Opinião

Entre a proteção e a exposição: Lei 15.035/24 no tratamento dos crimes sexuais

Autores

  • é advogada e mestranda em Direito Penal na UERJ.

    Ver todos os posts
  • é advogada criminalista pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal (IDP) pós-graduada em Ministério Público e Estado Democrático (Unibrasil) membra relatora da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/PR secretária-geral da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR e coordenadora-adjunta do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais do Paraná (Ibccrim/PR).

    Ver todos os posts
  • é advogada mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) especialista em Direito Penal Econômico e Processo Penal pela PUC-PR membro do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da PUC-Campus Londrina e associada ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

    Ver todos os posts
  • é advogada criminalista professora de Direito Penal e Processo Penal na Universidade Estadual de Londrina e mestra em Ciências Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

    Ver todos os posts

4 de dezembro de 2024, 6h06

A comunidade jurídica foi surpreendida com a promulgação da Lei nº 15.035, de 27 de novembro de 2024, que alterou o Código Penal para incluir no artigo 234-B os parágrafos 1º, 2º e 3º e determinou a criação do Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais, a partir da inclusão do artigo 2º-A na Lei nº 14.069/2020 — esta que, por sua vez, criou o Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro.

Antes da promulgação da nova lei, o artigo 234-B do diploma penal exigia que todo e qualquer processo criminal destinado a apurar crimes contra a dignidade sexual tramitasse em segredo de justiça.

Agora, o § 1º do referido dispositivo passa a permitir que o sistema de consulta processual torne de acesso público o nome completo do réu, seu número de CPF e a tipificação legal do crime a partir da condenação em primeira instância pelos crimes previstos nos artigos 213, 216-B, 217-A, 218-B, 227, 228, 229 e 230 do CP. Também serão divulgadas as informações da pena ou da medida de segurança imposta.

O sigilo das informações será mantido somente a partir de decisão fundamentada do juiz — a regra é, portanto, a publicidade — e será restabelecido em caso de absolvição do réu em grau recursal, conforme previsão do § 2º.

O § 3º determina, ainda, que o réu condenado seja monitorado por dispositivo eletrônico.

Inconstitucionalidade e marginalização

Para além da evidente inconstitucionalidade do § 1º — pois viola a presunção de inocência assegurada no artigo 5º, LVII, da CRBF, ao permitir a publicização das informações do réu após a condenação em 1º grau de jurisdição —, a norma é um verdadeiro instrumento de estigmatização e exclusão social daqueles que respondem ao processo criminal e não têm a culpa definitivamente formada e reconhecida por sentença condenatória transitada em julgado.

minilua

O sigilo na apuração de crimes tão sensíveis tem razão simples de existir: dada a gravidade das condutas incriminadas, a potencial exposição da intimidade e da privacidade dos envolvidos e a negativa reação social, é dever do Estado evitar a rotulação [1] e a marginalização do réu, pelo menos até que a decisão do Poder Judiciário se torne definitiva.

É claro que os efeitos deletérios do processo penal na vida de quem carrega contra si imputação pela prática de crime sexual existirão independentemente da nova norma: o rompimento de vínculos familiares, de amizade, de vizinhança e de trabalho são consequências concretas e duradouras.

No entanto, colocar à disposição do escrutínio público dados sensíveis do réu em momento tão precoce da persecução penal parece adicionar um grau de crueldade na destruição da sua reputação, além de colocar em risco a sua segurança, já que os dados circularão livremente em meios de comunicação social digital ou analógico, nas redes sociais, nos aplicativos de mensagens e em todo o contexto pessoal e laboral do imputado.

Ainda que sobrevenha decisão absolutória em grau recursal, os dados divulgados serão dificilmente apagados e o rótulo de criminoso sexual permanecerá. Há, também aí, evidente violação dos direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, todos assegurados no artigo 5º, inciso X, da CRFB.

Além disso, de modo a dificultar a remoção de conteúdos veiculados em meios de comunicação social, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 786 em 11/2/2021, fixou a tese de que “é incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais” [2].

Vigilância e cadastro de ‘predadores’

O § 3º do artigo 234-B causa ainda mais espanto, pois: 1) não se sabe exatamente a que tipo de monitoração eletrônica estará o condenado submetido, por quanto tempo e em quais condições; 2) qualquer semelhança com a monitoração eletrônica prevista no artigo 319, inciso IX, do Código de Processo Penal, é absolutamente ilegal.

Primeiro, porque, as regras do cumprimento de pena estão previstas nos artigo 33 a 37 e no artigo 44, todos do Código Penal, bem como na Lei de Execução Penal, e submeter o condenado a mais uma modalidade de vigilância parece violar as finalidades do Direito Penal e da pena, notadamente a de ressocialização; segundo, porque, a monitoração eletrônica prevista no artigo 319, IX, do CPP, é medida cautelar diversa da prisão preventiva, aplicada aos processos penais em curso e dependente de requerimento das partes e de decisão fundamentada.

Outro ponto a ser questionado refere-se à previsão do artigo 2º-A da Lei nº 14.069/2020, que determina a criação do Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais. Se o processo penal, por si só, já é uma tortura, como bem ensinou Carnelutti [3], e se a consulta aos dados já é estigmatizante, o que dizer de “fazer parte” de um cadastro que denominará o sujeito como “predador sexual”? Há, aqui, um verdadeiro contrassenso em relação à ideia de ressocialização e reintegração daquele que delinquiu. Pergunta-se, de forma retórica: quem empregará um “predador sexual”? Qual a chance de que um sujeito rotulado institucionalmente como “predador sexual” venha a ter uma vida digna após cumprir a sua pena?

Trata-se de mais uma norma que não passa por uma análise consequencialista ex ante, seja sob o ponto de vista de sua (in)constitucionalidade, seja em relação à sua aplicabilidade, uma vez que não há informações sobre como funcionará o cadastro.

Note-se que o parágrafo único do referido artigo foi vetado; havia previsão de que as informações ficariam disponíveis por um prazo de dez anos após o cumprimento integral da pena, salvo em caso de reabilitação.

Spacca

Contudo, nos termos do veto [4], a disponibilização das informações além do período de cumprimento da pena viola a proporcionalidade, o devido processo legal, a integridade física e moral, entre outros princípios constitucionais. Presume-se, então, que, possivelmente, as informações ficarão disponíveis durante o período de cumprimento da pena, o que já é mais do que suficiente para a violação da dignidade da pessoa humana. E, ainda que se estabeleça um marco temporal, continua sendo inconstitucional, uma vez que, com prazo ou sem prazo, é contrária aos mesmos princípios indicados no veto.

Conclusão

Em que pese a legítima intenção de proteção da sociedade contra a prática de crimes sexuais, a implementação da publicização de dados sensíveis de réus condenados apenas em primeiro grau levanta sérias preocupações jurídicas, violando frontalmente a presunção de inocência e a proteção da intimidade, além de entrarem em conflito com o teor da Lei Geral de Proteção de Dados, que exige que o tratamento dos dados pessoais seja feito de forma proporcional, necessária e com finalidades legítimas, o que pode ser comprometido diante da exposição precoce dessas informações.

O advento da novel legislação decorre de uma perspectiva populista, estigmatizadora e nada eficaz em termos práticos. É necessário que se busque um sopesamento entre os direitos fundamentais e a segurança pública, a partir de discussões sérias de dogmática e política-criminal e não como forma de satisfação dos anseios sociais mais primitivos.

 


[1] Para a teoria criminológica do etiquetamento, “(…) o desvio [o crime] não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um ‘infrator’. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal” (BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Trad. Maria Luiza X. de Borges. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 22).

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 1010606. Relator Ministro Dias Toffoli. Brasília-DF: 11.02.2021. Disponível em: tps://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5091603&numeroProcesso=1010606&classeProcesso=RE&numeroTema=786. Acesso em: 28 nov. 2024.

[3] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Conan: São Paulo, 1995, p. 46.

[4] BRASIL. Presidência da República. Mensagem nº 1.527, de 27 de novembro de 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/Msg/Vep/VEP-1527-24.htm. Acesso em: 28 nov. 2024.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!