a busca da verdade atingível, com absoluto respeito à dignidade do investigado, reconhecendo-o como titular de direitos e de garantias constitucionais e legais invioláveis.

Noutras palavras, a atuação isenta do policial civil obriga-o a não proceder ao prejulgamento do investigado e especialmente a não o tratar como potencial ou arrematado culpado, ao arrepio do que estabelece o princípio constitucional da presunção da inocência (artigo 5º, LVII, CF). Ou, do ponto de vista ainda mais prático, isento (imparcial) exclusivamente se aduzirá o policial civil que não se deixar guiar, ainda que por um breve momento, pela famosa lógica do acusado, que nas palavras do magistral Antônio Evaristo de Morais Filho, fundamentadas nas festejadas lições da psicologia jurídica de Altavilla, assim se projeta:

“Uma vez internalizada na mente do policial, do promotor ou do juiz, a procedência da hipótese provisória, cria-se em seu espírito a necessidade de demonstrar o que considera verdade, à qual ele liga uma especial razão de orgulho, como se a eventual demonstração da improcedência de sua hipótese ‘constituísse uma razão de demérito’. E assim, intoxicado por sua verdade, sobrevaloriza todos os elementos probatórios que lhe forem favoráveis e diminui ‘o valor dos contrários, até o ponto de não serem tomados em consideração num auto”. [4]

E para que não pairem dúvidas sobre a atualidade desse magistério, traz-se à colação a lição de um ministro da nossa Suprema Corte Cristiano Zanin Martins, que não de hoje chama a atenção para esse mesmo comezinho e deletério ethos da polícia investigativa — lamentavelmente, e não infrequentemente, assimilado por outros protagonistas da justiça criminal —, que hoje é denunciado pelos criminólogos e juristas norte-americanos como a tunnel vision (visão de túnel), referindo-se, na concepção do professor da Universidade de Wisconsin Keith Findley, aquela

“tendência humana natural, produzida devido a certos vieses cognitivos, que conduzem os atores do sistema de Justiça Criminal a focar em um suspeito e, em seguida, selecionar, filtrar ou superestimar as provas disponíveis contra ele, ao mesmo tempo em que ignoram ou suprimem provas contrárias ou outras linhas de pesquisa. Trata-se, portanto, de um fenômeno que faz com que os agentes se concentrem em uma determinada conclusão ou premissa particular e, então, ao olhar para as provas do caso, agarram-se a essa premissa, fazendo com que as demais provas pareçam concordantes com ela” [5].

Busca seletiva da prova
Nessa medida, isento (imparcial) será unicamente o policial que não vier a proceder à busca seletiva da prova, ou seja, tendo olhos apenas para aquelas que sirvam a sinalizar a culpa do investigado, incriminando-o, ao tempo que não se interessa por aqueloutras que possam denotar a sua inocência. De efeito, inexistirá imparcialidade numa investigação dirigida pela “lógica de perseguição“,que se propõe, conscientemente ou não, a “encontrar culpados, e não inocentes”.

Para tanto, outros vezos deverão ser igualmente abandonados, a se principiar pela dificuldade por vezes imposta ao defensor do acusado para se ter acesso aos autos da investigação, a fim de conhecer dos elementos de informação e eventuais provas nela coligidos, em frontal colidência ao comando ínsito na Súmula Vinculante nº 14, do Supremo Tribunal Federal[6]. Idem no que tange ao respeito a outras prerrogativas do advogado, consubstanciadas, em especial, no artigo 7º, III, XIV e XXI da Lei nº 8.906/94, com redação dada pela Lei nº 13.245/16.

Convém não se olvidar que, como cediço, a defesa técnica, no processo penal, não se inicia com a acusação formal do titular da ação penal, não se confundindo, ademais, como prerrogativa vinculada apenas ao contraditório, como se extrai da já clássica lição de Marta Saad:

“O direito de defesa não se confunde com o contraditório. Este exige partes e um sujeito imparcial e pressupõe o exercício do direito de defesa. Mas o direito de defesa, para seu exercício, independe da instauração do contraditório. A defesa, que se exerce no inquérito policial, deve ser entendida no seu sentido lato, como resistência, oposição de forças, podendo o acusado se contrapor a todas as acusações que pesem contra si, com a assistência de advogado, a possibilidade de guardar silêncio e a admissibilidade de produção de provas, indispensáveis à demonstração de sua inocência ou de sua culpabilidade diminuída.” 4

Ou na saudosa dicção de Rogério Lauria Tucci:

“Bem é de ver, nesse último ponto, a preocupação do legislador constituinte em proporcionar ao investigado e ao indiciado,’ além do conforto afetivo da família, quando preso, uma assistência técnica, por profissional legalmente habilitado, a fim de que, desde logo, a partir da instauração do inquérito a respeito de fato penalmente relevante, cuja autoria lhe esteja sendo imputada, haja o necessário equilíbrio entre a atuação dos encarregados da autotutela do interesse punitivo do Estado e a sua situação procedimental.” [7]

Não há como não se entender, portanto, que quando a defesa técnica se manifesta nos autos do inquérito policial, arrazoando e/ou requerendo, o faz no afã da obtenção da tutela jurídica dos direitos do investigado, assim confiando que a autoridade policial, atuando com a devida isenção, em busca da verdade e em prol da dignidade da pessoa humana, venha a garantir-lhe, consoante o magistério do Ministro Gilmar Mendes, o acesso à informação, assim viabilizando sua participação, com mira no real êxito da investigação e, fundamentalmente, de ter suas manifestações consideradas[8].

Diferença no acolhimento de requerimentos
Tornando à prática, há de se registrar que, com não rara frequência, as petições apresentadas pela defesa técnica em sede de inquéritos policiais são simplesmente desdenhadas, com a eventual adoção de diligência requerida como se tratasse de ônus a ser desincumbido e não de um legítimo e necessário esforço dispendido à reconstrução da verdade alcançável.

É notório, neste particular, a gigantesca diferença que marca o acolhimento, pelas autoridades policiais, de uma requisição ministerial e de um requerimento defensivo, pois, enquanto o primeiro é sempre merecedor de pronto e irrestrito atendimento, o segundo mui raramente recebe essa mesma espécie de consideração, o que não sugere nenhuma espécie de tratamento imparcial. Não à toa a hodierna mobilização da classe dos advogados em favor da instituição de parâmetros legitimadores da investigação defensiva[9].

Enfim, emerge imprescindível que, com o advento de sua Lei Orgânica Nacional, venham as polícias civis a adotar, com base na diretriz estabelecida no art. 5º, XXII dessa lei, regras procedimentais que garantam que as atuações de seus integrantes sejam sempre vincadas pela imparcialidade que em verso e prosa foi reiteradamente decantada e prometida em seus artigos. Doutra forma, jamais alcançarão o objetivo insculpido no primeiro deles, que as preconizou como instituições garantidoras “dos direitos fundamentais no âmbito da investigação criminal”, que visam, como cediço, à realização de dois fins de idêntica e extremada importância, destituídos de qualquer expressão de preponderância entre si, a saber: não permitir que acusações infundadas, levianas e até caluniosas arrastem inocentes às barras dos tribunais; e possibilitar a exata e justa aplicação do Direito a todos aqueles que transgrediram as leis penais.

Não haverá a verdadeira e democrática aplicação de justiça se esta advier de um indevido processo. E este, por sua vez, somente se erguerá legítimo e democrático se for decorrente de preliminar e devida investigação criminal.


[1] Princípios fundamentais da investigação: análise da Lei Orgânica das Polícias Civis. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-03/principios-fundamentais-da-investigacao-analise-da-lei-organica-das-policias-civis/. Acesso em 04.1.2024.

[2] CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO, 6 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros: 2002, p. 62

[3] DIREITO ADMINISTRATIVO. 34 ed. rev., atual. e ampl.  Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 85.

[4] O Ministério Público e o inquérito policial. REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS CRIMINAIS. São Paulo: Revista dos Tribunais, n° 19, jul-set 1997, p. 106.

[5] MARTINS, Cristiano Zanin. AMBROSIO. Graziella.  O juiz das garantias e a tunnel vision — Parte 1. Disponível no sítio da revista eletrônica Consultor Jurídica desde 20.9.2021: https://www.conjur.com.br/2021-set-20/zanin-ambrosio-juiz-garantias-tunnel-vision-parte.

Acesso em 25.9.2021.

[6] “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”

[7] Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro: 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.161

[8] STF. HC 196883 MC/DF. Ministro Relator Gilmar Mendes (decisão monocrática). Julgado em 14 de janeiro de 2021.

[9] Vide, nesse sentido, por exemplo, o Provimento nº 188, de 11.12.2018, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (publicado no DeOAB de 31.12.2018, p.4).

Autores

  • é advogado sócio do Vieira Pinto Sociedade Advogados, delegado de Polícia e professor universitário aposentado, professor da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra e mestre em direito pela Universidade Paulista.

  • é advogado criminalista e sócio fundador do escritório criminal Vieira Pinto Sociedade de Advogados, delegado de Polícia aposentado e professor da Academia de Polícia "Dr. Coriolano Nogueira Cobra".

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