Opinião

A (i)legalidade dos pedidos informais de dados do Coaf

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  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

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10 de dezembro de 2024, 19h31

Conforme Leite e Teixeira [1], atualmente, sabe-se que o processo penal moderno se traduz em delicada gestão do poder informacional do Estado. É tarefa do legislador, mas também da doutrina e da jurisprudência, determinar com precisão como se dá o ingresso de informações obtidas por outros órgãos no seio de uma investigação criminal.

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coaf

No centro do debate jurisprudencial sobre a (i)legalidade dos relatórios de inteligência financeira (RIF) feitos pelo Coaf sob encomenda, tem-se a exigência ou não de ordem judicial prévia para que este compartilhamento possa ocorrer. A questão, contudo, é mais ampla e apresenta outras dimensões pouco lembradas no debate atual, mas que podem iluminar o problema. No fundo, trata-se de impor limites ao poder informacional do Estado.

Mais especificamente, a questão é sensível porque envolve a troca de informações entre um órgão de inteligência [2], que, em sua premonitória missão de antecipação preventiva de perigos, tem amplo acesso a dados (sigilosos ou não) do cidadão (sem autorização judicial prévia), e autoridades com prerrogativas operativas e repressivas voltadas ao equacionamento do passado, que, como deve ser em um Estado de direito, têm acesso apenas limitado às informações privadas dos indivíduos, em muitos casos dependendo de prévia autorização judicial.

Conforme Vladimir Aras e Ilana Luz (2023) [3], o Conselho de Controle de Atividades Financeiras é a unidade de inteligência financeira brasileira. Integra o subsistema de prevenção à lavagem de ativos e é o órgão de interlocução entre este segmento e o subsistema de repressão. O Coaf também integra o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin).

Trata-se, assim, de órgão administrativo responsável por “monitorar informações, sistematizar dados e gerar relatórios precisos sobre práticas de mascaramento de capitais, manejado por equipes qualificadas para gestão do conhecimento e para o desenvolvimento de novas estratégias de localização e averiguação de atos de lavagem”. (BADARÓ, BOTTINI, 2019, p. 34) [4].

Não compete ao Coaf iniciar investigações

Em virtude de sua natureza administrativa, portanto, não compete ao Coaf promover medidas cautelares como a quebra de sigilo, tampouco iniciar investigações, uma vez que sua competência se situa na esfera da gestão e análise de dados, que podem ser compartilhados com os órgãos competentes para dar seguimento à persecução penal. O Conselho exerce, exclusivamente, atividade de inteligência financeira, que não se confunde com atividade investigativa, pois esta é exercida pelos órgãos competentes para promover a persecução penal.

Spacca

Acerca desta diferenciação de atividades, ressalta-se a importância de haver uma separação entre órgãos de inteligência financeira e investigação criminal. Afinal, como os órgãos de inteligência têm acesso privilegiado a um amplo conjunto de dados pessoais dos cidadãos, caso viessem a desempenhar um papel de auxílio aos órgãos de repressão criminal, poderiam facilmente violar os limites constitucionais impostos à atividade persecutória do Estado decorrentes da proteção da vida privada e do devido processo legal, sem que isso pudesse se sujeitar ao controle do Poder Judiciário.

Neste sentido, é não apenas adequado e recomendado, mas necessário que a atividade de inteligência não se misture com atividades investigativas, a fim de assegurar uma proteção maior aos direitos fundamentais dos indivíduos, pois, caso houvesse uma junção irrestrita entre os órgãos mencionados, os órgãos encarregados pela persecução penal teriam amplo e irrestrito acesso à base de dados coletados pelos órgãos de inteligência financeira, sem, contudo, haver a possibilidade de controle desse acesso por parte do Poder Judiciário.

As finalidades legais do Coaf estão previstas na própria Lei 9.613/1998, na Lei 13.810/2019 (que trata do cumprimento de resoluções dos comitês de sanções do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre financiamento do terrorismo), na Lei 13.974/2020 (Lei do Coaf) e na Lei Complementar 105/2001 (Lei do Sigilo Bancário).

Informações para políticas de prevenção e fiscalização

As tarefas atribuídas ao Coaf, portanto, parecem misturar elementos de inteligência, de segurança pública e de persecução penal. O órgão coleta e analisa informações necessárias para formular políticas de prevenção de lavagem (inteligência), fiscaliza o cumprimento das medidas de controle e prevenção da lavagem pelas pessoas obrigadas para, assim, prevenir perigos contra bens jurídicos (segurança pública) e, finalmente, volta-se para o passado, ao apurar operações suspeitas de lavagem e comunicá-las aos órgãos de persecução penal (persecução penal). Esta última faceta poderá ser ainda mais acentuada se se admitir a elaboração de RIFs a pedido.

Esse acúmulo de atribuições com finalidades diversas, que veicula uma coleta de dados de amplitude singular em nosso sistema jurídico, torna difícil alocar o órgão sob este ou aquele pilar e, consequentemente, pode gerar riscos para a proteção de dados pessoais, especialmente sob o ponto de vista da separação informacional.

Em ato contínuo, o artigo 2º da Lei nº 13.974, de 2020, dispõe que o Coaf possui autonomia técnica e operacional e atuação em todo o território nacional. O Conselho é constituído no modelo administrativo. Em outras palavras, a UIF realiza trabalhos de inteligência financeira, não sendo de sua competência, por exemplo, realizar investigações, bloquear valores, deter pessoas, realizar interrogatórios e outras atividades dessa natureza.

Os relatórios de inteligência financeira elaborados pelo Coaf são destinados às autoridades competentes para subsidiar eventuais procedimentos investigativos. As informações que integram um RIF são eminentemente de inteligência financeira e protegidas por sigilo legal. O dever de preservação desse sigilo é transferido às autoridades destinatárias.

Tais informações somente são difundidas às autoridades competentes quando verificados fundados indícios de crimes de lavagem de dinheiro, de financiamento do terrorismo ou de outros ilícitos, conforme estabelecido no artigo 15 da Lei nº 9.613, de 1998.

Combate à lavagem de dinheiro

Note-se, portanto, que em grande parte, a atuação do Coaf tem como fim o combate à lavagem de dinheiro. Neste sentido, tem-se, como premissa inicial, que a atuação se encontra vinculada à obrigatoriedade de que sejam demonstrados indícios mínimos de prática de lavagem de capitais, ou ainda, excepcionalmente, de financiamento do terrorismo, sob risco de desvirtuamento de sua atuação. Outra importante premissa é que as informações produzidas pelo RIF não são provas de ilícitos, constituindo tão somente indícios que devem ser adequadamente investigados pelas autoridades competentes.

Ato contínuo, o artigo 15 da Lei de Lavagem de Dinheiro, por sua vez, disciplina o intercâmbio de informações pelo Coaf, por meio de difusões espontâneas ou por provocação. O modo de fazê-lo é pelo Sistema Eletrônico de Intercâmbio do Coaf (SEI-C), que funciona como um portal para uso pelas autoridades de persecução e de Justiça Criminal, para auxiliar na investigação de crimes de lavagem de dinheiro e suas infrações antecedentes. Outras autoridades, como a Receita Federal e o Banco Central, podem cadastrar-se no SEI-C e obter acesso a inteligência produzida pelo Coaf, uma vez que o artigo 15 da Lei 9.613/1998 menciona a difusão de informações sobre qualquer ilícito, incluindo, portanto, as infrações administrativas.

Este dispositivo também regula o dever do Coaf de colaborar com os órgãos de persecução criminal, sobretudo o Ministério Público e a Polícia Judiciária, para a repressão aos crimes de lavagem de dinheiro e às infrações penais. Isto ocorrerá sempre que a análise realizada por sistemas de inteligência artificial e por analistas humanos concluir pela existência de infração penal ou seus indícios.

É neste dispositivo que se funda o dever do Coaf de enviar relatórios de inteligência financeira (RIFs) aos órgãos de persecução criminal da União, dos estados ou do Distrito Federal, na interconexão entre os subsistemas de prevenção e repressão. Esse arranjo faz do Coaf o órgão central da política brasileira de PLD e FTP [5].

Sobre esse ponto, no julgamento do RE 1.055.941/SP, o STF decidiu que “é constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil — em que se define o lançamento do tributo — com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional” desde que este compartilhamento seja feito “unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios” [6].

Constitucionalidade do compartilhamento de RIFs

A decisão que entendeu pela constitucionalidade do compartilhamento de relatórios de inteligência apoiou-se nas seguintes premissas: (a) não haveria violação do sigilo financeiro, pois o RIF, embora tenha o detalhamento de certas movimentações e operações consideradas suspeitas, não inclui o extrato bancário do cidadão; e (b) o Coaf tem autonomia para encaminhar, ou não, relatórios de inteligência, não sendo obrigado a enviar ao MP caso não entenda cabível.

Outro ponto que ficou decidido no julgamento do RE 1.055.941/SP se refere à impossibilidade de elaboração de relatórios de inteligência financeira por encomenda, ex officio. Em outras palavras, “contra cidadãos que não estejam sob investigação criminal de qualquer natureza ou em relação aos quais não haja alerta já emitido de ofício pela unidade de inteligência, com fundamento na análise de informações contidas na sua base de dados” [7].

Cabe mencionarmos que o direito à investigação, como qualquer direito, não é absoluto, e seu exercício deve se dar dentro dos limites legais, sob pena de violar outros direitos e garantias igualmente assegurados. Neste sentido, tem-se que o sigilo financeiro, que pode ser compreendido como sigilo fiscal e bancário, fundamenta-se, precipuamente, na garantia constitucional da preservação da intimidade (artigo 5º, X e XII, da CF), que manifesta verdadeiro direito da personalidade, notadamente, porque se traduz em direito fundamental à inviolabilidade de informações inerentes à pessoa nas suas relações com o Sistema Financeiro Nacional.

Posteriormente, para afastar quaisquer dúvidas acerca da existência ou não de uma proteção constitucional aos dados pessoais, em fevereiro de 2022, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 115, de 10 de fevereiro de 2022, que incluiu o inciso LXXXIX no rol do artigo 5º da Constituição, que prevê que “é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”.

Proteção de dados pessoais é direito fundamental

É possível afirmar, portanto, que o direito à proteção de dados pessoais se trata de um direito fundamental expressamente previsto no texto constitucional vigente. Conforme Estellita (2021, p.07)[8], essas ideias se aplicarão à proteção de dados pessoais, seja ela entendida como um (novo) direito fundamental, seja como uma nova forma de proteção dos direitos gerais de personalidade. Como direito fundamental, também está sujeito a intervenções (restrições), mas que devem estar previstas em lei e serem proporcionais.

Continuando, Estelitta (2021, p.23) [9] aduz que os dois diplomas legais que regulam a atividade do Coaf não parecem lhe impor um dever de compartilhar dados pessoais a pedido de autoridades públicas. Com relação a eventuais pedidos  de  representantes do Ministério Público, muito embora seja sua “função  institucional” “promover,  privativamente, a ação penal pública, na forma da lei” e “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais” (artigo 129, I e VIII, da Constituição), dessas  atribuições  não  derivam  autorizações  para  intervenção  em  direitos fundamentais, as quais, têm de ser autorizadas por lei (artigo 5º, II, da Constituição).

O Ministério Público possuiria, assim, competência para fazer essas requisições, mas o atendimento que implique tratamento de dados pessoais só pode ser efetuado se houver autorização legal proporcional. Um entendimento que autorizasse aos membros do MP a obtenção direta, junto às instituições financeiras ou ao Coaf, de informações cobertas por sigilo financeiro permitiria que, pela porta dos fundos (back door), fosse corroído o regime constitucional de proteção de direitos fundamentais.

Neste sentido, a legitimidade do compartilhamento dependerá da utilização de comunicações formais, a fim de possibilitar a apuração e correção de eventuais desvios, permitindo, assim, um controle judicial sobre os elementos extraídos do relatório de inteligência financeira do Coaf.

Isso evitaria, conforme já mencionado, a fusão informacional entre os dois órgãos, pois, por essa via, o Ministério Público obteria acesso a um imenso conjunto de dados que o legislador outorgou apenas ao Coaf. Esses mesmos limites valem, logicamente, para as autoridades policiais.

RIFs não seriam elaboradas sem autorização judicial

Indo ao encontro deste entendimento, tem-se a decisão colegiada da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que, no Recurso em Habeas Corpus nº 147.707, havia concedido ordem de HC para reconhecer que o Ministério Público e a autoridade policial não podem encomendar a elaboração de RIFs ao Coaf sem autorização judicial.

Posteriormente, no bojo do RHC 187.335/PR, de relatoria do ministro Ribeiro Dantas, a 5ª Turma do STJ decidira que o compartilhamento de RIF de intercâmbio não poderia ocorrer no âmbito das chamadas “Verificações Preliminares de Informação”.

Por sua vez, no RE 1.393.219 AgR, a 2ª Turma do STF, citando o Tema 990, decidiu que o compartilhamento de informações entre a Receita e as autoridades de persecução penal somente poderia ocorrer de ofício, ou seja, quando a Receita, sem provocação, entendesse ser cabível o envio do procedimento fiscal concluído. Não caberia compartilhamento, pela Receita, a pedido das autoridades. Não se tratava de RIFs, mas invocou-se a decisão no Tema 990.

De todo modo, convém examinar as opiniões diversas e postular soluções equilibradas. Gerir a distribuição do poder informacional do Estado, de modo a equilibrar interesses persecutórios e direitos individuais, é, de fato, um dos maiores desafios que o processo penal moderno tem diante de si.

A impositiva criação de barreiras legais e jurisprudenciais à livre e irrestrita circulação de dados pessoais (sigilosos ou não) entre diferentes órgãos do Estado não constitui trivialidade procedimental contra indolor compilação oficial, levada a cabo em nome da legítima e benéfica repressão à lavagem de dinheiro, como em causa estivesse apenas pecadilho venial que os verdadeiros inocentes não carecem temer. Conforme noticiado nesta ConJur, a troca informal de dados entre órgãos continua frequente, o que viola direitos dos cidadãos e diminui a qualidade das investigações [10].

Antes e sobretudo, tais barreiras erguem-se como verdadeiros estandartes contra a reedição soft de Estados oniscientes, que, por não resistirem à tentação, num tropeço fatal, tornam-se onipotentes. Lembrando da máxima de Lord Acton, o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente.

 


[1] LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano. Gestão do poder informacional no processo penal no RHC 147.707-STJ (parte 1). Veja em: https://www.conjur.com.br/2023-set-14/leite-teixeira-gestao-poder-informacional-processo-penal/

[2] Cf. a respeito da questão sobre se UIFs são de fato comparáveis a serviços de inteligência, TEIXEIRA, Adriano. A relevância processual dos relatórios de inteligência financeira, In: Paulo de Sousa Mendes, Teresa Quintela de Brito, Rui Soares Pereira, José Neves da Costa, Miguel da Câmara Machado (org.). Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Responsabilidade Empresarial, Lisboa, 2023, p. 129, 134 ss

[3] ARAS, Vladimir; LUZ, Ilana M. Lavagem de dinheiro: comentários à Lei n. 9.613/1998: Grupo Almedina (Portugal), 2023.

[4] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1988, com as alterações da Lei 12.683/2012. 2019

[5] PLD/FTP: prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa.

[6] STF, Pleno, RE 1.055.941/SP RG, Rel. Min. Dias Toffoli, j. em 04/12/2019

[7] Vide a p. 57 do acórdão do Tema 990.

[8] ESTELLITA, Heloisa. O RE 1.055. 941: um pretexto para explorar alguns limites à transmissão, distribuição, comunicação, transferência e difusão de dados pessoais pelo COAF. Direito Público, v. 18, n. 100, 2021

[9] ESTELLITA, Heloisa. O RE 1.055. 941: um pretexto para explorar alguns limites à transmissão, distribuição, comunicação, transferência e difusão de dados pessoais pelo COAF. Direito Público, v. 18, n. 100, 2021

[10] https://www.conjur.com.br/2024-dez-05/pedido-informal-de-dados-do-coaf-viola-direitos-e-jurisprudencia-de-stf-e-stj/

Autores

  • é advogado, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção (PUC/SP) e membro do Grupo de Pesquisa Desafios do Controle da Administração Pública Contemporânea.

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