Opinião

Não membros da UE devem ser cautelosos quanto à diretiva sobre dever de diligência em sustentabilidade

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  • é doutor em Direito Internacional (Escola de Direito de Sorbonne França) professor titular (Programa de Mestrado e Doutorado em Direito e Políticas Públicas Centro Universitário de Brasília Brasil) pesquisador colaborador (Departamento dos Estudos Latino-Americanos Universidade de Brasília) pesquisador associado (Observatório das Migrações Internacionais) professor visitante (Programa de Mestrado em Direito Internacional da Universidade da Sabana Colômbia) consultor em Direito Internacional árbitro (Camesc/Alam) membro do Grupo de Especialistas (PoE) do Processo Regular das Nações Unidas para o Relatório Global e Avaliação do Estado do Ambiente Marinho incluindo Aspectos Socioeconômicos.

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11 de dezembro de 2024, 9h21

Em julho de 2024, entrou em vigor a Diretiva 2024/1760 da União Europeia sobre o dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade (CSDDD). Após extensa deliberação sobre seu escopo, a versão final da diretiva restringiu sua aplicação a empresas de responsabilidade limitada constituídas na União Europeia (UE) que empreguem mais de 1.000 pessoas e gerem um volume de negócios líquido mundial de pelo menos 450 milhões de euros, bem como a empresas não pertencentes à UE que alcancem um faturamento líquido de 450 milhões de euros dentro da UE.

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Essas empresas são obrigadas a identificar e mitigar os riscos e impactos negativos sobre os direitos humanos e o meio ambiente decorrentes de suas próprias operações, bem como das de suas subsidiárias e dos parceiros comerciais ao longo de suas cadeias de valor. Para tanto, devem implementar um plano de dever de diligência (due diligence).

Escopo da CSDDD

A diretiva impõe um dever de diligência a essas empresas para monitorar suas cadeias de valor globais. Será estabelecida uma Autoridade Nacional de Supervisão em cada Estado-membro da U.E. para supervisionar o cumprimento da Diretiva. Esta autoridade terá competência para realizar investigações e impor sanções às empresas que não cumpram as obrigações estabelecidas. Após a transposição para a legislação nacional pelos estados-membros, a diretiva permite que as empresas matrizes sejam responsabilizadas nos tribunais de seus países de origem por falhas em devida diligência que resultem em danos ambientais ou violações dos direitos humanos dentro de suas cadeias de valor. Consequentemente, as empresas matrizes podem ser responsabilizadas pelos danos causados por seus parceiros afiliados que operam em países terceiros.

Alcance extraterritorial da diretiva

A Diretiva CSDD desafia o princípio tradicional da personalidade jurídica separada e contorna a doutrina frequentemente invocada do forum non conveniens em casos que envolvem a responsabilidade das empresas por danos transnacionais aos direitos humanos ou ao meio ambiente decorrentes de atividades empresariais. Do ponto de vista daqueles afetados pelos danos dentro das cadeias de valor, a diretiva representa uma inovação significativa. No entanto, ela também carrega ramificações legais e políticas negativas para os países não membros da UE, especialmente para os países do Sul Global. Essas ramificações decorrem principalmente do alcance extraterritorial da diretiva, que impõe obrigações de conformidade às empresas, independentemente de sua localização geográfica.

Concentração jurisdicional nas mãos dos juízes nacionais dos estados da UE

O escopo extraterritorial da Diretiva CSDD pode prejudicar a autoridade jurisdicional dos tribunais nacionais dos estados não membros da UE onde empresas europeias estejam envolvidas em danos ambientais ou violações de direitos humanos. Essa situação ocorre porque a empresa matriz de um grupo multinacional pode ser processada perante os tribunais de estados-membros da UE, independentemente de onde o dano tenha ocorrido. Em muitos casos, processar a empresa matriz, em vez das subsidiárias locais ou dos parceiros comerciais, é uma decisão estratégica, pois a matriz geralmente possui mais recursos para atender às eventuais reparações.

Spacca

Por conseguinte, os potenciais demandantes, incluindo as vítimas, os seus representantes legais e, especialmente, as organizações não-governamentais, podem ser inclinados a direcionar suas ações contra a empresa matriz para garantir a compensação. Essa tendência pode levar a uma concentração de litígios nos tribunais dos estados-membros da UE, marginalizando assim a jurisdição dos tribunais nos países onde os danos ao meio ambiente ou às pessoas ocorreram originalmente.

Tal mudança de jurisdição levanta preocupações porque o quadro legal estabelecido pela Diretiva CSDD favorece desproporcionalmente os tribunais dos estados da UE, relegando os tribunais domésticos dos estados não membros a um papel secundário ou inexistente na resolução desses casos. Esse fenômeno não remete à lógica inerente  à tradução do direito internacional privado, pois parece alinhar-se menos com o objetivo de harmonização jurídica entre jurisdições da U.E. e aqueles fora dela, mais com uma forma de imperialismo jurídico.

Estabelecimento de um padrão globalizado de dever de diligência corporativa

A Diretiva CSDD estabelece um padrão europeu de dever de diligência, que, devido ao seu alcance extraterritorial, terá um impacto global. Esse padrão será aplicado às cadeias de valor globais das empresas europeias, independentemente da localização geográfica de suas operações. De acordo com a diretiva, essas empresas podem negociar garantias contratuais com seus parceiros comerciais diretos e indiretos, exigindo que eles cumpram os planos de diligência das empresas de acordo com as disposições da diretiva.

Caso esses parceiros se recusem a fornecer essas garantias, as empresas europeias poderão romper seus relacionamentos comerciais com eles. Uma ilustração notável de um fenômeno semelhante pode ser encontrada na recente controvérsia envolvendo o grupo varejista francês Carrefour, que declarou publicamente sua intenção de deixar de comprar carne de fornecedores brasileiros e de outros países do Mercosul, em resposta a preocupações sobre a sustentabilidade e os direitos humanos em suas cadeias de valor.

Superioridade reconhecida da Diretiva CSDD

O artigo 29(7) da Diretiva CSDD dispõe que “[o]s estados-membros asseguram que as disposições de direito nacional que transpõem o presente artigo sejam de aplicação imperativa nos casos em que a lei aplicável aos pedidos para o efeito não é a lei nacional de um estado-membro”. Esta disposição significa que, em caso de conflito de leis entre a legislação nacional de um estado-membro que implementa a diretiva e a legislação de um terceiro país, a legislação nacional do Estado-membro prevalecerá, mesmo que a legislação estrangeira seja mais favorável ou contenha padrões mais elevados de dever de diligência corporativa.

Nesse sentido, a diretiva afirma sua primazia sobre outros marcos legais, posicionando-se não apenas como o padrão europeu, mas também como um padrão global de dever de diligência. A Comissão Europeia qualificou a diretiva como um passo positivo para apoiar as práticas sustentáveis nos países em desenvolvimento; no entanto, esses países sequer foram consultados durante o processo de elaboração. Essa postura pode ser percebida como sendo condescendente. Ela impõe padrões europeus a jurisdições não europeias, sem considerar seus contextos legais, sociais ou econômicos. Além disso, a UE não tem nenhuma legitimidade para determinar o que é “bom” para os estados não membros.

Efeitos extraterritoriais da diretiva devem ser contidos pelos estados não membros da UE

À luz desses desenvolvimentos, apesar das importantes contribuições e aspectos inovadores incontestáveis da diretiva, ela pode ser vista como uma forma de imperialismo jurídico indelével. O alcance extraterritorial da diretiva representa um desafio significativo para os demais estados, especialmente para os países do Sul Global.

Em novembro de 2023, o Brasil adotou o Decreto 11.772, que estabelece uma Política Nacional de Direitos Humanos e Empresas. Consultas interministeriais e oitivas com a sociedade civil estão sendo realizados para moldar essa política. No entanto, os efeitos extraterritoriais da Diretiva CSDD ainda não foram totalmente considerados pelas autoridades brasileiras, levantando preocupações sobre o potencial conflito entre a política nacional em construção e o marco europeu.

Autores

  • é doutor em Direito Internacional (Escola de Direito de Sorbonne, França), professor titular (Programa de Mestrado e Doutorado em Direito e Políticas Públicas, Centro Universitário de Brasília, Brasil), pesquisador colaborador (Departamento dos Estudos Latino-Americanos, Universidade de Brasília), pesquisador associado (Observatório das Migrações Internacionais), professor visitante (Programa de Mestrado em Direito Internacional da Universidade da Sabana, Colômbia), consultor em Direito Internacional, árbitro (Camesc/Alam), membro do Grupo de Especialistas (PoE) do Processo Regular das Nações Unidas para o Relatório Global e Avaliação do Estado do Ambiente Marinho, incluindo Aspectos Socioeconômicos.

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