Opinião

Green Deal europeu: importância de regras claras no comércio internacional

Autor

  • é advogado doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito summa cum laude pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

    Ver todos os posts

3 de dezembro de 2024, 6h06

No comércio internacional, a necessidade de regras claras é essencial para garantir um sistema econômico global estável, justo e previsível. Em um ambiente em que uma vasta rede de países, empresas e instituições interage constantemente, é indispensável estabelecer normas claras e compreensíveis [1].

Primeiramente, as regras claras promovem estabilidade e previsibilidade, reduzindo a incerteza para os operadores comerciais, como empresas, agentes comerciais, importadores, consumidores etc. Isso de fato permite o planejamento das operações a longo prazo sem medo de mudanças súbitas ou de medidas protecionistas arbitrárias. Além disso, quando as normas são bem definidas, aumenta-se a confiança nos mercados globais, incentivando investimentos e o crescimento dos negócios.

Isso torna o princípio da segurança jurídica um dos pilares fundamentais para o funcionamento de qualquer sistema jurídico. A clareza, a simplicidade e a transparência contribuem para a redução da incerteza e facilitam a interpretação e a aplicação do direito [2]. Esses elementos previnem conflitos e controvérsias desnecessárias, além de promoverem a igualdade de acesso à Justiça e o respeito ao Estado de direito [3].

Uma das principais consequências desse princípio é sua estreita relação com o desenvolvimento econômico e social. Investidores e empresas, por exemplo, tendem a se sentir mais confiantes em operar em contextos onde as normas jurídicas são consistentes e aplicadas de forma previsível.

De fato, um conjunto sólido e claro de regras fornece mecanismos para resolver disputas de forma pacífica e institucionalizada, evitando que essas divergências escalem para guerras comerciais. Essas normas também ajudam a reduzir práticas desleais, como o dumping ou a concessão de subsídios que distorcem a concorrência, promovendo uma competição mais equilibrada entre os atores econômicos.

Além disso, regras claras facilitam o comércio, eliminando barreiras desnecessárias e simplificando os procedimentos burocráticos. A harmonização de padrões técnicos e certificações internacionais, por exemplo, elimina obstáculos e permite uma integração mais eficiente nos mercados globais. Normas claras, portanto, garantem que todos os participantes joguem nas mesmas condições, favorecendo a concorrência leal, evitando discriminações e garantindo acesso aos mercados, em particular, quando pequenas e médias empresas buscam se integrar ao sistema global [4].

Desenvolvimento sem prejudicar o meio ambiente

O assim chamado Green Deal europeu tem o objetivo de incentivar o comércio responsável, incorporando objetivos ambientais e sociais que promovem o desenvolvimento econômico, sem prejudicar o meio ambiente e os direitos fundamentais (entre outros, a dignidade) das pessoas. Além disso, possui a finalidade de impulsionar as empresas a adotarem inovações verdes, contribuindo para uma economia mais sustentável [5].

Por isso, é extremamente importante que o próprio conceito do Green Deal europeu entre para o centro do debate comercial. Muitas vezes, ele é percebido como uma questão restrita e limitada à proteção ambiental. No entanto, quando buscamos concretizar essa tutela — sem dúvida fundamental e amplamente compartilhável —, é evidente que existem implicações práticas diretas e significativas no âmbito do comércio nacional e internacional.

Spacca

Isso porque — entendemos — o Green Deal europeu não se limita a medidas específicas, como o regulamento sobre desmatamento (UEDR) [6]. Temos que considerar um conjunto amplo e complexo de vários atos normativos, incluindo diretivas e regulamentos europeus. Esses instrumentos configuram uma abordagem muito mais abrangente, propondo um novo paradigma para os negócios em geral e (de forma ambiciosa)  para o comércio global. O objetivo essencial é a criação de um sistema econômico substancialmente distinto do modelo vigente.

Um dos pilares mais importantes dessa transformação é a Corporate Sustainability Due Diligence Directive [7], que introduz o conceito de duty of care (dever de diligência). Essa diretiva marca uma verdadeira revolução na responsabilidade empresarial ao atribuir responsabilidades não apenas às empresas, mas também às pessoas físicas cujas decisões estejam em desacordo com princípios de proteção ambiental e direitos humanos [8].

No entanto, os impactos práticos dessas normas, como eventuais violações do regulamento sobre desmatamento, geram desafios relevantes, especialmente para as empresas que operam na Europa ou possuem vínculos com o mercado europeu. A ampliação da responsabilidade corporativa pode expor essas organizações a penalidades financeiras, aduaneiras e danos reputacionais. Além disso, o cumprimento dessas normas exige interpretações precisas e consistentes, algo que ainda — entendemos — não foi plena e claramente definido.

Desmatamento no regulamento europeu

Por exemplo, atualmente, o regulamento (EUDR) sobre desmatamento apresenta incertezas e precisa ser interpretado. Talvez por essa razão, os operadores comerciais (principalmente, importadores e agentes), principalmente europeus, tenham solicitado a prorrogação de sua entrada em vigor (prevista hoje para o dia 1º de janeiro de 2026). Essa indefinição é particularmente problemática no que diz respeito às declarações alfandegárias, que assumem papel central na conformidade regulatória (e no assim chamado compliance contratual).

Embora inicialmente apresentadas como um simples procedimento formal, essas declarações, dependendo de como serão atuadas, poderão em tese gerar interpretações divergentes, especialmente se submetidas a inspeções mais rigorosas (como no caso de “declarações não conformes”). Uma declaração considerada não conforme geralmente poderá acarretar consequências (até) penais e danos eventualmente significativos à reputação.

Outra questão fundamental é a definição do conceito de desmatamento no regulamento europeu. Países como o Brasil, que possui um dos códigos florestais mais avançados do mundo, distinguem entre desmatamento legal e ilegal. O regulamento europeu, contudo, não faz essa diferenciação, de forma clara e inequívoca, reconhecendo apenas o “desmatamento”, ainda que reafirmando a soberania dos países produtores. Essa ambiguidade gera dúvidas sobre como o direito e as práticas nacionais serão interpretadas no contexto europeu.

Além disso, importadores que não fazem parte do mesmo grupo econômico das empresas produtoras enfrentam desafios adicionais. Eles precisam buscar a documentação necessária para comprovar a conformidade, sabendo que podem ser responsabilizados tanto juridicamente quanto em termos de imagem. Esse cenário de incerteza aumenta os custos operacionais e reforça a necessidade de clareza e padronização normativa.

Inovação e competitividade para empresas

Para as empresas, o Green Deal europeu se apresenta como um motor de inovação e competitividade. Investir em tecnologias verdes, como energia renovável ou métodos de produção sustentáveis, pode abrir portas para novos mercados e responder à crescente demanda por produtos mais responsáveis. Além disso, muitas empresas terão acesso a linhas de crédito e financiamentos específicos.

Para os consumidores, o Green Deal europeu apresenta diversas oportunidades relacionadas ao investimento em eficiência energética. Ele incentiva práticas empresariais mais sustentáveis, premiando as empresas que adotam medidas alinhadas a esses objetivos, além de favorecer produtos certificados e estimular práticas como a economia circular. Esta última, em particular, promove a reutilização e a reciclagem, contribuindo para a redução do desperdício e para a construção de um modelo econômico mais sustentável.

Portanto, embora os princípios e objetivos do Green Deal europeu sejam amplamente compartilhados e compartilháveis, sua implementação prática exige reflexão e atenção cuidadosa, não apenas das empresas e dos operadores do mercado em geral, mas também das próprias instituições que deverão implementar o sistema. É crucial, portanto, avaliar como  regulamentos, diretivas e atos normativos em geral serão aplicados de forma que os operadores comerciais estejam preparados para cumprir as novas exigências.

 


[1] O presente trabalho resume considerações já apresentadas no Forum do Comercio Internacional de Milão (Itália) em 15 de novembro de 2024. Cf.  https://www.youtube.com/watch?v=KjARojPmVh8 e mais especificamente https://www.youtube.com/watch?v=ATS9SrAatw0

[2] ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança jurídica. São Paulo, Malheiros, 2016.

[3] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH Bryant. Acesso á Justiça (Trad. NORTHFLEET, Ellen Gracie), Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1998.

[4] https://www.conjur.com.br/2024-jun-20/globalizacao-compliance-e-relativas-patologias/

[5] https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/european-green-deal_pt

[6] O Regulamento Europeu sobre o Desmatamento (Regulamento UE 2023/1115), adotado em junho de 2023, tem como objetivo reduzir o impacto ambiental da União Europeia, garantindo que os produtos colocados no mercado europeu não contribuam para o desmatamento ou a degradação florestal.

[7] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=OJ:L_202401760

[8] VENTORUZZO, Marco. Uno sguardo d’insieme ala CS3D: riflessioni preliminari sulla tecnica normativa, em Rivista delle Società, Milano, Giuffrè, 2-3, 2024.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!