Prisão preventiva e os regimes semiaberto ou aberto: uma incompatibilidade sistêmica
31 de agosto de 2024, 8h00
O sistema penal brasileiro enfrenta problemas complexos no que tange à (in)observância dos princípios constitucionais aplicáveis à prisão preventiva.
A temática suscita questionamentos jurídicos e processuais que merecem ser analisados de forma sistêmica. Afirmamos, desde já, que algumas questões apresentam sérias violações ao princípio acusatório e a separação de funções no processo penal democrático, quando 1) a decretação de prisão preventiva “de ofício” é legalmente vedada, porquanto nitidamente violadora do sistema acusatório; 2) a prisão preventiva, em tais situações, tem cariz de pena antecipada; e 3) da incompatibilidade entre a prisão preventiva e a fixação do regime semiaberto e aberto [1].
É nítida a existência de uma tendência na qual todos os envolvidos no processo penal, desde os órgãos públicos, passando pela vítima e até mesmo a sociedade, identifiquem a prisão preventiva como a principal resposta a ser dada pelo Estado, no que se refere ao resultado mais rápido e perceptível no combate à criminalidade. Via de consequência, compreende-se a naturalização do uso da prisão preventiva como principal instrumento de coerção estatal [2]. Por outro lado, e por se tratar da principal forma de coerção e exercício do poder estatal, cumpre à defesa fiscalizar a sua aplicação desmensurada.
Peca-se pelo erro de considerar como suficiente a “força de um poder bom”, para satisfazer as funções atribuídas ao Direito. E, mesmo que se considere a caracterização desse poder, como se fosse simples reduzir a complexidade do Direito a um ideal de bondade, é necessário o estabelecimento de um complexo sistema de direitos e garantias que tenha por finalidade limitar, controlar, funcionalizar e, se for o caso, deslegitimar este mesmo poder, a ponto de neutralizá-lo, quando exercido de forma ilegal e arbitrária [3].
Ocorre que, com o advento de uma Constituição que deve servir de premissa para toda legislação existente e, também, por identificar que há uma aparente tensão a ser equilibrada entre toda a ordem de conhecimento legislativo científico, utilizável e aplicável, em âmbito social, se torna essencial um modelo de racionalidade, justiça, legitimidade e controle, da intervenção punitiva, com a necessidade de uma coordenação de várias garantias, concorrentes e articuladas, formando uma circularidade, deflagrando a conectividade recíproca, conferindo efetividade umas às outras de forma sucessiva [4]. O exercício do poder deve ser controlado, e não empoderado.
Sistema confusional
É sabido que o Código de Processo Penal, consoante os artigos 282, §2°, 311 e 316, todos com redação dada pela Lei n° 13.964/19, veda a decretação de ofício da prisão preventiva, bem como das medidas cautelares diversas da prisão. De forma inequívoca, estamos diante de um impedimento legal de limitação do exercício do poder e normatização garantidora da coerência do sistema acusatório [5]. Mas, como dito em outro momento, temos um sistema confusional em que se usa algumas categorias do sistema acusatório, no entanto, mantendo a matriz predominantemente inquisitiva [6] gerando inúmeras distorções interpretativas.
Não obstante, nada impede que o membro do Ministério Público requeira a prisão preventiva, a qualquer momento (artigo 311, CPP), inclusive por ocasião da apresentação das alegações finais, desde que presentes os requisitos autorizadores da segregação cautelar. Assim não procedendo, resta demonstrado o desinteresse institucional acusatório, não podendo o juiz agir em substituição ao parquet em afronta à separação de funções.
É sabido que as cortes superiores entendem que a condenação, nesses casos, constitui um “novo título” (STJ AgRg no RHC 128.011; HC 622.462/SP; HC 425747), o que tornaria necessária uma nova manifestação prévia do órgão acusador, de forma fundamentada e concreta, demonstrando a persistência, alteração ou ampliação dos motivos que justificam a prisão preventiva. Percebam leitores(as) que, os tribunais superiores caminham no sentido de harmonizar os atos processuais conforme o sistema adotado.

Embora se possa argumentar que o “fumus comissi delicti“, com a condenação, embora recorrível, possa ter obtido algum reforço, é comum que a própria condenação extinga completamente as circunstâncias que fundamentaram a prisão preventiva, como, por exemplo, a conveniência da instrução criminal. Nesse contexto, percebe-se que, para decretar uma nova prisão preventiva na sentença, considerada um novo título prisional, com atuais fundamentos e justificações, é imprescindível que o Ministério Público realize um novo requerimento prévio. A ausência desse requerimento torna a decretação da prisão preventiva de ofício absolutamente ilegal.
Manutenção carece de respaldo legal
A prisão preventiva é definida como a privação da liberdade, que não é resultado de uma sanção penal, mas de uma medida garantidora de atuação acusatória submetida à análise jurisdicional, para que o acusado não evite ou dificulte a investigação ou o desenvolvimento do processo judicial. Esta medida, enquanto restritiva de liberdade, sem uma sentença alcançada pelo trânsito em julgado, destina-se a ser excepcional, subsidiária [7]. Por outro lado, a eventual manutenção da prisão preventiva após uma sentença condenatória que fixa o regime semiaberto ou aberto, além de carecer de respaldo legal, descaracteriza o propósito dessa modalidade de segregação cautelar.
Ademais, são duas situações distintas: 1) a decretação da prisão preventiva durante o curso do processo (necessariamente) deve ser fundada no disposto nos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal; 2) já a decretação de uma “prisão preventiva” em razão de uma condenação (apenas) além de carente de respaldo legal, é considerada “novo título” prisional, o que impõe legitimidade ativa (art. 311 do CPP) para o pleito.

Seria, mutatis mutandi, o mesmo que admitir que o juiz pudesse, na decisão que recebe a pronúncia, decretar de ofício a prisão preventiva de alguém que está preso por uma prisão temporária, argumentando que ainda persistiria a necessidade de prisão. Algo como a mesma fórmula genérica utilizada nas sentenças: “considerando que o acusado permaneceu preso durante toda a investigação, com mais razão deve ficar preso com a denúncia recebida, tendo em vista que há justa causa para a acusação”. São igualmente absurdas ambas as hipóteses.
Necessidade e proporcionalidade
Relativamente à decretação ou manutenção da prisão preventiva na sentença condenatória que fixa o semiaberto ou aberto como regime inicial de cumprimento da pena, sua admissão contraria frontalmente os princípios da necessidade e proporcionalidade entre a pena provável e a prisão cautelar. Nesse cenário, a medida provisória se torna mais severa do que a definitiva que a substituirá após a coisa julgada.
É dizer, o desfecho do processo em juízo de comprovação sobre os fatos implica na privação mitigada da liberdade (regime aberto ou semiaberto) da pessoa visada pelo poder punitivo estatal, porém a prisão cautelar apenas pode ser cumprida em regime fechado (excepcionalmente em regime domiciliar). Portanto, a prisão não se revela adequada nem proporcional, podendo ser eficazmente substituída por medidas alternativas (artigo 319, CPP), como já afirmou o Supremo Tribunal Federal em diversos julgados [8] respeitando o princípio da preferência pelas respostas penais não detentivas face às respostas penais detentivas, amplamente demonstrado nas normas constitucionais (artigo 5º, LXVI e XLVI) e legais (artigo 282, § 6º do CPP, artigo 44; artigo 77, caput e §2º; 83 do CP).
Não há justificativa para que uma medida cautelar – no caso, a prisão preventiva – seja mais gravosa do que a pena imposta em uma sentença condenatória, ainda que recorrível. Dito de outro modo: caso determinado o regime semiaberto ou aberto para o cumprimento da pena, incabível a manutenção da prisão preventiva outrora decretada, devendo ser reconhecido o direito de o réu recorrer em liberdade, salvo a existência de outras decisões em processos distintos a justificar a manutenção da reclusão do réu. Pensar o contrário implicaria violação ao princípio da proporcionalidade, bem como admissão de execução provisória da pena.
Fungibilidade é esdrúxula
Tais decisões encontram agasalho na admissão pelas Cortes Superiores da “adaptação” ou “compatibilização” da prisão preventiva às regras da prisão definitiva em regime semiaberto ou aberto [9]. Além da esdrúxula “fungibilidade” de institutos tão diversos, a “adaptação” ou “compatibilização” da prisão preventiva desvirtua sua própria natureza [10].
Não é à toa que o CNJ, justamente com o intuito de evitar decretação de prisão preventiva nas hipóteses em que o regime inicial de cumprimento de pena é diverso do fechado, editou a Resolução 474/2022 (altera a Resolução 417/2021), orientando a expedição de mandado de intimação para o início voluntário da pena no semiaberto ou aberto, não mais devendo ser expedido mandado de prisão nesses casos. Transcrevemos, in verbis, o conteúdo do artigo 23 da referida Resolução:
“Transitada em julgado a condenação ao cumprimento de pena em regime semiaberto ou aberto, a pessoa condenada será intimada para dar início ao cumprimento da pena, previamente à expedição de mandado de prisão, sem prejuízo da realização de audiência admonitória e da observância da Súmula Vinculante no 56.”
Conclui-se, portanto, que a inobservância dos preceitos normativos diretamente ligados ao princípio acusatório, bem como aos ditames de proteção constitucional, não garante eficiência do sistema de Justiça Criminal. Na realidade, causam muito mais tumulto e prejuízo ao reconhecido Estado de Coisas Inconstitucional (ADPF 347).
A realidade é que a confiabilidade no sistema criminal não decorre apenas de o quanto ele pode punir, mas principalmente de o quanto este pode garantir que a punição não será errônea, intempestiva, desnecessária ou excessiva.
[1] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Observações sobre os sistemas processuais penais. Organizadores: marco Aurélio Nunes da Silveira e Leonardo Costa de Paula. Vol. 1. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p.139.
[2] MINAGÉ. Thiago Miranda. Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição. 6ª edição. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2024.
[3] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal. Introdução Crítica. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2017.
[4] COUTINHO, 2018, p. 260.
[5] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de informação legislativa, v. 46, n. 183, p. 103-115, jul./set. 2009
[6] https://www.conjur.com.br/2022-nov-25/limite-penal-atraso-reformas-sistema-justica-criminal/
[7] RIEGO, Cristian. La Oralidade En La Discusión Sobre La Prisión Preventiva. IN: Estudios Sobre El Nuevo Proceso Penal – Implementación y Puesta En Prática. Associación de Magistrados Del Uruguay. Montevideo: FCU, 2017, p. 107.
[8] Dentre outros, vide: HC 115.786, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJe de 20/8/2013; HC 123.226, Rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, unânime, DJe de 17/11/2014; HC 130.773, Rel. Min. Rosa Weber, 1ª Turma, DJe de 23/11/2015; HC 136.397, Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, DJe de 13/2/2017; HC 175.775/PR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 24/09/2019.
[9] Vide, por exemplo: STJ, AgRg no HC 760.405-SP, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 23/8/2022, DJe 26/8/2022.
[10] Ademais, essa “adaptação” ou “compatibilização” fere a proibição de execução da pena privativa de liberdade sem que ocorra o trânsito em julgado, princípio consolidado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADC 43, 44 e 54, tornando impossível harmonizar as diferentes modalidades de prisão sem incorrer na vedada execução antecipada da pena.
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