Opinião

Câmeras corporais: para entender o caso de SP

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13 de dezembro de 2024, 21h36

Recentemente, o estado de São Paulo foi compelido pelo Supremo Tribunal Federal a implementar o uso de câmeras corporais pelos agentes de segurança pública em suas atividades operacionais, cabendo destaque que existia previsão de diretrizes de alocação de câmeras, tal qual existente na Diretriz nº PM3-001/02/22, as quais não foram criadas pelo STF.

No voto do ministro Luís Roberto Barroso, ficou a seguinte mensagem registrada: “O uso de câmeras corporais por policiais, implementado como uma resposta aos desafios da segurança pública, não se resume a uma ferramenta tecnológica, mas configura um marco civilizatório“.

Essa determinação marca um ponto crucial no fortalecimento da transparência e da proteção dos direitos fundamentais no Brasil. Embora o debate sobre o tema seja relativamente recente no país, experiências internacionais, como a do Departamento de Polícia de Nova York (NYPD), ilustram o impacto positivo dessa tecnologia na segurança pública e na relação entre a polícia e a sociedade.

O programa de câmeras corporais do NYPD, iniciado em 2017 [1] e hoje o maior dos Estados Unidos, já equipou mais de 24 mil policiais com dispositivos de gravação, em um esforço para registrar a atuação policial, aumentar a confiança pública e melhorar a accountability institucional. O caso norte-americano serve de referência e reforça a urgência da implementação adequada no Brasil — e não somente em São Paulo —, especialmente diante da resistência de alguns setores e dos desafios logísticos.

Fragilidades no uso de câmera corporal

Embora a introdução de câmeras corporais seja amplamente defendida como uma ferramenta para aumentar a transparência e a responsabilidade no policiamento, a investigação recente da BBC [2] evidencia fragilidades significativas nessa política pública. Relatos de mau uso, incluindo o desligamento de câmeras durante o uso da força, exclusão de gravações e compartilhamento indevido de vídeos em redes sociais, revelam que a mera adoção dessa tecnologia não é suficiente para garantir sua eficácia ou credibilidade.

Esses casos destacam um problema estrutural: a ausência de mecanismos robustos de controle e responsabilização. A promessa inicial das câmeras corporais — proteger vítimas e policiais, melhorar a qualidade das provas e fortalecer a confiança pública — torna-se inócua quando práticas inadequadas e abusivas persistem. Além disso, o alto investimento financeiro, que superou milhões em uma década no Reino Unido, é colocado em xeque quando os resultados esperados não são alcançados.

Spacca

O contraponto aqui é claro: enquanto o uso de câmeras corporais é uma política pública de grande potencial, sua implementação sem diretrizes rígidas, supervisão independente e penalidades severas para abusos pode comprometer sua legitimidade.

Decisão importante do STF

A decisão do STF de obrigar o Estado de São Paulo a adotar essa tecnologia é um passo importante no Brasil, mas o sucesso dessa política dependerá de um arcabouço normativo sólido, da formação ética dos agentes e de mecanismos que assegurem que as câmeras sejam utilizadas de forma transparente e responsável. A experiência internacional, como a da Inglaterra, serve como um alerta para que o Brasil não repita os mesmos erros. Afinal, a verdadeira eficácia de uma política pública não está apenas na adoção de tecnologias inovadoras, mas na criação de um ambiente institucional que promova a integridade e a confiança na sua aplicação.

Importante compreender que as câmeras corporais, apesar de enfrentarem desafios quanto ao uso indevido, também desempenham um papel crucial na proteção dos próprios policiais, especialmente em situações de mal-entendidos ou acusações infundadas. Um exemplo emblemático ocorreu em Detroit, em agosto de 2017 [3], quando um motorista acusou um policial de ter roubado US$ 800 do porta-luvas durante uma abordagem de trânsito.

O policial, que mantinha sua câmera corporal ligada durante toda a ocorrência, teve sua integridade confirmada quando o Departamento de Polícia apresentou as imagens ao acusador. O vídeo mostrava claramente que o oficial não havia tocado no dinheiro, levando o motorista a retirar a acusação. Após assistir à gravação, o motorista reconsiderou sua alegação, admitindo que a quantia poderia ter sido levada por outra pessoa que esteve em seu carro anteriormente.

Este caso ilustra a importância das câmeras corporais como um recurso que vai além da fiscalização da conduta policial: elas servem como um registro imparcial que protege os agentes contra acusações infundadas, reforçando sua credibilidade e permitindo uma análise objetiva dos fatos. Em verdade, todo o mecanismo que ajuda a somar na transparência e credibilidade do Estado deve ser recebido com bons olhos. Por certo, a cultura da segurança pública precisará sofrer fortes mudanças no “como se combate o crime” e mudar a maneira de formação de suas forças ostensivas e investigativas.

Benefícios das câmeras aos policiais

Portanto, embora as investigações sobre abusos sejam fundamentais para aperfeiçoar essa política pública, é igualmente crucial destacar os benefícios que as câmeras oferecem aos policiais. Esses dispositivos podem resguardar a reputação dos agentes, evitar litígios desnecessários e fortalecer a confiança da população ao garantir que todas as partes envolvidas em interações policiais sejam tratadas com justiça e transparência. O desafio, então, é implementar um sistema que maximize os benefícios das câmeras corporais enquanto minimiza os riscos de mau uso, garantindo que sirvam como um verdadeiro instrumento de justiça e proteção para todos.

O STF, na Suspensão de Liminar 1.696 (São Paulo), apresenta o caso em que o estado de São Paulo, então, comprometeu-se a adotar as medidas necessárias para efetivar o uso de câmeras, definindo cronograma para aquisição e instalação dos novos dispositivos e, assim, explicou o Ministro Barroso: “[…] deixei de expedir ordem judicial determinando que o Estado fizesse aquilo que já havia se comprometido a fazer”.

câmera polícia militar de são paulo

Então, a questão posta ao STF é se o estado de São Paulo atendeu os compromissos assumidos para a implementação de novo programa de uso de câmeras corporais nas ações policiais. Em suma, a decisão entende que “[…] fatos novos relatados apontam para o não cumprimento satisfatório dos compromissos assumidos pelo Estado de São Paulo quanto à efetivação da política pública de uso de câmeras corporais pela polícia, sob três aspectos” e, assim, “[…]representa uma involução na proteção de direitos fundamentais e caracteriza risco à ordem e segurança públicas apto a justificar a concessão da medida de contracautela, nos termos do art. 4º da Lei nº 8.437/1992″. Consta no dispositivo da decisão:

“Pedido de reapreciação acolhido, para determinar ao Estado de São Paulo: (i) o uso obrigatório de câmeras por policiais militares envolvidos em operações policiais, com a definição da ordem de alocação prioritária dos demais dispositivos a partir de uma análise de risco de letalidade policial; (ii) a divulgação, no portal da SSP/SP, das informações referentes ao Programa Muralha Paulista, em especial sobre quais os batalhões e tropas estão equipados com câmeras corporais; (iii) a recomposição do número total de câmeras para o patamar de, no mínimo, 10.125 equipamentos contratados e em operação; (iv) a manutenção do modelo de câmeras de gravação ininterrupta até que seja comprovada, com base em evidências, a viabilidade técnica e a efetividade operacional dos métodos de acionamento das novas câmeras; e (v) que sejam prestadas informações sobre a regulamentação dos processos disciplinares por descumprimento do procedimento operacional do uso de câmeras corporais, bem como divulgados os respectivos dados estatísticos. Por fim, para monitorar o cumprimento desta decisão, determino a apresentação, nestes autos, de relatório mensal detalhando o andamento das medidas.”

A questão maior, talvez, seja compreender a existência de uma decisão judicial que intervém em políticas de segurança do estado de São Paulo sob a perspectiva que a ausência de uma câmera de corpo violaria direitos fundamentais, como o direito à vida, à integridade física ou à dignidade. No caso da decisão do STF que determinou a adoção de câmeras corporais pelo estado de São Paulo, o Judiciário agiu sob a justificativa de garantir maior transparência e accountability nas ações policiais, protegendo tanto os cidadãos quanto os próprios agentes. O ministro aborda o tema da seguinte maneira:

“Diante da ausência de demonstração da viabilidade técnica e operacional dos novos dispositivos e do significativo aumento da letalidade policial em 2024, é indispensável manter o modelo atual de gravação ininterrupta, sob pena de violação à vedação constitucional ao retrocesso e descumprimento do dever estatal de proteção de direitos fundamentais, em especial o direito à vida.”

Conclusão

Não há dúvida que tanto a intenção da decisão de proteção de direitos fundamentais quanto o ponto de partida de existência prévia da assunção da política pública pelo próprio estado de São Paulo colocam a decisão dentro de uma zona cinza, mas alinda delimitada. A decisão é acertada. Diferente seria estender seus efeitos para outro ou outros estados brasileiros sem que houvesse a iniciativa pública do legislativo ou do executivo para que, o judiciário passasse a exercer controle.

Contudo, mesmo em contextos onde políticas públicas já estão em vigor, decisões judiciais utilizadas para aprimorar sua execução, corrigir desvios ou garantir que elas sejam aplicadas de forma equitativa trazem para o debate qual seria o limite que divide a atuação dos três poderes.

No caso das câmeras corporais, a determinação judicial reforça a necessidade de regulamentação clara e fiscalização rigorosa, promovendo uma aplicação mais justa e eficiente da política previamente assumida. No entanto, a influência judicial sobre políticas públicas deve ser exercida com cautela, pois eventual ativismo judicial excessivo pode gerar tensões entre os poderes, enfraquecer a legitimidade das decisões políticas e até mesmo comprometer a eficácia das políticas públicas se os recursos ou a capacidade administrativa para implementá-las não forem devidamente considerados.

 


[1] https://www.nyc.gov/site/nypd/about/about-nypd/equipment-tech/body-worn-cameras.page

[2] https://www.bbc.com/news/uk-66809642

[3] https://intime.com/industries/police/five-examples-of-body-cameras-exonerating-police-officers/

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