Ainda Estou Aqui

Advogado questionou desaparecimento de Rubens Paiva, mas militares mentiram sobre morte

Autor

2 de dezembro de 2024, 8h53

O criminalista Lino Machado questionou várias vezes a Justiça Militar sobre a prisão e o desaparecimento do ex-deputado federal Rubens Paiva durante a ditadura (1964-1985). As autoridades disseram que ele havia fugido, sem ser encarcerado, e o Superior Tribunal Militar negou os Habeas Corpus. Era mentira: Paiva foi torturado e morto por agentes do regime, mas o fato só veio à tona em 2014, pela Comissão Nacional da Verdade.

Rubens Paiva foi sequestrado, torturado e assassinado durante o governo Médici

A história de Paiva é tema do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. A obra é uma adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva e conta a história de sua mãe, Eunice Paiva, e do desaparecimento de seu pai. Estrelado por Fernanda Torres e Selton Mello, o longa é cotado para disputar o Oscar de 2025.

Lino Machado, interpretado por Thelmo Fernandes, aparece no filme discutindo os Habeas Corpus com Eunice Paiva. O advogado foi um dos principais defensores de presos políticos na ditadura.

Nélio Machado, filho de Lino, começou a carreira de advogado trabalhando com o pai nesses casos difíceis. O escritório atuava de forma pro bono em tais processos. Segundo ele, a atuação de Lino Machado foi “corajosa, uma voz de resistência que lutou pelo restabelecimento do Estado democrático de Direito”.

Ainda Estou Aqui tem uma grande importância por revelar os abusos da ditadura, disse Nélio à revista eletrônica Consultor Jurídico.

Prisão e desaparecimento

Eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962, Rubens Paiva foi relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que investigou o financiamento de grupos que conspiravam contra o governo de João Goulart. Com o golpe militar, ele teve seu mandato cassado em 10 de abril de 1964 e se exilou na Iugoslávia. Em novembro, retornou ao Brasil, passou um período em São Paulo e se estabeleceu com a família no Rio.

Na madrugada de 20 de janeiro de 1971, agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) detiveram Cecília de Barros Correia Viveiros de Castro e Marilene de Lima Corona no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Com elas, encontraram cartas de militantes exilados no Chile. Rubens Paiva era um dos destinatários das missivas.

Mais tarde, Paiva foi surpreendido por seis agentes do Cisa em sua casa, no Leblon, Zona Sul do Rio. O ex-deputado foi levado inicialmente para o quartel da 3ª Zona Aérea, ao lado do Aeroporto Santos Dumont e comandado pelo brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, onde sofreu as primeiras torturas, conforme o relatório final da Comissão Nacional da Verdade.

Ainda no mesmo dia, Paiva foi conduzido, juntamente com Cecília Viveiros de Castro, ao Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do I Exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, Zona Norte do Rio, comandado pelo então major José Antônio Nogueira Belham.

Durante todo o 20 de janeiro, os familiares de Rubens Paiva ficaram detidos em casa pelos agentes do Cisa. No dia seguinte, a mulher do ex-deputado, Eunice Paiva, e a filha Eliane, então com 15 anos, também foram levadas ao DOI-Codi. As duas foram submetidas a diversas sessões de interrogatório e ficaram presas no local — Eliane por dois dias, Eunice, por 12 dias.

Quando deixava a instalação militar, Eunice viu o carro do marido, um Opel Kadett, no pátio interno. Ainda que os agentes do DOI-Codi houvessem confirmado que Rubens Paiva estava no local quando sua mulher foi levada para lá, funcionários do Ministério do Exército recusaram as roupas que sua família levou para ele, alegando que o ex-deputado não se encontrava em nenhuma instalação militar.

Habeas Corpus

No dia 26 de janeiro de 1971, o criminalista Lino Machado impetrou Habeas Corpus em favor de Rubens e Eunice Paiva ao Superior Tribunal Militar (HCs 30.381 e 30.379). Na ação de Eunice, o advogado apontou que não havia nenhuma razão para restringir a sua liberdade, “salvo se constituir crime ser esposa do engenheiro Rubens Beyrodt Paiva e ser mãe de cinco filhos, todos menores, desassistidos, dos cuidados da paciente, arrancada de seu lar horas depois da prisão de seu marido”.

Machado também destacou a violação do domicílio dos Paiva pelos agentes do Cisa, que invadiram a casa e mantiveram a família detida do dia 20 para o 21 de janeiro. Dessa maneira, o criminalista pediu a imediata soltura de Eunice.

Em ofício datado apenas de “fevereiro de 1971” — ou seja, que poderia ter sido expedido enquanto Eunice ainda estava presa, já que só foi libertada às 18h30 de 2 de fevereiro —, o chefe do Estado Maior do I Exército, general Carlos Alberto Cabral Ribeiro, disse que Eunice Paiva não estava no DOI-Codi. Após a soltura dela, Lino Machado protocolou a desistência do HC, “sem embargo de a paciente ter permanecido presa por mais de dez dias, sem o cumprimento das formalidades legais e em regime de incomunicabilidade”.

No HC de Rubens Paiva, Lino Machado questionou por que o ex-deputado foi levado ao DOI-Codi e preso. O criminalista ressaltou que a prisão seria ilegal se não se informasse quem foi a autoridade que a ordenou, o motivo e o oferecimento de assistência de advogado.

O general Carlos Alberto Cabral Ribeiro, em 3 de fevereiro, respondeu que Rubens Paiva não estava no DOI-Codi, nem em outra instalação militar. O chefe do Estado Maior do I Exército informou que o ex-deputado havia fugido quando era conduzido para depor.

“Esclareço, outrossim, que segundo informações de que dispõe este comando, o citado paciente quando era conduzido por agentes de segurança, para ser inquirido sobre fatos que denunciam atividades subversivas, teve seu veículo interceptado por elementos desconhecidos, possivelmente terroristas, empreendendo fuga para local ignorado, o que está sendo objeto de apuração por parte deste Exército”, afirmou o general, em ofício.

O HC então foi indeferido pelo STM, sob o argumento de que Paiva estava foragido. Lino Machado insistiu que a prisão de Paiva era ilegal, pois contrariava os artigos 221, 222 e 225 do Código de Processo Penal Militar. Os dispositivos estabelecem, respectivamente, que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente”; que “a prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente levada ao conhecimento da autoridade judiciária competente, com a declaração do local onde a mesma se acha sob custódia e se está, ou não, incomunicável”; e que “a autoridade judiciária ou o encarregado do inquérito que ordenar a prisão fará expedir em duas vias o respectivo mandado”, informando o local de encarceramento, o motivo da prisão e o executor dela.

O criminalista também mencionou o artigo 241 do CPPM, que garante ao preso, após o período de incomunicabilidade, visitas de familiares e de advogados. Ainda requereu que o ex-deputado ficasse em prisão especial, já que tinha ensino superior — era engenheiro.  O presidente do STM, ministro tenente brigadeiro Armando Perdigão, negou o pedido, repetindo a versão de que Paiva havia fugido. Isso fez com que Machado desistisse do HC.

Nova tentativa

Em 12 de fevereiro de 1971, Lino Machado impetrou outro Habeas Corpus no STM em favor de Rubens Paiva (HC 30.389). O advogado argumentou que a versão dos militares, de que Rubens Paiva havia fugido no Alto da Boa Vista, após emboscada de militantes, não se sustentava.

Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva no filme Ainda Estou Aqui

Afinal, o próprio Exército devolveu à família o carro de Paiva, com o qual ele deixou a sua casa dirigindo em 20 de janeiro. Também houve confusão entre os nomes de Rubens Paiva e Rubens Seixas nas informações prestadas pelos militares e repercutidas na imprensa. O criminalista insistiu na obrigação do Estado de prestar informações sobre a detenção do ex-deputado.

“A prisão de Rubens Beyrodt Paiva poderia ocorrer legalmente; se assim não se fez — seja qual for a autoridade coatora — não agiu com autoridade, nivelando-se a estes que a consciência de cada um de nós condena, a estes, marginalizados, proscritos, banidos, que a repressão atinge e deve atingir, em defesa da família brasileira, da ordem, pela paz. E não se terá ordem se se procurar agir em nome dela sob o império da desordem, que nada constrói, que tudo aniquila, que inquieta, que intranquiliza, que destrói”, afirmou Machado.

O advogado deixou claro que não estava imputando tais práticas aos militares, mas ressaltou que o episódio deveria ser investigado, para que não pairassem suspeitas. Dessa forma, Machado renovou o pedido de informações e a libertação de Rubens Paiva. Ou, pelo menos, a legitimação de sua prisão, de acordo com o CPPM e a Constituição Federal.

Diversos comandantes militares da I Região (Rio de Janeiro) repetiram a versão de que Paiva não estava, nem jamais estivera, detido em suas instalações. Também disseram que ele nunca havia sido alvo de inquérito policial militar.

Em 22 de março, Lino Machado peticionou ao presidente do STM, ministro almirante de esquadra Waldemar de Figueiredo Costa, cobrando esclarecimentos. O STM, segundo o advogado, é o guardião das regras do Direito Penal Militar. “Não se há poder violá-las, profundamente, irrecuperavelmente, sem atingir o prestígio mesmo, a integridade funcional desse tribunal.”

O comportamento das autoridades de se negar a fornecer informações sobre o paradeiro de Rubens Paiva, destacou o advogado, assume o significado “das atitudes de menosprezo, que são inaceitáveis, às prerrogativas e à soberania dessa casa (STM)”.

“Não se há de poder fazer desaparecer, assim, impunemente, um cidadão deste país! Como tolerar, na terra das nossas tradições, que a pessoa humana, de repente vítima de uma prisão arbitrária, efetuada por agentes da segurança, não mais retorne ao seio da sua família e da sua comunidade? A que retrocesso, no caminho da civilização humana, a admissão de um fato, assim, criminoso e sinistro, praticado por agentes do próprio Estado haveria de conduzir-nos?”, questionou Machado, pedindo que o STM ordenasse a apresentação de Rubens Paiva à corte.

O procurador-geral da Justiça Militar, Jacy Guimarães Pinheiro, afirmou em parecer de 15 de abril que Rubens Paiva não estava em nenhuma unidade militar. E, se realmente tivesse sido resgatado por militantes, as Forças Armadas não teriam nada a ver com isso. Dessa maneira, opinou pela rejeição do HC.

Alguns integrantes do STM contestaram a recomendação, como o ministro Alcides Carneiro. “Não podemos ficar de braços cruzados por considerar o caso de suma gravidade. Temos que saber o destino do paciente, se está vivo ou morto”, declarou, conforme a edição de 22 de outubro de 1978 do Jornal do Brasil. Assim, o STM pediu que as autoridades do I Exército prestassem novas informações.

O comandante do I Exército, Sylvio Frota, refutou incongruências na versão de que Rubens Paiva havia sido resgatado por militantes. Segundo o general, os carros usados por opositores do regime costumavam ser descartados após as operações. Por isso, o carro de Paiva foi achado por militares e posteriormente devolvido à família dele, não sendo prova de que o ex-deputado havia sido levado para o DOI-Codi.

Em 2 de agosto de 1971, o STM negou o HC. “Em face das informações da autoridade havida como coatora, de que o paciente já não se encontra preso, o tribunal, por unanimidade de votos, julgou prejudicado o pedido, sem prejuízo de apuração na forma da lei dos fatos objeto das diligências em curso no comando do I Exército”, registrou a ata de julgamento. O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, órgão do Executivo na ditadura, também arquivou o pedido de investigações sobre o caso Rubens Paiva.

Comissão da Verdade    

A Comissão Nacional da Verdade, instaurada pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) para apurar violações de direitos humanos entre 1946 e 1988, afirmou, em seu relatório final, que Rubens Paiva foi torturado e assassinado por agentes da ditadura, “provavelmente” no DOI-Codi do I Exército, no Rio.

O documento aponta que o comandante do DOI-Codi na época, o major José Antônio Nogueira Belham, foi alertado por duas testemunhas militares de que Paiva poderia morrer em decorrência das sevícias e nada fez. Posteriormente, Belham engendrou a falsa versão de que o ex-deputado havia sido resgatado por militantes nas imediações do Alto da Boa Vista.

Em maio de 2014, o Ministério Público Federal denunciou os ex-militares José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza, Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos pela morte de Rubens Paiva. Os cinco foram acusados de homicídio doloso, ocultação de cadáver, associação criminosa armada e fraude processual.

O MPF argumentou que os crimes não foram extintos pela Lei da Anistia (Lei 6.683/1979), nem prescreveram, pois têm o caráter de lesa-humanidade. A denúncia foi recebida pela Justiça Federal da 2ª Região (RJ e ES), mas o ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar para suspender a tramitação do processo por afronta à Lei da Anistia (Reclamação 18.686). O Superior Tribunal de Justiça trancou a ação penal por entender que ocultação de cadáver praticada há mais de meio século não pode ser considerada crime permanente.

Em 21 de novembro, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, opinou pelo encerramento da reclamação, até porque três dos cinco autores já morreram: Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos. Contudo, Gonet entende que o STF pode debater o caso no recurso que a PGR interpôs contra a decisão do STJ de trancar a ação penal pela morte de Paiva.

Há outra ação no STF que pode levar à punição dos responsáveis pelo homicídio do ex-deputado. O PSOL pediu que a Lei da Anistia, já referendada pelo Supremo em 2010, não se aplique aos crimes de graves violações de direitos humanos cometidos por agentes públicos — militares ou civis — contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos. E que não valha também para autores de crimes continuados permanentes (ADPF 320).

Em outra frente, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos — órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos — decidiu reabrir em abril o processo do assassinato do ex-deputado federal Rubens Paiva.

O representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Hélio Leitão, em seu voto, afirmou que o caso de Rubens Paiva é emblemático por sua violência e impunidade. “Seu corpo jamais foi entregue à família, a quem também se subtraiu o direito ao luto e ao sepultamento digno de seu ente. Ainda no ano de 1971, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), de que este CNDH é sucedâneo, foi provocado para apurar o caso. Em votação que terminou empatada e finalmente resolvida por voto de minerva do então ministro da Justiça da ditadura, Alfredo Buzaid, o caso acabou arquivado.”

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!