Os 40 Anos da Lei de Execução Penal: desafios e perspectivas (parte 2)
14 de dezembro de 2024, 10h48
Continuação da parte 1
De acordo com os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem aproximadamente 1769 estabelecimentos penais no país. Destes, apenas 3,4% são excelentes, 22,7% são boas e 41,4% são regulares. Por outro lado, 9,5% são considerados ruins e 23% são péssimos, com problemas de superlotação.
Além disso, apenas 118.886 pessoas privadas de liberdade têm acesso a programas educacionais durante o cumprimento da pena [1]. A educação é um vetor essencial para a inclusão social, conforme previsto na Lei de Execução Penal. Este aspecto reflete a necessidade de repensar o sistema de justiça criminal e ampliar os esforços para garantir o acesso à educação como estratégia de longo prazo para mitigar a exclusão social e suas consequências no sistema prisional.
Enquanto isso, apenas 158.380 [2] pessoas estão envolvidas em atividades laborais, representando uma fração ínfima dos presos. Sem oportunidades de educação ou trabalho, as prisões se tornam locais de ócio, violência e adesão a organização criminosas.
Os dados apresentados revelam que o caminho a percorrer em direção à construção de processo de execução penal mais humanizado ainda é longo, mas é necessário continuar avançando para que o recolhimento do preso possa refletir os dispositivos fundamentais da Constituição, da Lei de Execução Penal e das cartas internacionais de direitos.
É necessário sempre recordar que, quando se determina a custódia de uma pessoa, ainda que em razão da prática de reprováveis atos criminosos, permanece a obrigação estatal de garantir aspectos mínimos para a manutenção de suas necessidades básicas, tais como alimentação, vestuário adequado, acomodação digna, possibilidade de ensino, acesso a oportunidades de profissionalização e direito a visita, dentre outros aspectos essenciais.
Avanços legislativos e institucionais: inovações e desafios na consolidação das práticas
Embora o sistema prisional brasileiro enfrente desafios estruturais profundos, como a superlotação crônica e condições indignas, é inegável que avanços legislativos e institucionais têm sinalizado um movimento progressivo em direção a alternativas ao encarceramento tradicional.
Um marco relevante nesse contexto é a introdução do monitoramento eletrônico pela Lei n. 12.258/2010, ampliado pela Lei n. 14.843/2024, que viabiliza a fiscalização de pessoas em regimes aberto, semiaberto ou em liberdade condicional.
Além disso, destaco o Sistema Eletrônico de Execução Unificada (Seeu), implementado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como um instrumento de governança inovador. Ao padronizar procedimentos e permitir o acompanhamento em tempo real dos processos de execução penal, o Seeu confere maior transparência e eficiência à gestão do sistema prisional. Trata-se de uma ferramenta essencial para enfrentar a histórica carência de dados confiáveis e melhorar a coordenação entre os diversos atores do sistema de justiça.
Entretanto, como em toda transformação, a eficácia dessas inovações depende de sua consolidação em práticas consistentes. O monitoramento eletrônico, por exemplo, ainda enfrenta resistências culturais e estruturais que limitam sua aplicação uniforme em todo o território nacional. Da mesma forma, a implementação do Seeu, embora significativa, requer maior integração com sistemas locais e a capacitação técnica dos profissionais que o operam.
Esses avanços são conquistas importantes, mas que clamam por continuidade, aprimoramento e compromisso. A verdadeira mudança não reside apenas no texto da lei ou no escopo das tecnologias, mas na capacidade de transformar essas iniciativas em uma realidade que respeite a dignidade humana e promova um processo de execução penal humanizado.
Jurisprudência do STF: diretrizes para a dignidade no sistema carcerário
À luz desse complexo cenário, o Supremo Tribunal Federal tem tomado decisões por meio de filtragem constitucional acerca dos dispositivos da LEP, exercendo função essencial na proteção dos direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade com fundamento em valores constitucionais que devem nortear o sistema prisional brasileiro.
Por meio de decisões emblemáticas, como a Súmula Vinculante 56, a Corte estabeleceu que a insuficiência de vagas nos estabelecimentos penais não pode justificar a submissão de condenados a regimes mais rigorosos do que o previsto na sentença. Tal orientação reflete o compromisso inarredável com a individualização da pena e com a dignidade da pessoa humana.
De forma ainda mais abrangente, o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional no julgamento da ADPF 347 realçou a necessidade de uma atuação judicial que transcenda a aplicação normativa. Essa decisão estruturante demanda ações concretas e coordenadas do Judiciário para garantir condições mínimas de dignidade no sistema prisional, versando sobre questões como superlotação, insalubridade e a privação de direitos fundamentais.
Não há dúvida de que o desafio maior reside na concretização efetiva das decisões judiciais no plano das administrações públicas, em especial no âmbito local. A ausência de articulação consistente entre o Judiciário, o Executivo e outras instituições compromete, não raras vezes, a implementação plena das diretrizes traçadas pela Corte.
Esse resultado, que transcende a esfera da competência exclusiva do Poder Judiciário, exige uma cooperação interinstitucional firme e coordenada, sustentada na capacitação dos agentes públicos e no compromisso contínuo com os princípios fundamentais que alicerçam nosso Estado democrático de Direito, sobretudo a dignidade da pessoa humana.
Sem essa base colaborativa resta distante o ideal de um sistema prisional que se erija como modelo constitucional e humanitário, voltado à justiça social e à garantia dos direitos fundamentais, o que, como temos visto, caminha de mãos dadas com o combate inteligente às organizações criminosas e com a construção de políticas efetivas de segurança pública.
Nesse contexto, torna-se imprescindível destacar a relevante atuação do Conselho Penitenciário, cuja função consultiva e fiscalizadora ocupa posição estratégica na salvaguarda dos direitos e deveres vinculados à execução penal. A pluralidade de sua composição, integrada por especialistas em ciências criminais, outros profissionais habilitados e representantes da comunidade (artigo 69 da LEP), confere-lhe a necessária legitimidade e autonomia para exercer suas atribuições, entre as quais se incluem inspeções, relatórios e assistência aos egressos, tal como disposto no artigo 70 da Lei de Execução Penal.
Dificuldades muitas enfrentadas pelos Conselhos Penitenciários, nos estados, quanto ao reconhecimento de seu papel e limitações orçamentárias, certamente têm relação com a dificuldade histórica de se compreender e trabalhar a execução das penas como uma política pública.
Merece elogios, nesse sentido, o Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (2024-2027) aprovado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que aborda esses pontos ao propor uma bem-vinda intensificação do diálogo interinstitucional, bem como a capacitação contínua de seus membros, associada à ampliação da transparência e da participação social, o que não apenas fortalece sua atuação, mas também legitima a fiscalização e promove maior controle social sobre o sistema prisional.
A implementação de tais medidas, em sintonia com as diretrizes do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária, sinaliza um avanço no combate às causas estruturais da criminalidade, rompendo com o paradigma punitivista e priorizando políticas públicas embasadas em evidências. O plano, ao enfatizar a prevenção social, propõe iniciativas voltadas à inclusão educacional, redução da evasão escolar e geração de oportunidades, reconhecendo que a reintegração social dos egressos é o eixo central de uma execução penal eficiente.
Nesse contexto, as iniciativas que tornem mais eficaz o retorno do egresso ao convívio em sociedade devem ser fomentadas, para que se alcance uma concepção mais humanitária do direito de execução penal, pautada nos fundamentos do Estado democrático de Direito, como a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa.
Não podemos olvidar que a função dos conselhos penitenciários transcende a mera fiscalização. Trata-se de uma missão constitucional de transformação social, cujo êxito está condicionado ao fortalecimento institucional e à adesão irrestrita aos valores que regem nosso pacto federativo e nossa Constituição. Este é o caminho que nos permitirá reconfigurar o sistema prisional brasileiro, superando seus males históricos e assegurando que ele sirva, antes de tudo, à promoção da dignidade humana.
Perspectivas
Ainda que desafiador, o quadro atual não é desprovido de respostas possíveis. As soluções, no entanto, demandam um esforço coletivo, planejado e ancorado em evidências concretas. É necessário que as ações sejam estruturantes e comprometidas com os princípios constitucionais que guiam nossa República.
O fortalecimento da governança do sistema prisional impõe-se como medida essencial. A implementação do Sistema Eletrônico de Execução Unificada (Seeu) é exemplo de um avanço estratégico que confere racionalidade e padronização à gestão das execuções penais. Essa ferramenta, resultado da colaboração entre o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Justiça, aprimora a eficiência e a transparência do sistema, promovendo um controle mais efetivo das ações penais.
Digno de nota é o Plano Pena Justa, elaborado a muitas mãos, com a coordenação do Ministério da Justiça e da Segurança Pública e do Conselho Nacional de Justiça, e que também busca enfrentar de maneira sistemática as falhas estruturais do sistema prisional brasileiro. O plano apresenta quatro eixos principais de atuação.
O primeiro eixo se dedica ao controle da entrada e das vagas no sistema prisional, focando na redução da superlotação e na adoção de alternativas à prisão. O segundo eixo versa sobre a qualidade da ambiência, dos serviços prestados e da estrutura prisional, com a proposta de aprimorar serviços básicos, segurança alimentar e condições de infraestrutura. O terceiro eixo trata dos processos de saída da prisão e reintegração social, priorizando políticas que promovam educação, trabalho e assistência aos egressos. O quarto eixo, por fim, visa prevenir a repetição do estado de coisas inconstitucional, fortalecendo políticas antirracismo e garantindo o cumprimento de precedentes normativos.
A homologação do plano, embora não seja uma solução definitiva, representará um marco que abre caminhos para a transformação do sistema prisional e o enfrentamento de violações históricas de direitos fundamentais.
Os conselhos penitenciários, nesse contexto, devem desempenhar um papel efetivo, na condição de relevante ator estratégico. É imperativo fortalecê-los, conferindo-lhes autonomia e condições estruturais adequadas para que possam atuar como instrumentos de fiscalização, proteção de direitos fundamentais e integração entre o Judiciário, o Executivo e a sociedade civil.
Outro aspecto importante é a ampliação de programas educacionais e de profissionalização nas unidades prisionais. A educação e o trabalho, mais do que direitos assegurados, representam instrumentos de ressignificação e reconstrução de vidas. A remição da pena pelo estudo e pelo trabalho, prevista na Lei de Execução Penal, não deve ser encarada apenas como benefício ao apenado, mas como uma política pública que materializa possibilidades de inclusão social e contribui para a redução da reincidência.
Assim, cabe a todos os envolvidos no sistema de justiça, e à sociedade como um todo, a responsabilidade de promover ações que enfrentem a realidade do cárcere com seriedade e compromisso, assegurando que a execução penal seja conduzida sob os auspícios da dignidade humana e do Estado democrático de Direito.
Conclusão
Como bem disse Nelson Mandela: “Diz-se que ninguém realmente conhece uma nação até que tenha ficado no interior de suas cadeias.” O sistema prisional, nessa perspectiva, reflete o grau de civilidade da sociedade que o sustenta. Infelizmente, a imagem projetada hoje pelo sistema carcerário brasileiro está distante dos ideais de justiça, igualdade e respeito aos direitos humanos que almejamos construir como nação.
A transformação desse cenário não pode ser delegada a um único poder ou instituição. Trata-se de um desafio coletivo que demanda esforços coordenados entre o Poder Judiciário, o Executivo, os Conselhos Penitenciários e a sociedade civil. Mais do que isso, exige coragem moral, sensibilidade institucional e o compromisso inabalável de cada um de nós com os valores que fundamentam a nossa Constituição.
O Plano Pena Justa, nesse contexto, surge como uma tentativa relevante de oferecer respostas aos graves problemas que assolam o sistema prisional. Contudo, é imprescindível reconhecer que sua execução enfrenta desafios históricos, como a insuficiência de recursos, a fragmentação das políticas públicas e a persistente resistência à mudança estrutural. Ainda assim, o Plano busca, com base em dados e no diálogo entre os atores do sistema de justiça, construir alternativas que, mesmo dentro de limitações concretas, possam pavimentar o caminho para um sistema mais justo e humano.
Os 40 anos da Lei de Execução Penal nos oferecem uma oportunidade ímpar de reflexão sobre o papel do sistema prisional em nossa sociedade.
Para além do velho conceito de “ressocialização”, ainda ancorado nas ideologias da defesa social, falemos em “reintegração social”, cientes de que o processo de transformação individual nunca é exclusivamente individual, pois depende das condições e meios de fortalecimento de relações sociais saudáveis e da provisão de meios sociais que viabilizem o autossuporte, no retorno à comunidade.
Em outras palavras, os objetivos principais seguem sendo aqueles da justiça criminal – sobretudo evitar a recidiva, além de executar decisão judicial que impôs uma pena prevista em lei – mas os meios e princípios passam a ser aqueles da justiça social.
Um sistema de justiça que se limita a punir sem oferecer caminhos para a reintegração social não cumpre sua finalidade e perpetua a exclusão social. Devemos questionar se queremos continuar sendo cúmplices de uma realidade marcada pela superlotação, pela falta de oportunidades e pela violação de direitos fundamentais.
Que sejamos capazes de juntos transformar essa realidade. Que o sistema prisional não seja mais um símbolo de degradação, mas de reconstrução e de esperança. Afinal, não se trata apenas de restaurar a dignidade de quem cumpre pena, mas de reafirmar a dignidade de toda uma sociedade que acredita na justiça, na humanidade e na possibilidade de recomeços.
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[1] Idem. P.52
[2] Ibidem. P.38.
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