Controle punitivo e estigmatização: sobre a Lei nº 15.035/2024
13 de dezembro de 2024, 17h23
No último dia 28 de novembro, entrou em vigor a Lei nº 15.035/2024, que alterou o Código Penal, especialmente o artigo 234-B, acrescendo os parágrafos 1º, 2º e 3º, e determinou, ainda, com a inclusão do artigo 2º-A na Lei nº 14.069/2020, a criação de um Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais.
Embora possa parecer simples do ponto de vista quantitativo, seu conteúdo merece uma análise crítica, sobretudo, daqueles comprometidos em evitar o avanço desmedido do poder punitivo.
Inicialmente, é importante mencionar que o legislador brasileiro, ao elaborar a Lei nº 15.037/2024, parece ter buscado inspiração na legislação norte-americana, em especial na lei federal conhecida como Lei de Megan, que foi criada após o caso comovente de Megan Kanka, uma criança vítima de abuso sexual e assassinato pelo vizinho.
Essa legislação, em resumo, tornou obrigatória a publicização de informações acerca de condenados por crimes sexuais. A alegação em torno da proteção da vítima e da necessidade de prevenção serviu como fundamento e apoio para a implementação de medidas de vigilância e controle ostensivo não só pelo Estado, mas, sobretudo, pela sociedade civil estadunidense [1].
Entretanto, alguns estudos e experiências práticas demonstraram que, apesar da hostilidade da vigilância, bem como da mitigação de direitos fundamentais, a Lei de Megan não produziu impactos significativos na redução dos crimes que se pretendeu coibir. Por outro lado, identificou-se que o rigoroso controle punitivo serviu para o aprofundamento da estigmatização ao transformar aqueles categorizados como agressores sexuais, em verdadeiros párias sociais [2].
Perigos no avanço do poder punitivo
Dito isso, sem a pretensão de esgotar o debate, faremos uma breve análise da Lei nº 15.034/2024, com o objetivo de colaborar para uma reflexão sobre os perigos associados ao avanço do poder punitivo estatal. Um olhar crítico sobre os impactos e implicações dessa legislação é indispensável, especialmente diante da falta de rigor probatório que caracteriza algumas condenações por crimes sexuais, frequentemente fundamentadas unicamente na palavra da vítima.
É fundamental colocar em perspectiva a interação entre a exploração do medo, a visibilidade da vítima com fins políticos, interesses econômicos e o direito penal; todos, no fim das contas, decisivos para justificar e legitimar a adoção de medidas penais mais rigorosas [3].
Essa nova lei penal permitirá o acesso público do nome completo, bem como do CPF de pessoas condenadas, em primeira instância, pelos crimes tipificados nos artigos 213 (estupro), 216-B (registro não autorizado da intimidade sexual), 217-A (estupro de vulnerável), 227 (mediação para servir a lascívia de outrem), 228 (favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual), 229 (manter casa de prostituição) e 230 (rufianismo — tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente dos seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça), todos previstos no Código Penal.
Apesar da ressalva feita na parte final do § 1º, não é incorreto sustentar que a intenção do legislador foi estabelecer, como regra geral, a publicização de informações sensíveis do réu, logo após sua condenação em primeira instância, conforme se verifica na justificação do projeto que resultou na lei nº 15.035/2024 [4].
Do ponto de vista jurídico, esse dispositivo legal não encontra respaldo no princípio constitucional da presunção de inocência. Enquanto regra político-democrática, a presunção de inocência confere a todo ser humano, independentemente da imputação penal, a proteção contra qualquer medida, estatal ou privada [5], que proporcione a antecipação da culpa para antes do trânsito em julgado, incluindo aquelas ações estigmatizantes decorrente da espetacularização do processo penal [6].
Com efeito, apesar dessa flagrante inconstitucionalidade, seria ingenuidade esperar que juízes e promotores, comprometidos com a lógica do direito penal máximo e da política de tolerância zero [7], assumissem a defesa dos direitos fundamentais do réu, especialmente em casos de delitos sexuais. Pelo contrário, considerando a atual conjuntura, permeada pelo populismo penal, não podemos desconsiderar a possibilidade de realização de projetos políticos dos atores do sistema de justiça criminal, em razão da projeção que crimes dessa natureza possam proporcionar.
Efeito extrapenal da sentença condenatória
Diante disso, mostra-se fundamental uma breve reflexão sobre a natureza jurídica desse § 1º que, ao contrário do que está sendo sustentado — (norma processual penal) —, a nosso sentir ele apresenta-se como um efeito extrapenal da sentença penal condenatória. Isso porque seus efeitos se projetam para além da esfera penal, com impactos preocupantes no direito constitucional à intimidade e privacidade, proporcionando o agravamento na situação jurídica do réu pós-condenação. Daí, por ser tratar de uma norma penal maléfica, não poderá retroagir, conforme disposto no artigo, da 5º, inciso XL CRFB/88.
Por outro ângulo, ainda que prevaleça a tese da natureza jurídica processual do § 1º, acreditamos que a produção do seu nefasto efeito restaria suspensa pela a observância do artigo 597 do Código de Processo Penal, cuja aplicação — mesmo sendo norma anterior — mostra-se imperativa diante do princípio do favor rei, assegurando a proteção do réu diante do poder punitivo estatal.
Em relação ao tipo penal previsto no artigo 216-B, por se tratar de um delito de menor potencial ofensivo, a nosso sentir, revela-se absolutamente desproporcional a aplicação de quaisquer das medidas draconianas trazidas pela Lei nº 15.035/2024.
A redação do § 2º, por sua vez, seria cômica se não fosse trágica. Leia-se: o Estado, após permitir o achovalhamento público do réu, o presenteia depois de sua participação nesse grotesco espetáculo de estigmatização e intensificação do castigo com o restabelecimento do sigilo de suas informações. Aqui, realmente, o legislador superou-se ao desconsiderar o princípio da dignidade da pessoa humana.
Outro ponto nebuloso que merece ser refletido, pela comunidade jurídica, refere-se ao disposto no § 3º, segundo o qual o condenado passará a ser monitorado por dispositivo eletrônico. Nesse ponto, a nosso ver, essa medida não pode ser equiparada àquela prevista no artigo 319, inciso IX, do Código de Processo Penal. Isso porque o legislador, ao delimitar seu uso ao réu condenado, afasta-se da finalidade de tutela do processo e, consequentemente, aproxima-se daquela assentada no artigo 146 da Lei de Execução Penal, cujos critérios legais e jurisprudenciais fixados devem ser devidamente observados, tendo em vista que a vigilância e o controle estatal indiscriminados não encontram respaldo no estado democrático de direito.
Cadastro de predadores sexuais e suas controvérsias
Por seu turno, ancorado na crença da prevenção geral, o legislador, projetando aumentar a segurança da sociedade, principalmente de mulheres e crianças, incluiu o artigo 2-A na Lei 14.069, para determinar a criação de um cadastro nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais. Pensamos que o dispositivo em questão merece, a princípio, alguns apontamentos em razão de suas controvérsias com o fim de minimizar, ainda que de modo comedido, seus impactos negativos.
Em primeiro lugar, para além da falta de critérios objetivos acerca do conceito de “pedófilos e predadores sexuais”, é importante alertar que, a partir desses termos, há uma patologização do fenômeno criminal, o que representa um resgate perigoso das danosas teorias do positivismo criminológico.
Ademais, restou consignado que esse novo cadastro será desenvolvido a partir dos dados constantes do Cadastro de Pessoas condenadas por Crime de Estupro (CP, artigos 213 e 217-A). Diante disso, não é possível uma interpretação ampla com o objetivo de incluir, sob pena de violação do princípio da legalidade, os outros delitos retratados no Título VI do Código Penal.
Outro ponto que merece reflexão refere-se à falta de mínimos critérios objetivos para estipular em que medida uma pessoa condenada por estupro poderia ser categorizada como um “predador sexual”. Basta uma única condenação, ainda que transitada em julgado? Em caso negativo, e se estivermos diante de uma única condenação, porém o fato seja altamente reprovável e de grande repercussão social? Será necessário um patamar mínimo de condenações? Ou ainda, basta um relatório elaborado por juristas e profissionais de área de saúde atuantes no sistema penal?
De imediato, já nos confrontamos com alguns questionamentos fundamentais sem respostas, o que demandará do Conselho Nacional de Justiça, com apoio da doutrina e especialistas em política criminal, o estabelecimento de parâmetros mais adequados a fim de mitigar os possíveis abusos das agências estatais e, principalmente, a exploração indevida dessas informações pela sociedade civil, ou seja, aquilo que Loic Wacquant, ao tratar da Lei de Megan, denominou como uma espécie de inquisição permanente e vingança aberta ao público [8].
Exploração financeira desse nicho de mercado de vigilância
Por fim, não se pode desconsiderar, tal como aconteceu nos Estados Unidos, a criação de um nicho específico de mercado voltado para a gestão de dados e vigilância de pessoas inseridas nesse cadastro de “predadores sexuais”. Observou-se naquele país, após a difusão da Lei de Megan pelos estados, um crescimento de empresas especializadas na exploração desse negócio, o que poderia perfeitamente ocorrer de modo similar no Brasil. Em que medida essa ampliação desmedida das técnicas de controle punitivo não representa uma oportunidade de lucro em detrimento dos direitos fundamentais?
Diante das considerações apresentadas, observamos que a Lei nº 15.035/2024 tem como objetivo proporcionar uma maior segurança para mulheres e crianças, na medida em que o Estado e a sociedade civil disponham de mecanismos para monitorar pessoas condenadas por determinados crimes sexuais.
Ocorre, todavia, que essa finalidade encontra-se permeada, conforme explicitado, por uma série de desafios, tais como: a ausência de critérios objetivos para categorização de “predadores sexuais”; uma realidade processual de rebaixamento dos critérios probatórios em razão da natureza do crime; a provável manipulação e utilização da lei com fins político-econômicos; um incremento considerável da estigmatização e da punição e a relativização de direito fundamentais essenciais ao Estado Democrático de Direito, os quais podem ser um terreno fértil para a expansão imoderada e perniciosa do poder punitivo.
[1] HEIL, Danielle Mariel. Lei de Megan nos EUA: pânico e consultas frenéticas, combate ativo e suficiente. Empório do Direito, 2017. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/lei-de-megan-nos-eua-panico-e-consultas-freneticas-combate-ativo-e-suficiente. Acesso em: 5 dez. 2024.
[2] Idem.
[3] SIMON, Jonathan; Silvestre, Giane. Governando através do crime. In FRANÇA, Leandro Ayres; CARLEN, Pat (Orgs.). Criminologias alternativas. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2017. p. 93-112.
[4] BRASIL. Projeto de Lei nº 369/2022. Estabelece medidas protetivas relacionadas à criação do Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais e outras providências. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9835833&ts=1733867846558&disposition=inline. Acesso em: 10 dez. 2024.
[5] Leia-se: Diante da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, não é cabível o acesso do público a essas informações, antes do trânsito em julgado, a fim de evitar o uso inadequado delas nas relações privadas.
[6] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2024. p. 78-79.
[7] AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CIFALLI, Ana Claudia. Política criminal e encarceramento no Brasil nos governos Lula e Dilma: Elementos para um balanço de uma experiência de governo pós-neoliberal. Civitas, Porto Alegre, v. 15, n.1, p. 105-127, 2015.
[8] WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 123. Apud HEIL, Danielle Mariel. Lei de Megan nos EUA: pânico e consultas frenéticas, combate ativo e suficiente. Empório do Direito, 2017. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/lei-de-megan-nos-eua-panico-e-consultas-freneticas-combate-ativo-e-suficiente. Acesso em: 5 dez. 2024.
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