Opinião

Uso do Coaf pela PF deve ser controlado para que órgão não se torne Pandora de novos abusos

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  • é advogado criminalista especialista em Direito e Processo Penal (ABDConst-PR) em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) relator da 1ª Câmara Julgadora da OAB-SC e fundador do escritório Anderson Almeida Advogados.

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31 de dezembro de 2024, 9h14

Nos últimos anos, no Brasil, tornou-se cada vez mais comum no discurso de jornalistas, juristas e políticos a figura retórica dos “freios e contrapesos”. Mais que um sinal de compreensão de como funciona — ou deveriam funcionar — os Poderes da República, o uso frequente do jargão demonstra que houve abusos dignos de nota. Uma das figuras centrais desses abusos é o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), um órgão administrativo que tem acesso a informações sensíveis e que vem sendo usado de forma desenfreada por agentes de persecução penal.

Reprodução
coaf

O cerne da polêmica são os Relatório de Inteligência Financeira (RIFs) solicitados de modo informal pela Polícia Federal. A prática é claramente problemática em diferentes camadas, mas a origem do problema está na falta de controle judicial. Cabe ao Judiciário conter o poder estatal e atuar como garante dos direitos dos cidadãos estabelecidos pela Constituição da República.

Sem a tutela do Judiciário, um agente de persecução penal pode, por exemplo, pedir relatórios de inteligência financeira ao Coaf de modo informal e, a partir do acesso a essas informações protegidas pelo sigilo fiscal e bancário de pessoas físicas e jurídicas, dar início a uma investigação.

Esse tipo de conduta implica necessariamente na violação ao artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição, que versam sobre a inviolabilidade da honra e da imagem das pessoas, além de garantir uma série de sigilos que só podem ser violados por determinação judicial.

A prática também viola o artigo 1º, §4º, da Lei do Sigilo das Operações Bancárias (LCP nº 105/2001) que estabelece que a quebra de sigilo só pode ser decretada para apuração de ocorrência de um crime.

Nosso arcabouço legal — assim como das demais democracias do mundo — garante ao cidadão o direito de não ter sua intimidade devassada sem que haja qualquer indício de cometimento de crime.

Quando um agente de persecução penal se utiliza de modo informal de informações sigilosas de um órgão administrativo como o Coaf ele realiza uma fishing expedition ou pescaria probatória — ou melhor ainda dizendo: predatória. Ele age como se o cidadão fosse uma presa a ser abatida pelo Estado.

A pesca probatória é um conceito simples e auto explicável: lançar a rede ao oceano de informações que deveriam ser sigilosas e só acessadas por ordem judicial para buscar uma prova comprometedora contra um alvo específico.

Se o conceito da pesca probatória é simples, as suas consequências são complexas e atingem não apenas os alvos investigados, mas também toda a sociedade brasileira.

Afinal, se não há indício de prática criminosa, o que leva um agente da Polícia Federal, por exemplo, a solicitar de modo informal informações sigilosas? Os mais ingênuos podem acreditar que desde que ao bem comum a burla de direitos individuais é justificável.

Os mais realistas, contudo, entendem que o muro de contenção das garantias dos cidadãos só é aparentemente sólido. Uma vez que sofre uma rachadura pode desmoronar. Que nenhum agente de persecução penal pode se colocar acima da lei por gostos pessoais, inclinação política ou mera intuição.

Linha tênue

No julgamento do Tema 990, de relatório do ministro Dias Toffoli, o Supremo Tribunal Federal entendeu que é constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional.

A 3º Turma do Superior Tribunal de Justiça avançou na interpretação da tese fixada pelo STF no sentido de que a liberação de dados fiscais pela Receita a Polícia Federal pode ser realizada sem autorização judicial, desde que haja indícios de cometimento de crime. A palavra-chave na questão é: indício. Sem que haja qualquer suspeita minimamente concreta de delito, o compartilhamento de informações sigilosas sem a tutela do Judiciário é ilegal.

O relator dos recursos que possibilitaram que o STJ avançasse nessa interpretação do Tema 990, ministro Sebastião Reis Júnior, fez uma importante ponderação sobre o tema ao lembrar que no Brasil, atualmente, muitas informações sigilosas tem se tornado públicas.

O vazamento de informações fiscais de pessoas públicas para a imprensa, por exemplo, muitas vezes serve a propósitos — infinitamente menos nobres — do que o combate ao crime. Muitos desses vazamentos marcaram a história recente do país muito mais por suas implicações políticas do que pelas suas consequências penais.

Desnudar informações fiscais das pessoas em cadeia nacional de rádio, jornais, internet e televisão expõe esse cidadão a um outro tipo de julgamento, não balizado pela Constituição, mas sim por disputas narrativas de cunho político. Nesse terreno em que as paixões e interesses prevalecem diante do texto constitucional é onde ocorre a erosão da democracia.

Passados os anos de abusos praticados pela “lava jato”, é importante que todos os operadores do Direito sejam vigilantes e zelosos  de nossas garantias. A nobre motivação de usar os dados do Coaf para combater o crime não pode ser usada como desculpa para repetir os erros de um período ainda recente e que fez tanto mal ao país.

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