Os destaques da política de proteção às pessoas em situação de rua
1 de fevereiro de 2024, 19h13
Em termos mundiais, chegou-se ao consenso de que a paz, para ser duradoura, deve ter como fundamento a justiça social. Sendo assim, todos os seres humanos têm o direito de alcançar o bem-estar material e o desenvolvimento espiritual em condições de liberdade e dignidade, de segurança econômica e mesmas oportunidades (artigo 2º, a, da Declaração de Filadélfia, de 1944).
No plano constitucional, a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais (artigo 193 da Constituição). Para que isso seja observado, devem ser efetivados os direitos sociais, os quais englobam a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados (artigo 6º da Constituição de 1988).
Mesmo a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (artigo 170 da Constituição).
Cabe salientar que a seguridade social, como sistema de proteção que compreende a saúde, a previdência social e a assistência social (artigo 194 da CF/1988), em verdade, é essencial para a concretização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam:
construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º da Constituição de 1988) [1].
Esfera internacional
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, estabelece que todo ser humano tem direito à segurança social, bem como à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade (artigo 22).
Confirmando a relevância desse preceito, de acordo com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 3, da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, deve-se assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades.
A Declaração de Filadélfia, de 1944, inserida como anexo à Constituição da Organização Internacional do Trabalho, ao tratar dos princípios fundamentais, dispõe que a pobreza, seja onde for, constitui um perigo para a prosperidade geral (artigo 1º, c).
Em harmonia com o exposto, conforme o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 1, da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, deve-se acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares.
Assistência social e a política PopRua
A assistência social, de forma específica, deve ser prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social [2]. Na organização dos serviços da assistência social devem ser criados programas de amparo, entre outros, às pessoas que vivem em situação de rua (artigo 23, § 2º, inciso II, da Lei 8.742/1993).
Mais recentemente, a Lei nº 14.821/2024 instituiu a Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua), destinada a promover os direitos humanos de pessoas em situação de rua ao trabalho, à renda, à qualificação profissional e à elevação da escolaridade (artigo 1º da lei).
Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que tem em comum a falta de moradia e utiliza os logradouros públicos como espaço de moradia e de sustento, bem como as unidades de acolhimento institucional para pernoite eventual ou provisório, podendo tal condição estar associada a outras vulnerabilidades como a pobreza e os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados.
Trabalho Decente
No âmbito da Organização Internacional do Trabalho, a Agenda do Trabalho Decente tem como objetivos estratégicos: promover o emprego por meio da criação de ambiente institucional e econômico sustentável; adotar e ampliar medidas de proteção social (seguridade social e proteção dos trabalhadores) sustentáveis e adaptadas às circunstâncias nacionais; promover o diálogo social e o tripartismo; respeitar, promover e aplicar os princípios e direitos fundamentais no trabalho (Declaração sobre a justiça social para uma globalização equitativa, de 2008).
Nessa linha, em consonância com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 8, da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, deve-se promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos.
Princípios e diretrizes da PopRua
São princípios da Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua):
I – respeito à dignidade da pessoa humana; II – valorização e respeito à vida e à cidadania; III – estabelecimento de condições de trabalho decente; IV – articulação entre trabalho, educação e desenvolvimento; V – sustentabilidade ambiental; VI – atendimento humanizado e universalizado; VII – participação e controle sociais; VIII – direito à convivência familiar e busca da inserção comunitária; IX – transparência na execução dos programas e ações e na aplicação dos recursos a ela destinados; X – respeito às condições sociais e às diferenças de origem, de raça, de idade, de nacionalidade e de religião, com atenção especial às pessoas com deficiência ou com comorbidades e às famílias monoparentais com crianças; XI – promoção de igualdade de oportunidades e não discriminação (art. 2º da Lei 14.821/2024).
São diretrizes da Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua):
- I – oferta de condições de autonomia financeira e de enfrentamento da pobreza, por meio de programas redistributivos, de elevação da escolaridade, de qualificação profissional e de promoção do acesso amplo, seguro e simplificado ao trabalho e à renda;
- II – consideração da heterogeneidade da população de rua, notadamente quanto ao nível de escolaridade, às condições de saúde, à faixa etária, à origem e às relações com o trabalho e com a família;
- III – fomento de ações de enfrentamento do preconceito, da discriminação e da violência contra pessoas em situação de rua no ambiente de trabalho;
- IV – garantia, no acesso ao trabalho e à renda, de transversalidade e de articulação territorial com outras políticas públicas setoriais, de áreas como saúde, assistência social e habitação;
- V – relação entre trabalho e moradia, com adoção de estratégias que tenham como centralidade o acesso imediato da população em situação de rua à moradia como forma de garantir inserção sustentável no mundo do trabalho;
- VI – respeito às singularidades de cada território, inclusive das comunidades tradicionais nele presentes, e ao aproveitamento das potencialidades e dos recursos locais na elaboração, na execução, no acompanhamento e no monitoramento dos instrumentos de políticas públicas previstos na PNTC PopRua;
- VII – fortalecimento e estímulo ao associativismo, ao cooperativismo e à autogestão de empreendimentos de economia solidária de pessoas em situação de rua;
- VIII – o trabalho como possível meio para a redução de danos, inclusive os associados ao uso problemático de álcool e outras drogas, desde que respeitada a autodeterminação das pessoas em situação de rua;
- IX – articulação de ações que possibilitem a superação da situação de rua;
- X – integração dos esforços do poder público e da sociedade civil para elaboração, para execução e para monitoramento das iniciativas previstas na Lei 14.821/2024;
- XI – responsabilidade do poder público pela sua elaboração e financiamento (artigo 3º da Lei 14.821/2024).
Centros de Apoio (CatRua)
O poder público, em todas as esferas federativas que aderirem à Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua), deve instituir rede de Centros de Apoio ao Trabalhador em Situação de Rua (CatRua) com o objetivo de prestar atendimento às pessoas em situação de rua que buscam orientação profissional e inserção no mercado de trabalho (artigo 6º da Lei 14.821/2024) [3].
Os Centros de Apoio ao Trabalhador em Situação de Rua (CatRua) devem, em articulação com os serviços socioassistenciais, realizar busca ativa de trabalhadores em situação de rua que estejam em logradouros públicos, por meio de ações itinerantes realizadas no território de forma contínua e articulada com a rede socioassistencial (artigo 7º, § 4º, da Lei 14.821/2024).
Integração
O poder público deve construir fluxos para integrar as bases de dados relativas aos serviços do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e do Sistema Único de Saúde (SUS) que atendam pessoas em situação de rua, de forma a subsidiar o trabalho dos Centros de Apoio ao Trabalhador em Situação de Rua (CatRua), observado o devido respeito à privacidade das pessoas e das famílias, na forma das Leis 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação) e 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais).
Os equipamentos do Sistema Único de Assistência Social (Suas) devem adotar as ações necessárias para garantir o acesso das pessoas em situação de rua ao mercado de trabalho, consideradas suas especificidades e diversidade (artigo 9º da Lei 14.821/2024).
Bolsas
O poder público, em todas as esferas federativas que aderirem à Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua), deve instituir bolsas de incentivo financeiro às pessoas em situação de rua participantes de cursos de qualificação profissional e que busquem a elevação de sua escolaridade, denominadas Bolsas de Qualificação para o Trabalho e Ensino da População em Situação de Rua (Bolsas QualisRua) (artigo 12 da Lei 14.821/2024).
As bolsas QualisRua consistem em política de transferência de renda condicionada à realização de atividades de qualificação, de capacitação, de formação profissional e de elevação da escolaridade, e têm como objetivo conceder atenção especial ao trabalhador e ao estudante em situação de rua, de forma a garantir condições para sua permanência nos ambientes de aprendizado.
O recebimento das bolsas QualisRua durante o exercício das atividades descritas acima pelos beneficiários da PNTC PopRua será cumulativo e não impedirá nem suspenderá o recebimento de benefícios de outros programas de transferência de renda e de auxílios de quaisquer entes federativos [4].
As bolsas QualisRua podem ser vinculadas ao exercício, por seus beneficiários, de atividades e capacitação ocupacional realizadas e ministradas diretamente por órgãos públicos da administração pública direta ou indireta ou por entidades conveniadas ou parceiras, vedada qualquer atividade insalubre, nos termos das normas trabalhistas vigentes.
As bolsas QualisRua devem possibilitar a permanência da pessoa em situação de rua no ambiente de aprendizado ou capacitação profissional, bem como subsidiar despesas de alimentação e de deslocamento relacionadas às atividades dos cursos, capacitações e ambiente escolar.
Os critérios de concessão, de vigência e de interrupção das Bolsas QualisRua devem ser estipulados em decreto regulamentador.
Qualificação profissional e assistência estudantil
Para garantir a permanência de pessoas em situação de rua em cursos de qualificação profissional, a Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua) deve criar condições para oferecer auxílios financeiros na forma da Lei 14.821/2024, sem prejuízo de outras bolsas e auxílios disponíveis.
O Estado e as instituições de ensino devem prestar acompanhamento pedagógico e assistência estudantil às pessoas em situação de rua (artigo 15 da Lei 14.821/2024).
A assistência estudantil deve ocorrer de forma articulada com a rede socioassistencial e com as demais políticas públicas e contemplar busca ativa e acompanhamento sistemático, inclusive das famílias das pessoas em situação de rua.
Os serviços do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) devem atuar de forma integrada com a política de educação para garantir o direito à educação da população em situação de rua, considerados o seu ingresso e a sua permanência nas instituições de ensino (artigo 17 da Lei 14.821/2024).
Acesso imediato à moradia
A Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua) deve garantir o acesso imediato à moradia dos beneficiários, por meio de políticas de habitação ou por programas específicos para a população em situação de rua, com o objetivo de promover a sustentabilidade do acesso ao trabalho, respeitadas a autonomia e a autodeterminação da pessoa em situação de rua (artigo 21 da Lei 14.821/2024).
No caso de impossibilidade de atender imediatamente ao disposto acima, o poder público, de forma subsidiária e provisória, deve garantir às pessoas em situação de rua e a seus núcleos familiares vagas fixas na rede socioassistencial, preferencialmente em modalidades de acolhimento provisório mais autônomas e privativas. O referido acolhimento provisório deve ser vinculado ao atendimento futuro do beneficiário em políticas públicas de acesso à moradia.
Previdência Social
O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) deve garantir celeridade e prioridade na análise dos processos das pessoas em situação de rua, bem como facilitar o acesso dessa população aos requerimentos de aposentadoria, de pensões e de benefícios, sem condicionamento das solicitações à apresentação de comprovante de residência (artigo 22 da Lei 14.821/2024).
Para facilitar o acesso da população em situação de rua aos referidos requerimentos, o INSS pode realizar ações itinerantes nos territórios com grande concentração de pessoas em situação de rua.
Renda básica
A população em situação de rua deve ser priorizada no processo de implementação gradativa da renda básica de cidadania, nos termos da Lei 10.835/2004 (artigo 23 da Lei 14.821/2024).
Nesse aspecto, a Organização Internacional do Trabalho deve promover entre os Estados programas que visem a ampliar as medidas de seguridade social, a fim de assegurar uma renda básica a todos que precisem dessa proteção, bem como assistência médica completa (artigo 3º, f, da Declaração de Filadélfia)[5].
Articulação entre os entes federativos
A Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua) deve ser implementada de forma descentralizada e articulada entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios que a ela aderirem por meio de instrumento próprio (artigo 35 da Lei 14.821/2024).
Os entes federativos que aderirem à Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua) devem priorizar o cadastramento de pessoas em situação de rua no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), de que trata o artigo 6º-F da Lei 8.742/1993, por meio de encaminhamento ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), na forma do regulamento (artigo 35, § 2º, da Lei 14.821/2024).
Cabe, assim, acompanhar a regulamentação desse relevante diploma legal, de modo a se proteger e promover a dignidade da pessoa humana, reconhecida como fundamento do Estado democrático de direito (artigo 1º, inciso III, da Constituição).
[1] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito previdenciário: seguridade social. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2024. p. 53-55.
[2] A assistência social tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; III – a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV – a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e à pessoa idosa que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei (benefício de prestação continuada); VI – a redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza (art. 203 da Constituição Federal de 1988).
[3] São atribuições dos Centros de Apoio ao Trabalhador em Situação de Rua (CatRua), sem prejuízo de regulamentação posterior: I – captar, cadastrar e oferecer aos desempregados e aos trabalhadores em situação de rua vagas para reinserção no mercado de trabalho; II – captar, cadastrar e encaminhar pessoas em situação de rua para vagas de qualificação profissional; III – garantir acesso das pessoas em situação de rua ao Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) e ao Sistema Nacional de Emprego (Sine); IV – facilitar e auxiliar a emissão de segunda via de documentos como Registro Geral (RG), certidão de nascimento e certidão de casamento, bem como o registro no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), para pessoas em situação de rua; V – facilitar a emissão de Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) para pessoas em situação de rua; VI – prestar os serviços de orientação trabalhista e previdenciária às pessoas em situação de rua; VII – prestar informação, assessoria e orientação aos empregadores sobre as necessidades de apoio e de adaptações do ambiente de trabalho ao trabalhador em situação de rua; VIII – realizar ações de apoio às pessoas em situação de rua nos postos de trabalho, na formação ou treinamento, no desenvolvimento de habilidades socioemocionais e relacionais e no acompanhamento do processo de inserção e continuidade no ambiente de trabalho, conforme a necessidade individualizada de cada trabalhador em situação de rua; IX – indicar para o órgão público gestor possíveis beneficiários das Bolsas de Qualificação para o Trabalho e Ensino da População em Situação de Rua (Bolsas QualisRua), de que trata o art. 12 da Lei 14.821/2024 (art. 7º).
[4] Foi instituído o Programa Bolsa Família, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, destinado à transferência direta e condicionada de renda (Lei 14.601/2023).
[5] No âmbito dos direitos sociais, toda pessoa em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária (art. 6º, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988, incluído pela Emenda Constitucional 114/2021).
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