O que falta para dar vida ao critério de desempate baseado no compliance
7 de dezembro de 2024, 13h21
A Lei nº 14.133/2021 — Lei de Licitações e Contratos Administrativos (LLCA) — apresentou, dentre os aspectos entendidos como “novos” à sua aplicação, o mecanismo de governança intitulado “programa de integridade,” popularmente conhecido como compliance anticorrupção.
Essa ferramenta, adotada pelas instituições públicas e privadas, almeja melhorar as práticas executadas, conferindo maior transparência e mitigando riscos, pretendendo-se prevenir a corrupção e promover boas práticas às contratações públicas.
Ao se fazer uma análise da LLCA, evidenciamos a menção ao instituto nos seguintes pontos: (1) como elemento obrigatório para as contratações de grande vulto (artigo 25, § 4º); (2) como critério de desempate (artigo 60, IV); (3) como critério a ser considerado na aplicação de sanções (artigo 156, § 1º, V); e, por fim, (4) como requisito à reabilitação em alguns casos (artigo 163, § único).
As considerações feitas neste artigo serão moduladas especificamente à previsão contida no artigo 60, inciso IV, da referida lei, tratando-se da adoção do programa de integridade como critério de desempate e à sua (in) aplicabilidade na prática.
Inicialmente, vale asseverar que a previsão do instituto consiste na adoção de uma política pública regulatória, por meio de “nudging” [1], prática entendida como um leve “empurrão” do Estado, a induzir o particular — nesse caso, o licitante — à adoção de certo comportamento de governança, o que, consequentemente, e em tese, trará benefícios ao interesse público, com contrapartidas, a exemplo de sua utilização como critério de desempate.
Isso ocorre porque, nas situações de empate entre duas ou mais propostas, poderá ser utilizado, como última possibilidade de desempate, o desenvolvimento, pelo licitante, de programa de integridade, conforme a ordem estabelecida na LLCA:
“Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem:
I – disputa final, hipótese em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à classificação;
II – avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, para a qual deverão preferencialmente ser utilizados registros cadastrais para efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos nesta Lei;
III – desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento;
IV – desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle” (grifou-se)
Ocorre que, na prática, paira certa ineficácia ao dispositivo que rege a adoção do programa de integridade como ferramenta de desempate, constituindo “letra morta”, a ponto de muitos órgãos ou entidades se utilizarem de outros parâmetros não previstos na lei (a exemplo do sorteio [2]) em seu detrimento.
A não utilização desse critério de desempate penaliza aquelas licitantes que o implementaram e esvazia o propósito de sua previsão (o “empurrão” estatal). Constitui um fomento inócuo e descredibiliza o Estado perante o mercado.
O principal motivo à rejeição da norma é uma suposta inexistência de regulamentação sobre a temática. Sabemos que a LLCA trouxe, em diversos dispositivos, essa necessidade. Entretanto, quando tratamos da utilização do programa de integridade como elemento de desempate, não verificamos essa exigência. O que se observa literalmente é “desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle”.
Como efetivamente dar vida ao instituto?
Não se está, portanto, diante de uma norma que exija o exercício do poder regulamentar por parte da administração. Ela é, a nosso ver, autoaplicável. Por outro lado, é necessário dizer que o legislador foi infeliz ao fazer esta previsão na parte in fini do dispositivo. Basta, para isso, verificar quantas perguntas surgem da redação: quais orientações? De quais órgãos de controle (interno ou externo)?
Ademais, se cada órgão central de controle interno (ou Tribunal de Contas) de cada Ente federativo expedir orientações distintas, quantos programas de integridade diferentes o licitante deverá desenvolver? Haverá um programa a ser implementado para cada ente? Só no âmbito local são 5.570 municípios.
A partir disso, surgem, ainda, as seguintes dúvidas: qual o entendimento dos órgãos de controle sobre o assunto? Qual o papel desses órgãos à temática? Como superar a inércia da administração e efetivamente dar vida ao instituto?
Jordão (2024), ao tratar dos diversos “controladores” e a relação entre eles, explicita a dificuldade de coordenação, já que ficam incumbidos de realizar a mesma função, o que, consequentemente, gerará a necessidade de definição sobre a ordem de pronúncia das instituições ou sobre quem terá a última palavra. Esse raciocínio se coaduna diretamente com a temática abordada, já que, a partir da definição legal, as deliberações caberão aos “órgãos de controle”, gerando outras intercorrências, como a paralisação dos administradores públicos — o que vemos de forma nítida na prática, especialmente em relação à aplicação da disposição constante no artigo 60, IV, da LLCA.
Nesse contexto, sabemos que a estruturação desses órgãos é importante à condução das atividades administrativas, muitas vezes trazendo freios e contrapesos [3]. Por outro lado, gera certo imbróglio em decorrência do manejo de coordenação [4], especialmente quando se trata dos controles estadual e municipal. Quais controladorias municipais estariam estruturadas para esse mister?
Em verdade, quando o legislador se referiu genericamente a “órgãos de controle”, veio à sua mente a União, em que há os estruturados Tribunal de Contas da União (TCU) e Controladoria Geral da União (CGU), que desempenham papel singular no controle externo e interno respectivamente.
Nessa tarefa atribuída pelo legislador, possuem eles papel concorrente ou subsidiário? Em outras palavras, caberia à CGU expedir suas “orientações” e, ao TCU, em um segundo momento, moldá-las ao seu entendimento? Ou ambos poderiam expedir suas orientações (e em sentido antagônico)? Nos parece ser lógico que o órgão de controle interno edite suas orientações e, subsidiariamente, o Tribunal de Contas expeça as “recomendações às recomendações”, como “controlador do controle interno”.
No âmbito local, há estrutura à aplicação dessa lógica? Estariam as controladorias municipais aptas a expedir essas orientações, tendo os Tribunais de Contas dos Estados (ou municípios) um papel secundário? Ou estes precisam tomar a frente e expedi-las?
São perguntas que direcionam a uma resposta: não pode o particular ser penalizado pela celeuma em fazer valer seu direito subjetivo (objetivamente posto à administração) ao critério de desempate. É necessário dizer: o desenvolvimento de um programa de integridade sério custa caro. Como desejar que o mercado o implemente, sem a execução da contrapartida pública garantida pelo legislador?
Verificamos que, no âmbito federal, a CGU, que já incorpora a matéria da integridade há algum tempo (voltada proeminentemente aos órgãos e entidades públicas), a exemplo do Plano de Integridade 2023-2025 [5], aprovado pela Portaria Normativa nº 93/2023, no cenário das licitações e contratos, deu um passo importante em direção ao compliance empresarial, especialmente por meio do Programa de Integridade: Diretrizes para empresas privadas [6] (lançado em agosto de 2024).
Nesse instrumento, é possível extrair a interpretação dada por ela ante a falta de definição, por parte do legislador, do que, de fato, caracteriza um programa de integridade. Para tanto, aquele órgão central de controle interno se vale expressamente da definição estabelecida pelo Decreto nº 11.529/2023, que trata do Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal. Há, portanto, orientações que norteiam e estabelecem critérios ao setor privado, para que este não implemente o programa de compliance de qualquer modo.
Em reforço, vemos citações quanto a obrigatória aplicação dos critérios dispostos no artigo 60 da Lei 14.133/2021 na consolidada obra do TCU [7], validando sua utilização com base nas orientações dos órgãos de controle e citando expressamente “os informativos e cartilhas da CGU” como mecanismo de orientação à implementação de programas de integridade por fornecedores.
Assim, em sede conclusiva, nos perguntamos: o que falta para dar vida ao critério de desempate baseado no desenvolvimento de programa de integridade, conforme previsto na Lei nº 14.133/2021? Compreendemos que a demonstração, por parte das licitantes, do atendimento aos parâmetros estabelecidos pela CGU no seu recente guia orientativo “Programa de integridade: diretrizes para empresas privadas”, é suficiente para que gozem do benefício ao desempate. Apenas nos casos em que permanecer a situação de empate (entre as licitantes com o programa implementado) é que a administração deve partir para outro critério não previsto na lei (embora expresso no edital), a exemplo do sorteio.
[1] Expressão amplamente utilizada dentro da teoria do comportamento, conforme citada por ZILIOTO (2020) em seu artigo “O desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade como critério de desempate no projeto de lei nº 1.292/95”. Disponível em: https://www.novaleilicitacao.com.br/2020/02/12/o-desenvolvimento-pelo-licitante-de-programa-de-integridade-como-criterio-de-desempate-no-projeto-de-lei-no-1-292-95/. Acesso em: 03 dez. 2024.
[2] Inclusive, a utilização do sorteio como ultima ratio, mesmo não prevista em lei, foi chancelada pelo TCU no Acórdão nº 723/2024-TCU-Plenário.
[3] “De fato, atribuir à própria administração pública capacidade para controlar seus atos parece fazer sentido. Mas você talvez ficasse satisfeito com esse primeiro passo. Afinal, se a maior proximidade entre o controlador e o ato controlado permite uma fiscalização mais de perto, ela também aumenta os riscos de que o controlador deixe de rever esses atos em certos casos nos quais isso seria devido. Isso pode ocorrer, por exemplo, quando a administração deixa de rever atos ilegais por entender que isso contraria as preferências do chefe do Executivo. A Constituição também incorporou essa solução, atribuindo a diversas instituições externas à administração pública o poder de controlá-la. Essas instituições variam bastante nas suas funções e competências”. (JORDÃO, Eduardo. Quem controla a Administração? Os diversos controladores e a relação entre eles. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Curso de Direito Administrativo em ação: casos e leituras para debate. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024. p. 552).
[4] Idem, p. 567.
[5] Plano de integridade da CGU. Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/93464/1/Plano_Integridade_CGU_2023_2025.pdf. Acesso em: 03 dez. 2024.
[6] V. Programa de Integridade: Diretrizes para empresas privadas (Caderno II). Controladoria-Geral da União, Brasília, agosto de 2024. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2024/10/cgu-publica-novo-guia-de-diretrizes-para-empresas-privadas/GuiaDiretrizes_v14out1.pdf. Acesso em: 03 dez. 2024.
[7] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Orientações e Jurisprudência. Desempate. Disponível em: https://licitacoesecontratos.tcu.gov.br/5-4-2-desempate-2/. Acesso em: 03 dez. 2024.
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