Opinião

Extensão do princípio da presunção de inocência nas ações de improbidade administrativa

Autor

  • é advogado atua em questões relacionadas às áreas do Direito Tributário e do Direito Administrativo-Econômico com ênfase em Contratações Públicas e Improbidade Administrativa e membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE.

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1 de dezembro de 2024, 7h02

Passados três anos das alterações promovidas na Lei de Improbidade Administrativa (LIA) através da Lei nº 14.230/2021, ainda chama a atenção a carga jurídica do novel § 19º, inciso I, de seu artigo 17, de acordo com o qual não se aplica às ações de improbidade administrativa “a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor em caso de revelia” [1].

Conforme se demonstrará, o tal dispositivo está em estrita coerência com a natureza jurídica das ações de improbidade administrativa e com o seu núcleo principiológico, buscando-se através do presente ensaio apresentar os reflexos desta e de outras inovações da LIA acerca do ônus da prova de tais demandas.

Dentro de um contexto geral, as demandas administrativas de caráter repressivo-sancionador são manifestações do denominado direito punitivo do Estado, as quais, ainda que ramificadas em microssistemas jurídicos próprios (a exemplo da tutela penal), encontram-se interligados por suas origens advirem da tutela punitiva do Estado, os quais compartilham o mesmo núcleo principiológico [2] [3] [4].

No que se refere à natureza das ações de improbidade administrativa, o Supremo Tribunal Federal decidiu em mais de uma ocasião que estas se tratariam de ações de natureza cível [5], o que reflete a dicotomia que tradicionalmente categoriza as ações entre “cíveis” e “penais” [6], a qual é adotada na Constituição ao dispor que a responsabilidade por atos de improbidade administrativa se dará “sem prejuízo da ação penal cabível” (artigo 37, § 4º).

Tal dicotomia associa como “penal” a ação judicial capaz de resultar em privação de liberdade, percepção esta que se torna imprecisa em razão da possibilidade de aplicação exclusiva de penas “restritivas de direito” e/ou de “multa” (CP, artigo 32, incisos II e III); por outro lado, as demandas “cíveis” se classificariam como as disputas entre indivíduos com o fim de determinar o cumprimento de obrigações, definir o estado das coisas e a reparar de danos.

Com efeito, e muito embora a LIA tenha aplicação supletiva pelo Código de Processo Civil (LIA, artigo 17, caput), nota-se que a sentença condenatória proferida nas ações de improbidade administrativa (restrição de direitos, imposição de multa, obrigação de reparar o dano, perda de direitos políticos, perda de função pública, perda do proveito do ilícito) tem efeitos próprios às sentenças penais (Código Penal, artigos 91 e 92), e não às sentenças cíveis (declaratória, condenatória-obrigacional, constitutiva, desconstitutiva e mandamental).

Ação civil pública x ação popular

Ao diferenciar a ação de improbidade administrativa da ação civil pública e da ação popular, Teori Zavascki já esclarecia em obra doutrinária que, a despeito da identidade que há entre estas, aquela possui “caráter eminentemente repressivo, destinada, mais que a tutelar direitos, a aplicar penalidades” (processo coletivo. Tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, 2007. p. 107).

Spacca

Inclusive, quando do julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo nº 843.989, o relator indicou características relativas às ações de improbidade administrativa são próprias às ações penais, tais como a circunstância em que “não se admite responsabilidade objetiva”, bem como que tais ilícitos ensejam a responsabilização do agente “mesmo que não obtenha sucesso em suas intenções”.

No mesmo norte, muito embora o relator considere que “o ato de improbidade administrativa é um ato ilícito civil”, destacou-se que tal conduta é “qualificada pela prática ou voltada à prática de corrupção”, fazendo assim uma associação entre o ilícito improbo e os ilícitos penais, sobre o que o ministro Nunes Marques asseverou que “o ilícito que constitui improbidade administrativa está mais próximo de um crime que de um ilícito civil”.

Nisto, verifica-se que a diferença estaria apenas na existência de diversas jurisdições sancionatórias. Todavia, não se trata de mera similaridade, mas de efetiva conexão entre tais sub-ramos dos jus puniendi, anteriormente tratadas como independentes, dogmática esta que deve ser percebida de forma mitigada [7].

Improbidade administrativa

Acertadamente, a Lei nº 14.230/2021 explicitou tanto a natureza repressiva da ação de improbidade administrativa, a qual “não constitui ação civil” (LIA, artigo 17-D), como a sua inserção dentro do sub-ramo do direito administrativo sancionador (LIA, artigo 1º, §4º), o que já era de fácil percepção a partir do escopo normativo da LIA (epígrafe, descrição de infrações, previsão de penalidades e procedimento judicial para a imposição destas), através do qual a doutrina já reconhecia tal microssistema jurídico como um “autêntico subsistema penal” [8].

Esta percepção se torna de todo relevante para que se compreenda a extensão e aplicação — na ação de improbidade administrativa — de princípios processuais outrora concebidos como próprios à ação penal, cujo rigor e materialização são mais elevados do que nas ações cíveis em geral, a exemplo dos princípios do contraditório e da ampla defesa, os quais na seara penal não se contentam com a simples oportunidade de defesa [9].

O novel § 19º, inciso I, do artigo 17 da LIA tornou ainda mais clara a proximidade entre o microssistema sancionador da ação de improbidade administrativa com a da ação penal, na qual igualmente descabe a confissão ficta resultante da revelia [10].

Tal intrínseca proximidade entre a improbidade administrativa e o direito-processo penal (maior expressão da tutela punitiva do Estado) resulta na comunhão das mesmas garantias jurídicas [11] [12] [13].

Diferenças de ‘revelia’ no penal e no cível

O próprio fato processual “revelia” tem concepções diferentes nas searas cível e penal, posto que, enquanto naquela se transmite a ideia de desídia do acusado, nesta, trata-se de expressão do direito ao silêncio e do próprio princípio da presunção de inocência, percepção esta que passa a ser extensivas — com todas as suas consequências — às ações de improbidade administrativa.

Note-se que tal circunstância dá elevada ênfase ao ônus probatório do Ministério Público de provar em Juízo a materialidade e a autoria dos fatos imputados contra o acusado, preceito este que, embora seja comum à jurisdição cível (CPC, artigo 373, inciso I) e à jurisdição penal (CPP, artigo 156), tem mais rigor nesta seara, sendo de todo inaplicável a inversão do ônus da prova (CPC, artigo 373, §1º).

Neste contexto, em não sendo aplicável às ações de improbidade administrativa a presunção de veracidade dos “fatos” narrados na inicial, temos que, por extensão a este preceito, descabe igualmente impor ao acusado o dever de manifestação específica (CPC, artigo 341, caput), aplicando-se à situação o brocado “a maiori, ad minus”.

Da mesma sorte, estando o acusado isento de consequência processual decorrente da ausência da apresentação de defesa escrita, o mesmo também deve se imune a pena de confesso que se recuse a depor (CPC, artigo 385, §1º).

Direito sancionador

Face toda esta explanação, temos por incompatível com o sistema do direito sancionador e incoerente com o § 19º, inciso I, do artigo 17 da LIA a preclusão consumativa da matéria de defesa (CPC. artigo 342).

Descabe igualmente o imediato julgamento antecipado do mérito em decorrência da revelia, uma vez que tanto o inciso II do artigo 355 do CPC limita a sua aplicação quando ocorrer a presunção dos fatos, destacando-se mais que a produção o inciso I do referido dispositivo é matéria que demanda análise pontual.

Ao que se verifica, algumas das inovações legislativas advindas da Lei nº 14.230/2021 tem o condão de explicitar questões já reconhecidas em parte pela doutrina e pela jurisprudência quanto às ações repressoras, mas que se revelam de fundamental importância para compreender o direcionamento que o legislador buscou atribuir às ações de improbidade administrativa, notadamente quanto às implicações processuais decorrentes do princípio da presunção de inocência.

 


[1] Desta sorte, nas Ações de Improbidade Administrativa, os únicos efeitos decorrentes da Revelia do demandado residem na fluência dos prazos a partir da data de publicação do ato decisório no órgão oficial, caso não tenha patrono (CPC, Art. 346, caput), e na impossibilidade de renovação de atos processuais já praticados (CPC, Art. 346, Parágrafo único).

[2] Neste sentido: Marçal Justem Filho (Curso de Direito Administrativo, 2012, p. 571). Fábio Medina Osório (Natureza da ação de improbidade administrativa, em “Revista de Direito da Procuradoria Geral, Edição Especial: Administração Pública, Risco e Segurança Jurídica”, 2014, p. 456). Gustavo Binenbojm (O direito administrativo sancionador e o estatuto constitucional do poder punitivo estatal, op cit, p. 469).

[3] Igualmente, no âmbito do STF, vide Mandado de Segurança nº 32.201 (Voto do Min. Luís Roberto Barroso, j. 21.03.2017).

[4] Em julgamento memorável realizado no âmbito do Corte Europeia de Direitos Humanos (Öztürk vs. Alemanha, Application no. 8544/79: 1984), decidiu-se pela aplicação da Convenção Europeia de Direitos Humanos às infrações administrativas em comparação com as infrações penais (“AS TO THE LAW”, parágrafo 46 à 54).

[5] No julgamento da ADI 2.797-DF (Rel. Min. Sepúlveda Pertence, em 15.09.2005), quando se atribuiu tal natureza para fins de afastar a prerrogativa de foro) e no julgamento do ARE 843.989-PR (Rel. Min. Alexandre de Moraes, em 18.08.2022), quando se fixou o Tema de Repercussão Geral nº 1.199, especialmente ao definir a irretroatividade das alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021.

[6] No julgamento do ARE 843.989-PR, o Min. Luiz Fux faz um aparte no Voto do Relator para acercar que “O Professor Frederico Marques, em suas Instituições sempre relembradas, afirmava exatamente isto: as lides, ou são lides penais ou são lides civis, assim compreendidas as tributárias, as administrativas, as comerciais, etc”.

[7] “A ação civil de improbidade administrativa trata de um procedimento que pertence ao chamado direito administrativo sancionador, que, por sua vez, se aproxima muito do direito penal e deve ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal” (Gilmar Ferreira Mendes, Voto na Reclamação nº 41.557, j. 15.12.2020).

[8] “o direito administrativo sancionador deve ser entendido como um autêntico subsistema penal” (Ana Carolina Oliveira, em “Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador”, 2012. p. 190)

[9] “o grau de ampla defesa varia de acordo com a consequência jurídica dos fatos imputados (…) a extensão da amplitude da defesa guarda íntima pertinência com a intensidade de interferência na esfera jurídica do sujeito processual” (Edson Fachin, Voto na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 378 – Medida Cautelar – Distrito Federal, j. 17.12.2015).

[10] A teor do Art. 261 do CPP, tem-se que “Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”, sendo certo ainda que até mesmo a confissão expressa carece de caráter absoluto (CPP, Art. 197), sendo esta ainda é passível de retratação (CPP, Art. 200).

[11] “A natureza destas sanções revela aplicação dos princípios de Direito Penal, com matizes e por força de analogia, ao campo destas ações de improbidade” (Fábio Medina Osório, em “Natureza da ação de improbidade administrativa”. Revista de Direito da Procuradoria Geral, Edição Especial: Administração Pública, Risco e Segurança Jurídica, 2014, p. 456).

[12] “A unidade do jus puniendi do Estado obriga a transposição de garantias constitucionais e penais para o direito administrativo sancionador. As mínimas garantias devem ser: legalidade, proporcionalidade, presunção de inocência e ne bis in idem” (Ana Carolina Oliveira, em “Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador”, 2012. p. 241).

[13] “Por todas essas razoes parece-me adequado estender o quanto possível, para o campo da improbidade, as garantias próprias dos direitos penal e processual penal, sobretudo quando o legislador assim o determinar” (Nunes Marques, Voto divergente na ARE 843.989-PR).

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