Opinião

Essência da ratio decidendi e desafios da sua aplicação

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  • é advogada trabalhista co-fundadora do escritório Mendes & Raymundo Leo Advogados pós-graduada pela PUC-MG em Direito Processual e em Direito e Processo do Trabalho.

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10 de dezembro de 2024, 11h19

Embora historicamente o direito brasileiro tenha se baseado no modelo romano-germânico, com predominância de normas codificadas, a introdução de precedentes vinculantes pelo CPC de 2015 trouxe o conceito de ratio decidendi para o centro do debate jurídico nacional. A partir do artigo 927 do CPC, juízes e tribunais passaram a observar as teses jurídicas estabelecidas em decisões de tribunais superiores, exigindo uma análise cuidadosa para distinguir entre a parte vinculante (ratio decidendi) e os elementos acessórios (obiter dictum).

As decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Reclamação Constitucional [1], principalmente aquelas que versam sobre a aplicação do Tema 725 e a validade da pejotização, reavivaram a discussão sobre a aplicação de precedentes e a necessidade de uma correta identificação da ratio decidendi.

Embora o conceito de ratio decidendi seja amplamente consolidado em sistemas de common law, sua aplicação no Brasil ainda gera controvérsias, especialmente na distinção com o obiter dictum, as chamadas considerações marginais de uma decisão. A ausência de critérios claros para essa diferenciação pode comprometer a segurança jurídica e a uniformidade das decisões judiciais.

Ratio decidendi: o  que é e o que não é

Traduzida livremente como “razão de decidir”, a ratio decidendi representa o núcleo essencial de uma decisão judicial, o fundamento determinante que resolve o caso e vincula decisões futuras em situações análogas.

A ratio decidendi não é apenas mais um elemento do julgamento, mas sua espinha dorsal. Sem ela, precedentes vinculantes correm o risco de se tornarem normas vagas, incapazes de orientar decisões futuras. Como bem define Arthur Goodhart [2], a ratio decidendi é a relação entre os fatos materiais do caso e a conclusão jurídica alcançada. Segundo ele, “a ratio decidendi não está necessariamente nas razões expostas pelo juiz, mas nos fatos materiais identificados como essenciais e na regra jurídica aplicada a eles” (GOODHART, 1930).

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No Brasil, o desafio é agravado por uma cultura jurídica fortemente baseada em normas codificadas, que nem sempre valorizam a força vinculante das decisões judiciais. Essa realidade torna essencial a delimitação precisa da ratio decidendi, principalmente em um sistema que busca estabilidade sem renunciar à análise casuística.

Outro ponto crítico é a distinção entre a ratio decidendi e o obiter dictum. Enquanto a primeira constitui a razão de decidir, a segunda abrange comentários marginais que, embora interessantes, não possuem força vinculante. Confundir esses conceitos pode levar à aplicação equivocada de precedentes, criando insegurança jurídica e decisões contraditórias.

O termo obiter dictum, em latim, significa “algo dito de passagem”. No contexto jurídico, refere-se às partes de uma decisão judicial que, embora possam conter argumentos relevantes, não são essenciais para o resultado do caso. Em outras palavras, são considerações acessórias que não possuem efeito vinculante

Neil MacCormick [3] (1978) observa que o obiter dictum é essencial para compreender o raciocínio do tribunal, mas não deve ser tratado como norma obrigatória. Essa confusão, comum no Brasil, exige maior atenção dos tribunais superiores na delimitação do que é vinculante em suas decisões.

Desafios da aplicação da ratio decidendi

Superada esta distinção, ainda que bem identificada a ratio decidendi, não se ouvida que a aplicação automática de precedentes é um risco. Nem todos os casos compartilham as mesmas características, e neste ponto se torna relevante a utilização da técnica do distinguishing, que permite que o magistrado avalie se o caso em julgamento possui diferenças significativas em relação ao precedente que inviabilizem sua aplicação. Essa análise não apenas garante a coerência do sistema de precedentes, mas também preserva a flexibilidade judicial e assegura que as especificidades do caso concreto sejam devidamente consideradas.

Marinoni [4] (2016) ressalta que o distinguishing evita a cristalização de decisões inadequadas, garantindo que o sistema jurídico mantenha sua capacidade de adaptação. No entanto, seu uso exige maturidade judicial e um entendimento refinado sobre o que constitui a ratio decidendi. Sem isso, o distinguishing pode ser mal utilizado, esvaziando a força vinculante dos precedentes.

A busca pela correta identificação da ratio decidendi constitui um dos pilares para a consolidação de um sistema de precedentes eficaz no Brasil. Este desafio teórico e prático exige dos operadores do direito uma compreensão refinada da decisão judicial e de seus elementos essenciais, principalmente em um contexto de transição de um modelo tradicional romano-germânico, baseado em normas codificadas, para um sistema que valoriza a força vinculante dos precedentes judiciais.

A identificação clara e precisa da ratio decidendi é indispensável para alcançar a segurança jurídica que se espera. Isso porque, ao se delimitar corretamente os fundamentos determinantes de uma decisão, reduz-se o risco de interpretações divergentes ou arbitrárias, assegurando que apenas os princípios jurídicos indispensáveis para o desfecho de um caso sejam utilizados como guias normativos para casos futuros, promovendo uniformidade e previsibilidade no ordenamento jurídico.

Reavaliação da formação da ratio decidendi

Além disso, a adoção e a prática de precedentes vinculantes no Brasil demandam uma reavaliação constante da formação da ratio decidendi nas decisões judiciais, acompanhando a evolução da sociedade, para que os precedentes não fiquem, em dado momento, obsoletos.

A ratio decidendi, como núcleo vinculante das decisões judiciais, fortalece a segurança jurídica ao garantir que casos semelhantes sejam tratados de forma uniforme. Por outro lado, o distinguishing assegura a adaptação dos precedentes às particularidades dos casos concretos, promovendo uma interação equilibrada entre estabilidade e flexibilidade.

A consolidação de um sistema de precedentes eficaz e equilibrado no Brasil depende diretamente do aprimoramento teórico e prático na identificação da ratio decidendi. Ao compreender e aplicar esse instrumento de forma adequada, o Poder Judiciário estará mais bem equipado para atender aos princípios constitucionais de igualdade, segurança jurídica, da duração razoável do processo e da eficiência, promovendo um ambiente de justiça que respeite tanto a uniformidade quanto as especificidades de cada caso.

 


[1] A Reclamação Constitucional é uma ação de competência originária nos Tribunais. A Constituição Federal prevê o seu cabimento perante o STF (art. 102, I, e art. 103-A, § 3º) e o STJ (art. 105, I, f). Para uma visão geral da reclamação, ver CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. Recursos para os Tribunais Superiores. 5 ed. Brasília: Gazeta Jurídica, 2021.

[2] GOODHART, Arthur L. Determining the ratio decidendi of a case. The Yale Law Journal, v. 40, n. 2, p. 161-183, 1930.

[3] MACCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory. Oxford: Oxford University Press, 1978.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 4ª ed. Revista e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

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  • é advogada trabalhista, co-fundadora do escritório Mendes & Raymundo Leo Advogados, pós-graduada pela PUC-MG em Direito Processual e em Direito e Processo do Trabalho.

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