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Norma da ANS sobre planos de saúde é vista com ceticismo e pode piorar judicialização

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6 de dezembro de 2024, 8h52

A resolução da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) sobre cancelamento de planos de saúde, que entrou em vigor no último domingo (1º/12), foi recebida com ceticismo por advogados e outros especialistas que atuam no campo da saúde no Judiciário. Isso porque a norma, que altera as condições para que as operadoras cancelem os contratos, não altera substancialmente o problema e ainda pode incrementar a judicialização do tema, que já é imensa.

Nova norma da ANS estabelece diretrizes para cancelamentos, mas não ataca os problemas da judicialização

A norma estabelece que o consumidor pode ter seu contrato cancelado somente no caso do não pagamento de duas mensalidades (não necessariamente consecutivas). Antes, no caso dos planos coletivos, a regra da ANS determinava que o cancelamento unilateral poderia ser feito em casos de inadimplência por um período superior a 60 dias, consecutivos ou não. Na prática, isso abria a possibilidade para que as operadoras cancelassem planos por causa de apenas uma mensalidade atrasada.

Outro ponto alterado é que a notificação do cliente poderá ser feita pessoalmente, por carta registrada com aviso de recebimento (AR) ou por meios digitais. Segundo o texto publicado, “cabe à operadora a comprovação inequívoca da notificação sobre a situação de inadimplência” (artigo 5º).

Pela resolução, no caso de a mensalidade deixar de ser cobrada por erro da operadora, o prazo não poderá ser utilizado pela empresa para cancelar o contrato.

Números do DataJud mostram que as ações no âmbito da saúde estão em crescimento desde 2020, e devem atingir patamar recorde neste ano. Segundo dados da plataforma compilados pelo Conselho Nacional de Justiça, foram ajuizados 219 mil processos contra planos de saúde em 2023; neste ano, o número deve saltar para 285 mil. A maior parte das ações é por cancelamento indevido ou por negativa da prestação de determinado procedimento.

O problema entrou no radar da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacom), que, em novembro, anunciou que ajuizou processos administrativos contra 17 operadoras e quatro associações de saúde. A pasta afirmou que “as operadoras notificadas têm utilizado lacunas contratuais ou interpretado normas de forma prejudicial ao consumidor para justificar rescisões”.

Em nota divulgada na terça-feira (3/12), a ANS afirmou que as novas regras valem para todos os contratos firmados desde janeiro de 1999, e não só para os que foram assinados depois da entrada em vigor da resolução. A agência também explicou que, para fins de punição às operadoras, o cumprimento dessas regras será observado a partir de 1º de fevereiro do ano que vem.

Fabíola Meira de Almeida Breseghello, sócia do escritório Meira Breseghello Advogados, acredita que a norma vai facilitar o controle dos dias de inadimplência, visto que, pela nova regra, é necessário que o não pagamento das duas mensalidades tenha ocorrido nos últimos 12 meses de vigência do contrato. Além disso, os dias em atraso de mensalidades que já foram pagas não serão contados como período de inadimplência.

Ela, no entanto, afirma que não haverá influência consistente da norma na judicialização porque a resolução não ataca outros problemas, como a negativa de prestação, ponto que impulsiona o alto número de ações contra planos.

“Tal fato (mudança na contagem dos dias) não inibirá a judicialização, pois, na regra anterior, ainda que a contagem fosse realizada adequadamente, os consumidores a questionavam. Pode ser que, pela facilidade na contagem, as dúvidas e o efeito surpresa do cancelamento diminuam. Porém, geralmente, a discussão também envolve outros temas, como negativa de procedimento não coberto, e não apenas a inadimplência.”

Novo flanco de judicialização

Para Ricardo Yamin, sócio do Yamin, Scavuzzi e Narcizo Advogados, especializado em saúde suplementar, a norma avançou no sentido de estabelecer diretrizes para que a notificação de inadimplência seja feita por meios eletrônicos, mas retrocedeu quando estipulou o mínimo de duas mensalidades em aberto para que o cancelamento seja feito.

“Como é cediço, para que o sistema seja sustentável, o mínimo exigido é que os beneficiários realizem o pagamento das mensalidades. A meu ver, essa resolução pouco influencia na desjudicialização. Esse setor é extremamente judicializado, já considerando as regras existentes. (A nova norma) Pode, ao contrário, piorar, já que as operadoras passarão a ajuizar ações de cobrança contra os inadimplentes, uma vez que o contrato não pode ser cancelado.”

Em evento do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac), o diretor-executivo do Procon-SP, Luiz Orsatti Filho, endossou a percepção de que a nova diretriz não deve diminuir a judicialização.

“Acredito que não vá reduzir. A questão da judicialização é o caminho mais rápido por vários motivos, seja pela questão da urgência, da questão que envolve o atendimento, ou o fornecimento de um medicamento, a questão da segurança quando ocorre uma rescisão unilateral. Acredito, por todos esses fatores, haja visto o alto número de judicializações, crescente ano a ano, que não vai impactar na redução da judicialização e na melhora desse cenário que está posto.”

Pontos não atacados

Henderson Fürst, sócio do escritório Chalfin Goldberg Vainboim Advogados, afirma que a normativa não vai ter influência no alto número de processos e que “há riscos de aumento” da judicialização. “Trata-se de uma mudança que não condiz com o atual momento econômico e de crescimento de pacientes na saúde suplementar.”

Segundo ele, há o problema da falta de uniformização de entendimentos sobre a cobertura obrigatória dos planos, o que gera insegurança e, consequentemente, maior número de processos contra as operadoras.

“Enquanto não se uniformizar o entendimento sobre a cobertura obrigatória de procedimentos pelos planos de saúde, a judicialização permanecerá. A Lei 14.454 ampliou a possibilidade (de pedidos de cobertura de procedimento) de forma insegura para os próprios pacientes, pois estabelece que coberturas de tratamentos que são menos eficazes ou seguros possam ser requisitadas. É necessário que se padronize qual o rigor de evidências científicas que serão aceitas para fins de cobertura”, diz o advogado.

Léo Rosenbaum, sócio do Rosenbaum Advogados e especialista em planos de saúde, diz que, do ponto de vista do consumidor, a normativa não resolve o problema das notificações e ainda pode contribuir para mais processos se acumularem nos tribunais.

“O Código de Defesa do Consumidor estabelece que o consumidor deve ser comprovadamente notificado, e uma resolução não pode se sobrepor à lei. A jurisprudência reforça esse entendimento, exigindo que a ciência do consumidor seja clara e inequívoca. Dessa forma, em vez de contribuir para a desjudicialização, essas mudanças podem gerar mais discussões judiciais, pois não garantem a segurança necessária.”

Rosenbaum afirma que outros pontos, como a melhora nos canais de atendimento das operadoras, a penalização mais rigorosa das empresas que descumprem as leis, o aumento das indenizações e uma maior fiscalização por parte da ANS seriam mais efetivos para a desjudicialização do tema.

“Essas medidas atacam a raiz dos problemas, diminuindo a insatisfação dos consumidores e, consequentemente, a necessidade de recorrer ao Judiciário para garantir seus direitos. O foco deve ser na proteção do consumidor e no respeito às leis e contratos, e não em criar instrumentos que facilitem o cancelamento ou a negativa de coberturas.”

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