Opinião

É possível transferir ao herdeiro multa administrativa por infração ambiental?

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  • é sócio do escritório David & Athayde Advogados pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Multivix (ES) e consultor em Direito Administrativo Ambiental Minerário e Urbanístico.

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15 de dezembro de 2024, 11h19

A Constituição de 1988 elevou o meio ambiente ao patamar de direito fundamental (artigo 225), fazendo com que todo o ordenamento jurídico subjacente buscasse mecanismos de concretizar sua proteção em plenitude.

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desmatamento dano ambiental queimada

Nesse contexto, a responsabilidade ambiental, enquanto gênero, tem um caráter tríplice, especificamente nas esferas civil, administrativa e criminal, com o escopo de maximizar a proteção ambiental e, sobretudo, punir adequadamente aquele que eventualmente venha atentar contra o meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Mas, dentre todas, a proteção integral do meio ambiente se consubstancia diante da transmissibilidade do dever de recuperação do dano ambiental, dada sua natureza de obrigação propter rem.

O tema já foi objeto já foi objeto de abordagem neste artigo [1], onde se demonstrou, mutatis mutandis, como a obrigação de recuperação ambiental age coercitiva e solidariamente sobre o minerador e o proprietário da área degrada pela atividade de mineração.

E a natureza propter rem da obrigação de recuperação ambiental transcende à mineração, pois é um desdobramento lógico do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado de que a existência de passivos ambientais (decorrentes de condutas danosas ao meio ambiente) é incompatível com a ordem constitucional que propugna sua proteção integral.

Logo, é evidente que o proprietário da área objeto de degradação também possua o natural dever de recuperá-la, ainda que não tenha sido ele o responsável pelos danos.

A jurisprudência é pacífica sobre o tema, acaudilhada, em especial, pela Súmula n° 623 [2] do STJ e o Tema Repetitivo n° 1204 [3]  (julgado em 26/09/2023).

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Entretanto, sob a temática cujo debate ora se propõe, é preciso evidenciar uma dualidade (não necessariamente oposta) entre a responsabilidade ambiental administrativa e a obrigação de reparar o dano ambiental, notadamente quanto ao aspecto da penalidade pecuniária.

Decisão do STJ não responsabiliza herdeiro

Em recente decisão (julgado em 11/06/2024), o STJ decidiu, através do REsp n° 1823083-AL [4], que o herdeiro não poderia ser responsabilizado por multa administrativa decorrente de infração ambiental praticada no imóvel objeto da herança por ele recebida, distinguindo-a da responsabilidade ambiental pela reparação do dano.

Isto porque, enquanto a obrigação de reparar o dano ambiental está alicerçada na teoria do risco integral (responsabilidade objetiva), a responsabilização pela multa administrativa oriunda da infração ambiental se consubstancia na teoria da culpabilidade, o que atribui uma natureza subjetiva a responsabilidade ambiental administrativa.

Nesse aspecto, a dualidade que ora se observa precisa ser concebida a partir do direito administrativo sancionador, que impõe, dentre outras vertentes, a estrita observância ao preceito da intranscendência da pena (artigo 5°, XLV da Constituição), o qual tem como premissa impossibilitar que a pena ultrapasse a pessoa do agente efetivamente punido.

Assim, não pode ser transferido às expensas do herdeiro o ônus de arcar com uma penalidade de multa administrativa proveniente de infração ambiental praticada no imóvel objeto de herança, pois não trata de obrigação ambulatória.

Multa não poderia ser transferida sem trânsito em julgado

Porém, é preciso ponderar uma questão relevante que o STJ, podendo se aprofundar e contribuir com uma jurisprudência uniformizada (artigo 926 do CPC), foi lacônico em expor: existe alguma hipótese em que a multa ambiental administrativa poderia ser transmitida aos herdeiros quando da sucessão?

O questionamento deflui em razão da regra sucessória prevista no artigo 1.792 do Código Civil, dispondo que o herdeiro não poderá responder por encargos (eventuais débitos deixados pelo falecido, por exemplo) superiores às forças da herança (além do valor patrimonial a que corresponde todos os bens deixados pelo falecido).

Afinal, a multa ambiental administrativa tem natureza pecuniária e, por isso, pode integrar o acervo hereditário deixado pelo de cujus.

Pois bem. Muito embora não tenha sido claro neste aspecto, o acórdão proferido no REsp n° 1823083-AL permite a interpretação de que a citada multa administrativa não será transferida para o herdeiro somente quando o respectivo procedimento administrativo sancionador ainda não tenha transitado em julgado.

Essa intelecção é possível pelo fato de o acórdão invocar a Orientação Jurídica Normativa nº 18/2010/PFE/Ibama [5] (que define o procedimento a ser adotado diante do falecimento do autuado), já que, no caso fático em análise, o respectivo auto de infração foi lavrado após o falecimento do autor da herança.

Vejamos excerto do acórdão:

[…] Por fim, verifico que, no caso dos autos, o auto de infração foi lavrado e a respectiva multa administrativa aplicada após o falecimento do autor da herança (fls. 76/82), de modo que não se poderia admitir, sequer por hipótese, que o débito teria sido incorporado ao seu patrimônio jurídico e, assim, transmitido para a parte recorrida. […]

Regra sucessória favorece herdeiro

Nesse particular, o que se tem, em verdade, é que a transmissão para o herdeiro da multa ambiental administrativa que decorre de infração ambiental praticada em imóvel fruto da herança estará condicionada ao trânsito em julgado do procedimento administrativo sancionador.

Se o falecimento do autor da herança ocorrer antes do trânsito em julgado administrativo, seu herdeiro não poderá ser por ela responsabilizado. Porém, se o óbito ocorre após a coisa julgada administrativa, a multa estará constituída e incorporada ao patrimônio jurídico do falecido, não podendo o herdeiro dela se eximir, ressalvada a regra sucessória do artigo 1.792 do Código Civil.

Não obstante, persistirá em qualquer cenário a obrigação do herdeiro de reparar o dano ambiental, pois imanente ao imóvel objeto da herança (obrigação propter rem), nos moldes do que preconiza o STJ na Súmula n° 623 e Tema Repetitivo n° 1204.

Portanto, não é possível afirmar abstratamente que a multa ambiental administrativa não passará para o herdeiro sem considerar as peculiaridades do caso concreto, o que, inclusive, exige análise do procedimento administrativo sancionador que ensejou à autuação.

 


[1] A mineração em imóvel do poder público e os ODSs 9 e 11. Disponível em: Opinião: Mineração em imóvel público e os ODSs 9 e 11 (conjur.com.br)

[2] As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor.

[3] As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo possível exigi-las, à escolha do credor, do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores, ou de ambos, ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente.

[4] Disponível em: REsp n° 1823083-AL

[5] Disponível em: ORIENTAÇÃO JURÍDICA NORMATIVA Nº 02/09/PFE/IBAMA

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  • sócio do escritório David & Athayde Advogados, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Multivix, e realiza consultoria em Direito Administrativo, Ambiental, Minerário e Urbanístico.

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